O Liber Fidei e o seu contributo para uma protogramática do Português
1. A escolha, para algumas breves reflexões linguísticas, desta colectânea que «pelo número, antiguidade e valor dos documentos transcritos é o maior e o mais importante cartulário português e um dos mais notáveis da Europa» (1), decidiram-na não propriamente estes epítetos de tão extraordinária individuação, mas os trinta anos de trabalhos despendidos, não obstante os decorrentes da sobrecarga de leccionação e investigação, pelo Prof. Doutor Avelino de Jesus da Costa no intuito de prendar a alta cultura com a edição crítica, em três tomos (I, 1965; II, 1975; III, 1990) desse monumento cujo original foi pertença do Cabido da Sé de Braga, donde transitou para a Biblioteca e Arquivo Distrital, hoje incorporados na Universidade do Minho.
Compõem o Liber Fidei 954 textos, inclusive os repetidos, com um âmbito cronológico estendendo-se desde o ano 569 até 1253, dado que o último daqueles não passa de rápido termo de aceitação, em vernáculo, de um Breve de Clemente X, de 1712, cuja transcrição parou nas primeiras cinco palavras latinas (2). Curiosamente se recorda que os Diplomata et Chartae agrupam 952 documentos, menos dois portanto que o célebre cartulário de Braga, iniciado provavelmente no século XII. Repositórios de variadíssimas informações, os cartulários, cujo espécime mais antigo é germânico de três séculos antes, tornam-se mais frequentes a partir do undécimo, de tal modo que, duas centúrias volvidas, possuíam tais instrumentos notariais os bispados, cabidos, colegiadas, abadias e mosteiros, casas senhoriais e ordens militares, universidades e outras instituições como igrejas e capelas, confrarias, hospitais e leprosarias, associações de mesteres e corporações municipais.
Não existe um inventário geral dos cartulários da Idade Média, mas eles foram numerosos. Só na Bibliographie générale des cartulaires français, de Stein (1907) atingem a cota de 4522. Já, porém, em 1847 saía em Paris o Catalogue générale des cartulaires des archives départementales; e desde 1889 Dinifle e Chatelain se ocupavam do bem provido cartulário da Sorbona. Entre nós, o maior empreendimento algo congénere e quase coevo pertenceu a Herculano e à Academia Real das Ciências, através dos Portugaliae Monumenta Historica, que desde 1856 até 1888 se enriquecia com quatro grandes tomos. Na Espanha o interesse desperta-o mormente o índice cronológico do Cartoral de Carles Many a la catedral de Gerona, de Botet y Sisó (Barcelona, 1905-1908), com 637 escrituras dos séculos IX a XIV, porque logo depois, em 1910-1911, vem a lume o Cartulario del Monasterio de San Cugat del Vallés (3 vols.), embora seja já de 1891 a edição do de Santa Maria de Silos, da responsabilidade de Ferotin.
Quando em 1933 Joseph Huber publicou o seu Altportugiesisches Elementarbuch (3), lançado cá pela Gulbenkian em 1990, a documentação especial a que pôde ater-se não foi muito além da reunida por Herculano. Hoje encontraria muito mais: entre outros, os 314 textos do Baio-Ferrado do Mosteiro de Grijó (4), não obstante 33 deles já coligidos nos Diplomata et Chartae (1867) e três (aliás, bulas pontifícias) aproveitados por Carl Erdmann (5); e, evidentemente, os 953 do Liber Fidei, descontados alguns que conheceu por outras vias. Apesar disso e mau grado rectificações a introduzir, ainda é «o único manual que procura descrever em conjunto a gramática da língua em que estão escritos os textos da primeira época» do galego-português, como sublinhou Lindley Cintra (6) nas «Palavras Prévias» da edição da Gulbenkian. Eu pediria licença para acrescentar que o mestre lusófilo da Universidade de Viena, falecido em 1960, foi dos raros que começou a perceber a necessidade de uma gramática do português arcaico ter de começar pela leitura cuidada dos cartologia tabeliónicos.
Por norma, quem pacientemente os consulta é gente de outras áreas do saber. Não será, pois, de estranhar que, por exemplo, ao Liber Fidei tenham recorrido, desde o século XVI, «nacionais e estrangeiros como Frei Jerónimo Román, D. Frei Prudêncio de Sandoval, António Brandão, D. Rodrigo da Cunha, Gaspar Estaço, A. Caetano de Sousa, Contador de Argote, Henrique Flórez, Manuel Risco, José Anastácio de Figueiredo, João Pedro Ribeiro, Alexandre Herculano, P. Fidel Pita, Abade de Tagilde, Alberto Feio, Luís Gonzaga de Azevedo, Barrau-Dihigo, Cláudio Sánchez-Albornoz, Carlos Erdmann, Mons. José Augusto Ferreira, Paulo Merêa, Torquato de Sousa Soares, A. E. Reuter, Rui de Azevedo, Vásquez de Parga, Pierre David, Emílio Sáez, António C. Floriano, Mário Júlio de Almeida e Costa, A. G. Ruiz-Zorilla, Demétrio Mansilla, A. R. García Álvarez, A. Ubieto Arteta e o autor desta introdução» (7), escreve o Prof. Avelino de Jesus da Costa. São 34 personagens ilustres, a maior parte historiadores, vários juristas e apenas um gramático, D. Jerónimo Contador de Argote, que também foi historiador das Memórias para a história eclesiástica do arcebispado de Braga (4 vols.), sendo nesta qualidade que figura no elenco acima e não na de autor das Regras da língua portuguesa, espelho da língua latina.
É certo que filólogos e linguistas da diacronia alertam de quando em quando para a questão, sem contudo se decidirem, por razões que aduzem, a tratá-la de modo englobante. São de Segismundo Spina estas linhas, em eco de tantos ecos: «Anteriormente ao século XII, e recuando até ao século IX, inúmeros documentos exarados em latim bárbaro deixam entrever formas vocabulares e estruturas que denunciam a língua falada corrente no território lusitano, invadindo sub-repticiamente a linguagem dos primitivos cartórios religiosos» 1. Por seu turno, a autora de Estruturas trecentistas adianta uma das causas impeditivas de tal abordagem em gramáticas do português arcaico, qual a de não se restringir a obra a um público de eruditos, nuns tempos em que a formação intelectual anda longe de incluir «o conhecimento, mesmo superficial, da língua latina» (9). Quanto a mim, e salvo melhor opinião, parece-me que o verdadeiro motivo resulta do próprio projecto e interpretação das gramáticas e em coerência com isso. É que uma gramática do português não é, realmente, uma protogramática. Aquela competirá o estudo da língua «in facto esse», como diziam os medievais, portanto historicamente em uso numa determinada comunidade e suficientemente apreensível no plano documental; esta, pelo contrário, tentará apoios num idioma que antes de o ser já o era, mas cujos elementos de autenticação, porque «in fieri» na sua maior parte, menos se observam do que se palpitam, encobertos ou disfarçados como andam pelos sete véus, não raro escassamente diáfanos, da ciência e nesciência notariais.
2. Tomando, pois, como base de consulta o Liber Fidei, ensaiou-se aqui um pequeno salto para textos que não ultrapassassem o primeiro quartel do séc. XII, quedando-nos assim a cerca de três lustros de distância do surgir de Portugal como nação-estado. Sem embargo, não se ignora permanecerem ainda em aberto três quartos da centúria, com transbordo para os inícios da de duzentos. De resto, mesmo em simultâneo com as laudas vernaculares, as tabeliónicas bárbaras poderão eventualmente fornecer achegas de interesse protogramatical.
2.1. Começando pelo enunciado completo, em cata do falar romanço directamente indocumentado por então:
a) A conjunção integrante original ut, detectável avonde nestes textos, vai recuando na luta contra o pronome relativo, assim como o quod, raro: «placuit mihi quo» [que] (Liber Fidei (10), I, 55, 1047; 56, 1050); «et precepit eis que fuissent pro ad illas villas (L.F., I, 23, 1062); «rogandum que dedissent illas villas ad... et que dedissent iudicatum ad» (ibid.); «si non potuerimus... vobis auctorizare, que pariamus [paguemos] vobis duplata» (L.F., I, 76, 1027); «et iudicavit [decidiu] Menendo Pelaiz que iurasset Eirigo» (L.F., I, 91, 1057); «et si habuerim filios, que tribuat inde ad illos sanctos» (L.F., I, 66, 1073); «et si mortuus fuerim... que teneat ipsas hereditates... meo fratre» (ibid.); «mandavit que iurasset Stepliano cum IIII.or testimonias» (L.F., I, 36, 1031); «et placuit unus ad alius que lexasse» (ibid.); «si quis venerit... que pariemus (11) vobis ipsum que in carta resonat» (L.F., I, 50, 1044; 52, 1047); «et que non prendamus [tomemos, prendre em francês] consilios cum nulla forma humana» (L. F., I, 166, 1102); «et si ego... quesierit exire... que lexe illo vestro casale» (L.F., I, 64, 1086); «et si inde aliter fecerim... que pariemus vobis illo casale in duplo» (ibid.); «et pro IIII.or modios que non habuimus que dare» (L.F., I, 49, 1042); si quis tamen venerit vel ego venero... quod pariam illam a vobis» (B.-Ferr. (12), 148, 1092).
b) Integrantes infinitivadas, próximas da penúltima acima inclusa: «nisi habuerimus a [tivermos de] vindere aut a donare ad vos per precio iusto» (L.F., I, 166, 1102); «illos modios de debito et habuimus eos dare» (L.F., I, 102, 1078); «placuit nobis vendere» (B.-Ferr., 161, 1123); «tantum nobis accipere placuit a vobis et vobis nobis dare» (B.-Ferr., 127, 1112).
c) Hibridismo de construção relativa-completiva: «neminem quidem permitto qui... faciat» (L.F., I, 337, 1105; 228, 1105; 229, 1105; 231, 1100).
d) O pronome relativo no topo da evolução ou nem tanto: «et faciatis de illa que [o que] vos quesieritis» [quiserdes] (L. F., I, 88, 1056; 78, 1047); «et faciatis de illa que volueritis» (L.F., I, 115, 1084); «et faciatis de illa quod volueritis» (L.F., I, 148, 1097).
e) Eventual contaminação subordinativa (só no primeiro exemplo) pela conjunção mais em voga na escrita tabeleónica: «quia legem dicit ut... adimplet» (L.F., I, 1, 1017); dicit ut teneamus» (L.F., I, 62, 1071).
f) O relativo em vias de conjunção causal: «damus vobis illum pro que abuimus iudicio» (L.F., I, 36, 1031); «tertia integra damus vobis... pro que accepimus de vobis precium» (L.F., I, 39, 1032; 101, 1078); «sic nostra ratione... damus vobis... pro que accepimus de vos in precium» (L. F., I, 41, 1032); «damus vobis... integra... pro quo accepimus de vobis pretium» (L.F., I, 123,1088); «damus... pro quo accepimus de vobis alia vestra» (L.F., I, 166, 1102); «vendimus inde vobis IIIIª media, propter quod accepimus de vobis precio» (L.F., I, 38, 1032); «roboro... vobis istam cartam pro que sacasti me de manu de hominibus... impiis» (L. F., I, 151, 1099).
g) Oração relativa final, do gosto dos nossos autores clássicos, não obstante o qui ainda em concordância total: «et sic petivit... previsores de ipso concilio qui ipsos terminos previderent» (13) (L.F., I, 19, 911). A tendência, porém, a generalizar-se é para a obliteração das desinências casuais, como nestes relativos genuinos: «de illos homines que tenebant villas» (L.F., I, 23, 1062); «ad illos sanctos que supra nominavimus» (L. F., I, 66, 1073). Note-se que a forma quae também se escrevia que, e lhe caberá cotada preponderância na uniformização do nosso pronome, ao invés do que se lê em certas gramáticas históricas a derivá-lo apenas de qui e de quem.
Como final infinitivada [que por de], atente-se neste exemplo entre outros: «abeatis licentia de nos aprehendere ipsa larea (L.F., I, 22, 990).
h) Oração relativa de acento consecutivo: «si quis tamen... venerit... contra hanc ad inrumpendum. [de tal modo] que nos in concilio devindicare non potuerimus» (L.F., I, 35,1031); «siquis tamen... venerit... ad inrumpendum. carta que in iudicio non potuerimus devendicare» (L.F., I, 36, 1031).
i) Do advérbio relativo quomodo (a acepção interrogativa não se encontrou) à conjunção: «de illo agro de Paul quomodo iacet de termino in termino» (L.F., I, 41, 1032); «et illud casale medium quomodo illud a Livo obtinuistis» (L.F., I, 188, 1054); «et illud casale cum suo plantato integro quomodo obtinuit Sisnando» (L.F., I, 187, 1034); «quas habemus de avios nostros quomodo et de parentela» (L. F., I, 183, 1043); «sic de avolenga quomodo et de ganantia» (L.F., I, 201, 1072); «quomodo servierunt... sic serviant» (L.F., I, 233, 1061). Repare-se nos três excertos últimos, já retintamente comparativos, dois deles até com precedência ou sequência de sic. Estará, porém, relacionado com os anteriores, este, recolhido em Estruturas trecentistas 14: «Vejamos as lides novas... com o enimiigo e a maneira como venceu» (p. 759).
Entretanto a maioria destas escrituras apresenta, na cominação sancionatória e já rente ao escatocolo, um quomodo espúrio, não raro omitido, às vezes substituído por tunc, outras por um que íntegrantizado, não susceptível de verter-se nem por advérbio, nem por conjunção: «et si aliquis venerit... ad inrumpendum et nos... non potuerimus devendicare vel autorizare post parte vestra, quomodo pariemus vobis duplata vel triplata» (L.F., I, 46, 1034). Para agravamento da dificuldade, quomodo situa-se na apódose periodal e não em qualquer das prótases possíveis. Salvo melhor opinião, penso ter havido interferência e confusão com commodum ou commodo, ambos advérbios latinos com a significação de «justamente», «a propósito», «precisamente». Uma prova de tal via contaminatória talvez esteja, por exemplo, nesta frase: «facimus carta firmitatis per quomodum [só com um m] rationis pro ipso ganato de vestro capitale» (L.F., I, 176, 1027); e comoda, com a oclusiva labial reduzida, também aparece (L. F., I, 231, 1100).
j) Oração relativa a caminho de temporal ou já na meta: «et que non laxetis me in quantum vos potueritis» (L. F., I, 151, 1099); «et quod teneatis nos in quantum vixerimus» (L.F., I, 182, 1032-1042); «et sten. in illa... in quantum vixero» (L.F., I, 97, 1074).
l) Conjunção temporal quase perfeita, mas menos simples que no latim: «hereditatem quanta... in suo iure obtinebat des [de + ex] quando in casa de Nugaria intravit» (L.F., I, 176, 1027).
E bastará como tentame de amostragem. São onze alíneas capazes de, na maior parte, incitarem à atenção sobre a plurívoca proteicidal de um categorema oriundo do Lácio que acabou por se assenhorar das rédeas de comando de dois terços da hipotaxe da nossa língua.
2.2. Passando, por fim, à morfologia verbal e relegando para outra ocasião aspectos quer do léxico quer de ordenação sintagmática, elencam-se agora testemunhos esclarecedores da gestação do supletivismo românico do verbo esse, cujas formas e sons se tresouvem, através das páginas bárbaras, como ecos de búzios distantes.
Joseph Huber ainda aceitou, no seu Altportugiesisches Elementarbuch e apoiando-se em Díez, haver mais probabilidades na derivação de seer a partir de sedere do que de essere. Rodrigues Lapa, contudo, achou que era tempo de acabar com as dúvidas: «Seer não pode vir de essere. Seria conveniente assentar de vez nisso» (15). Ora repare-se então:
a) O verdo sedere em acepção plena: «ut sedeamus sub vestro regimine» (L. F., I, 22, 1025); «sunt nostras proprias... et debent adsedere nostras proprias» (L.F., I, 23, 1062); «et sedent vigarios in ipsas villas... Teuderedo et... Vriastro» (ibid.). Não significa «estar sentado», mas «permanecer», «estar colocado», «manter-se», «ficar», como igualmente se lê em Cícero, nas cartas aos Familiares ou a Ático.
B1) O verbo sedere morfemizando-se, ao encontro léxico-semântico com esse: «des odie die non sedeamus [sejamos] ausatum ut te calumniare» (L.F., I, 96, 1084); «sedeat [seja] de iure meo abrasa et in vestro domínio sedeat tradita atque confirmata» (L.F., I, 147, 1099; II, 34, 1103; II, 244, 1106); «in primis sedeat excomunicatus et anatematizatus et cum luda traditorehabeatparticipium» (L.F., II, 365,1106); «inprimis sedeatexcomunicatus et segregatus» (L. F., I, 155, 1100; 157, 1101); «non habeant licentiam nullus scriptus sed sedeat [seja] invalidus» (L.F., I, 153, 1100); «non valeant nullos scriptus... sed sedeant [sejam] invalidos» (L.F., II, 337, 1106); «sedeant de iure nostro abrasas et in domínio vestro sint traditas atque confirmatas» (L.F., II, 366, 1107) (16).
O respigo de fragmentos similares era passível de prosseguir-se, acaso desnecessariamente, dado que o seu amontoado se tornará dispensável para algumas considerações, mesmo de base. E quanto a elas, não haverá naturalmente divergência no plano das formas originantes ou, se se quiser, etimológico: o conjuntivo do verbo ser brinca por ali como criança balbuciante a tentar fazer-se entender. No plano do conteúdo, parece-me evidente a interpretação assinalada, entre parêntesis quadrado, no primeiro fragmento, no quinto e no sexto. Nos restantes custa aceitar que a semântica não seja idêntica e, nesse caso, a mais lógica. De facto, se vertemos por «permanece» ou «mantém-se», entramos em certa aberração, qual a de admitir tais escrituras ou fazendas continuarem um estado anterior sem qualquer mudança consequente, o que se opõe ao teor dos próprios contratos exarados.
A existência, de longe a longe, da expressão «maneat excomunicatus», lobrigada já fora dos limites cronológicos deste estudo (cfr. L.F., I, 211, 1159: «ac tandiu maneat excomunicatus quousque quod invaserit in duplo componat») explica-se pela circunstância temporal acrescida: «até que pague pelo dobro aquilo de que se apoderou». De resto, para os cépticos renitentes ajunta-se uma nova alínea, em contra-senha paradoxalmente esclarecedora.
b2) O verbo esse puro, nalguns de entre inúmeros fragmentos semelhantes aos que ostentam sedere: «de hodie die sint de iure meo abrasas et in vestro traditas et confirmatas» (L.F., I, 192, 1056); «de iure meo sit abrasa et in vestro translata» (L.F., I, 175, 904; 151, 1099); «in primis sit excomunicatus et cum Iuda traditore habeat participium» (L.F., I, 234, 1039; 235, 1045; 236, 1046; 241, 1064; 242, 1068; 248, 1088; 251, 1069; 256, 1072; 257, 1073; 131, 1091); «in primis sit excomunicatus et... segregatus» (L.F., I, 136, 1077); «sit de iure nostro abrasa et in vestro dominio sit tradita et confirmata» (L.F., I, 176, 1027; 159, 1101); «sit excomunicatus et anatematizatus» (L.F., II, 265, 1075; 296, 1087; 299, 1088). Atente-se finalmente no último exemplo da alínea b1: a primeira parte com sedeant; a segunda com sint.
Diz-nos Clarinda de Azevedo Maia, escudando-se em Carolina Michaëlis, que o sentido originário de sedere, «estar sentado», ainda aparecia na centúria de trezentos (17).
Rosa Virgínia Mattos e Silva confirmava, na sua tese doutoral de 1989, três anos depois de Clarinda Maia, o asserto, com frases tiradas dos Diálogos de São Gregório (séc. XIV). Afigura-se-me, entretanto, que nalguns dos doze exemplos transcritos (18) a acepção de «estar sentado» já desliza para o simples «estar». De qualquer modo, a aproximação contrastiva que faz entre este verbo e os verbos ser e jazer é deveras interessante, sejam eles plenos ou avancem para a deslexicalização.
No Liber Fidei também lá se encontram, mas em desigualdade quanto ao peso da sua presença e à própria vitalidade sémica. No concernente a sedere com valor de «ser», confira-se o que se disse atrás, nas alíneas b1 e b2; com o de «estar» ou de «estar colocado», segundo termos de Corominas, os testemunhos são escassos: «in illa petra III.es feridas de malio sedent» (L.F., I, 223, 1061); com o de «estar sentado» não se descobre forma, certamente por a temática escritural lhe ser alheia. Em contrapartida, iacere ou habere iacentiam abundam quer no Liber Fidei quer no Baio-Ferrado, e a sua distribuição é análoga, bem como a referencialidade. Funcionam à maneira de situadores concretos, ora substituindo «habemus», «est» ou «sita», ora precisando melhor algo antes localizado: «est in... et habet iacentiam»; «que habemus in... et habet iacentiam», ou «habent iacentias»; «et pedazum que iacet tras casa de Recaredo laxamus illud ad» (L.F., I, 233, 1061); «ecclesie que sita et cognita... dinoscitur in villa» (L.F., I, 231, 1100); «et est sita basilica... in villa Mauri» (L.F., II, 280, 1089). Por seu lado, stare, sempre fiel ao estatuto lexical, é parcamente detectável: «illas mazanarias que ibidem stant» (L.F., I, 65, 1073); «et sten in illa hereditate... in quantum vixero» (L.F., I, 97, 1074); «de ipso linare ubi ipso molino stat» (L.F., I, 233, 1061); «illo casale qui fuit de Tedon Vermudiz integro qui stat pro illo casale quod testavit Vermudus Telonis» (L.F., II, 296, 1087).
No foral de D. Sancho II outorgado à vila de Santa Cruz da Vilariça (1225) lê-se: «Et nostros Alcalde s iudicent de Sol a Sol. Et si baraliant cum suos vicinos et vener illo Alcalde, et dixer: Incauto vos, que non baraledes, et non se calarent, pectet unum morabitinum al Alcalde» (19).
Ora nesta incursão linguística sobre os cartulários, com incidência especial no Liber Fidei, nomeadamente nos dois primeiros tomos da sua edição crítica, não pretendi «julgar de sol a sol» ao modo dos alcaides régios, mas tão-só intentar breves reflexões, tal como avisava de inicio, a respeito do inegável contributo destas colectâneas no campo protogramatical, e simultaneamente prestar gratíssima homenagem ao consagrado Mestre de tantas gerações e meu também, que é o Prof. Doutor Avelino de Jesus da Costa.
As «altercações» com os textos foram calmas e largamente mais produtivas ou profícuas de que aqui transparece. Existem de facto outros ângulos de abordagem, mormente de relevância morfo-lexical, sintagmática e glotocronológica, que ficam para nova oportunidade. E assim não se prolonga em demasia um estudo que quis ser iniciatório; nem, calando-me no momento azado, haverá qualquer «baralhação», porque, se tal acontecesse, não chegaria decerto o morabitino prescrito no dito foral de D. Sancho II.
NOTAS:
(1) Cfr. Liber Fidei Sanctae Bracarensis Ecclesiae, ed. crítica pelo P. Avelino de Jesus da Costa, I, Braga, Junta Distrital, 1965, p. XI.
(2) Cfr. Liber Fidei, III, Braga, Junta Distrital, 1990, pp. 388-389.
(3) Cfr. Joseph Huber, Gramática do Português Antigo, trad. de Maria Manuela Gouveia Delille [Altportugiesisches Elementarbuch, Heidelberg, Carl Winters, 1933], Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1990.
(4) Cfr. Le Cartulaire Baio-Ferrado du Monastère de Grijó (XIe-XIIIe siècles), introduction et notes de Robert Durand, Paris, Centro Cultural Português, 1971.
(5) Cfr. Carl Erdrnann, «Papsturkunden in Portugal», em AbhandIungen der GeselIschaft der Wissenschaften zu Goettingen, Berlim, 1927.
Note-se que Erdmann transcreveu também diversos documentos do Liber Fidei, e muitos mais o Abade de Tagilde em Vimaranis Monumenta Historica, fontes estas não utilizadas por Joseph Huber; o mesmo se diga de António Brandão, Contador de Argote, Alberto Feio e outros, que Huber não cita.
(6) Cfr. Joseph Huber, o.c., p. IX.
(7) Cfr. Liber Fidei, I, cit., «Introdução», pp. XV-XVI.
(8) Cfr. Segismundo Spina, Introdução à ecdótica, Univ. de São Paulo, Editora Cultrix, 1977, p. 51.
(9) Cfr. Rosa Virgínia Mattos e Silva, Estruturas trecentistas Elementos para uma gramática do português arcaico, Lisboa, INCM, 1989, p. 51.
(10) A série enumerativa indica o tomo, o documento e o ano.
(11) Du Cange regista os verbos pariare e parire, ambos com o significado de «igualar», «pagar» (de par-ris), como acontecia no latim clássico quanto ao primeiro.
(12) Cfr. Le Cartulaire Baio-Ferrrado, supra, nt. 4.
(13) Esta terminação do relativo perdurou, aqui e além. Observa pertinentemente Clarinda de Azevedo Maia: «Em documentos galegos de meados do século XIII há alguns exemplos do pronome qui usado como sujeito e, quase sempre, sem antecedente explícito. É possível que nalguns casos se trate da própria forma latina [... ]; noutros casos, o contexto parece indicar tratar-se de uma forma galego-portuguesa [...]. Pode surgir também acompanhado de preposição e com antecedente expresso (cfr. História do Galego-Português. Estudo linguístico da Galiza e do Noroeste de Portugal desde o século XIII ao século XVI, Univ. de Coimbra/INIC, 1986, p. 694).
(14) Cfr. Rosa Virgínia Mattos e Silva, o.c. na nt. 9.
(15) Cfr. Joseph Huber, o.c. na nt. 3, pp. 222 e 375; José Joaquim Nunes, Compêndio de gramática histórica portuguesa. Fonética e morfologia, 8ª ed., Lisboa, Livr. Clássica Editora, 1975, pp. 331-332.
(16) José Joaquim Nunes diz-nos que o verbo ser resultou da fusão destes dois: «na. antiga língua tinham ambos vida independente, possuindo apenas de comum o futuro e condicional, imperativo, conjuntivo presente, infinito e gerúndio; na acepção de «estar sentado» usavam-se as formas próprias de sedere, na de «ser» as de esse, até que as daquele caíram em desuso e as comuns tomaram a significação deste» (cfr. o.c., p. 332, nt. 1).
Por seu turno J. Corominas, apontando os estádios semânticos de sedere desde «estar sentado», «estar colocado», «estar», «ser», atribui-os, por outras palavras, à confusão fonética gerada entre ambos os verbos (cfr. Diccionario crítico etimológico de Ia lengua castellana, IV, Madrid, Gredos, 1954, s.v. ser).
(17) Cfr. o.c., na nt. 9, p. 814, nt. 1.
(18) Cfr. ibid. na nt. 9, pp. 450-452 e 447-450.
(19) Cfr. Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram, ed. crítica por Mário Fiúza, 2 vols., Porto/Lisboa, Livraria Civilização, 1962 e 1966, s.v. baraliar.
Amadeu Torres, texto publicado na revista Theologica, 2ª série, 28, 2, 1993, pp. 343-352.