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Ensaios


A Pátria da língua – de Pessoa e de cada qual *

Com frequência pedem-me para falar sobre o ensino da língua, naturalmente o da língua portuguesa, em terras de diáspora; faço-o sempre com imenso gosto. Proponho neste caso o título de «A pátria da língua» em alusão mais do que explícita a essa famosa frase de Fernando Pessoa (pela boca do seu semi-heterónimo Bernardo Soares), a fim de prosseguir dois objectivos em simultâneo. Porque no meu público há pais entre os professores e professores que são também pais, pretendo apontar-lhes e frisar-lhes os valores e vantagens do ensino da língua portuguesa aos filhos. Mas, porque são adultos, quero acentuar-lhes a ideia de que a pátria em que vivem também tem a sua língua e o discurso de exaltação do português como língua a manter não pode acarretar consigo o seu oposto, a ausência de esforço para falar e aperfeiçoar a língua do país de acolhimento. Mas isso só haverá tempo de fazê-lo indirecta e implicitamente. Foi só a brincar que Eça de Queirós disse que deveríamos falar patrioticamente bem a nossa língua e patrioticamente mal a língua dos outros. Naturalmente porque aprendeu o inglês já tarde, nunca conseguiu dominá-lo bem, mas isso é outro problema a que adiante aludirei.

Gostaria por isso de começar por umas considerações genéricas sobre o fenómeno da língua e da sua aquisição como aquilo que chamamos língua materna, expressão resultante dos tempos em que os pais não achavam muito másculo isso de se porem a falar com os bebés e as crianças pequenas.

Ainda hoje prossegue aceso o debate entre o linguista Noam Chomisky e seus discípulos, defendendo a língua como uma capacidade inata, uma predisposição especificamente humana, contra os estruturalistas genéticos, considerando ser ela um resultado da adaptação do ser humano ao meio ambiente em luta pela sobrevivência (1). Não precisamos de começar tão ab ovo. Basta entrarmos apenas nessa altura em que uma criança começa a aprender a língua da sua casa. Vejamos então o que se passa.

A primeira constatação é uma verdade lapaliciana: a criança aprende a língua que se lhe ensina. Mandarim ou russo, croata ou português. Do ponto de vista objectivo, qualquer delas é uma língua com uma determinada estrutura desenvolvida e elaborada colectivamente ao longo de séculos e em poucos anos absorvida por uma criança. Também do ponto de vista meramente externo, nada justifica pensar-se que uma língua é superior a outra nem uma criança é mais ou menos inteligente por aprender esta ou aquela língua de berço. Como nós todos intuitivamente nos apercebemos ao rirmos com aquela história de uma senhora que foi visitar a França pela primeira vez e, ao voltar, contava entusiasmada à vizinha: «Sim, a Torre Eiffel é extraordinária, sinal de que os franceses são um grande povo para fazer coisas daquelas já há tantos anos, mas acredite que o que mais me impressionou e me fez pensar na inteligência daquela gente foi ver o que eles eram capazes de fazer com os filhos. Eu vi com os meus olhos criancinhas tão pequeninas já a falarem francês tão bem!»

Para compreendermos melhor, tanto quanto se pode, o que se passa no cérebro de uma criança ao aprender uma língua, será instrutivo demorarmo-nos um pouco na análise do fenómeno do sotaque ou da pronúncia.

Passa-se algo curioso, e muito significativo, em relação à pronúncia: a grande maioria das pessoas que iniciam a aprendizagem duma língua depois da puberdade não consegue adquirir uma pronúncia sem sotaque. As ciências cognitivas não conseguiram ainda explicar o fenómeno, mas a sua existência está por demais detectada. Obviamente, toda a criança em condições normais é capaz de reproduzir qualquer som ou série deles. É por isso que as crianças chinesas aprendem chinês e as francesas francês (2). Mais ainda, as crianças são capazes de aprender facilmente outras línguas, pois crê-se ilimitado o leque de sons e suas combinações que elas conseguem reproduzir sem esforço. A partir da puberdade, porém, a capacidade de reproduzir sons fica limitada ao leque aprendido até essa altura. Daí por diante, ao aprender uma outra língua, em regra a pessoa reproduzirá sem sotaque apenas as palavras cujos sons façam parte desse leque pré-existente. As outras serão reproduzidas com sotaque.

Algo, pois, deve passar-se no cérebro humano por altura dessa profunda transformação que é a entrada no mundo adulto (ou adolescente, se quisermos ser mais específicos, mas neste caso tal distinção não é importante) (3).

A razão da importância desse facto não tem a ver apenas com a aprendizagem das línguas. Há outros fenómenos muito profundos que devem ocorrer no cérebro humano nesse particular período da vida e que ainda hoje nos são inteiramente desconhecidos (4). Porque, ao contrário do que poderá julgar-se, a língua não só não está dissociada de outros domínios da actividade humana, como até lhes está profundamente ligada. Um deles é o domínio da cultura no sentido geral do termo, aquele em que hoje o usam as ciências sociais ou humanas e que se opõe a natureza.

Cultura é tudo o que é criado pelos seres humanos nas suas relações recíprocas e com a natureza. Assim, a linguagem como criação humana insere-se neste conceito de cultura. Ora, ao falar uma língua, uma pessoa não utiliza apenas um código abstracto de sons. As palavras e as frases referem-se a algo, significam alguma coisa. Não subsistem no vácuo, mas antes como imagem de uma realidade. Quando digo «casa», quem me ouve não ouve apenas um som. Também visualiza na sua mente uma determinada imagem de «casa». Essa imagem formou-se no cérebro a partir de sucessivas experiências na retina de realidades designadas por casas. Assim, a imagem que um minhoto faz de «casa» não é exactamente a que faz um esquimó ou um negro numa floresta africana. A imagem que cada um forma resulta da sobreposição de imagens da experiência. Nalguns casos, ela resulta não de uma imagem particular, mas de um conjunto de imagens, que por qualquer razão impressionaram mais fortemente o cérebro. De qualquer modo, o mundo a que se referem as palavras é mais importante do que elas. A diferença entre dizer-se «casa» em português, «maison» em francês, ou «house» em inglês é, no fundo, insignificante. O importante é a imagem particularizada da realidade casa, que cada indivíduo experimenta diferentemente. O mesmo se diga de «avó» e «grandmother», «mar» e «sea», «ilha» e «island». Quer dizer, as palavras são apenas a ponta do iceberg que assoma à superfície da água, enquanto a maior parte dele, imersa no subconsciente, permanece invisível.

Fiz atrás uma afirmação que carece de um pequeno desenvolvimento. Falei da intensidade especial de certas imagens no cérebro das pessoas. Ora ela acontece sobretudo na infância e na adolescência. São as primeiras imagens a serem registadas pelo cérebro, e impressionam-no tão fortemente que acabam por estabelecer com ele uma relação afectiva. Ou seja, nós começamos a habituar-nos a essas expenencias e gradualmente se vai em nós desenvolvendo afectividade em relação a elas. É isso que se passa com a família, com as pessoas amigas, com a nossa casa, e com a terra onde nascemos. Mas acontece também com a língua que falamos, a música que escutamos, os cheiros e a paisagem a que nos acostumamos e até com a religião em que nos criámos. Regra geral, todos esses elementos se entrelaçam num conjunto mais ou menos organizado de experiências, a que nos vamos habituando e pelas quais desenvolvemos gosto. Mais ainda, essas experiências passam a constituir a medida padrão que nos servirá para aferirmos a nossa relação afectiva com outras experiências novas. Quanto mais tempo estivermos expostos a esse complexo de experiências a que chamamos «cultura», mais profunda será a sua marca em nós. Parece mesmo que algo de idêntico se passa com a língua em relação à pronúncia. Até à puberdade, o carimbo da cultura em que nascemos de alguma maneira marca para sempre o nosso cérebro. A partir de então, quanto mais tarde se sai dessa cultura mais difícil se toma a adaptação a outras. Os nossos hábitos são já os nossos gostos, por isso vão determinar os nossos juízos de valor em relação às outras experiências. Uma coisa é a experiência da novidade que uma simples viagem traz, outra será já a transferência para um novo mundo cultural, como acontece quando se emigra. Os choques são grandes. O cérebro reage e só se adapta aos poucos e superficialmente. Uns vernizes em aspectos externos, umas concessões por necessidade, como será a sujeição a horários rigorosos e a ritmos duros de trabalho (5).

Quer dizer, pois, que quanto mais tarde se emigra, mais se leva na mente o lugar onde se vivia, mais se sente a falta daquilo que fazia parte do nosso mundo e se não pôde trazer connosco. É por isso que os emigrantes tentam reproduzir no seu novo universo o que não puderam transportar consigo na bagagem. Fazem-no a maior parte das vezes inconscientemente. Não é só a linguiça e as festas religiosas ou a música folclórica. São também os hábitos de convívio, o modo da relação familiar, a visão do mundo, a escala de valores que lhes dita as prioridades na vida e tudo o resto. Se vão para um novo espaço recomeçar tudo, recriam aí as instituições sociais do país que deixaram. Assim foi a sociedade brasileira moldada à imagem e semelhança da portuguesa. Até a arquitectura, tanto quanto o permitiram os meios, os materiais e o novo clima, reproduziu a de Portugal. Os ingleses fizeram o mesmo na América do Norte e os espanhóis no México e em toda a América Latina. Até no nome, muitas vezes essa reprodução aconteceu: Nova Lisboa, em Angola; Nova Inglaterra, na América; e Nova Iorque que fora antes Nova Amesterdão, quando os holandeses a fundaram. Mas isso aconteceu sempre. Já Nápoles foi assim chamada pelos gregos da diáspora, que a fundaram com o nome de Neapólis, Cidade Nova (6).

À língua, como mera parte integrante da cultura, aplica-se tudo o que atrás fica dito.

A minha experiência ensinou-me a dar atenção às cartas ao director de jornais e revistas, pois revelam inúmeras vezes pontos de vista de pessoas altamente inteligentes mas a quem só dá para escrever assim em breves pílulas enviadas à redacção. Recentemente, na revista The New Yorker, deparei com esta carta:

Like every Russian who lives abroad, until recently 1 thought that being Russian gave me a very particular angle of vision, superior to that of American, on the affairs of my native country. However, David Ramnick's farewell to Joseph Brodsky («Perfect Pitch», February 12th) and his «Letter from Russia» («Gorbachev's Last Hurrah», March 11th) shook my sense of superiority. Too often, we Russians fall into an imperial trap of thinking that only we can understand ourselves. So we don't like our Pushkin to be touched by others, and we think that Dostoyevski believed that Russians are probably backward, but that we have souls. Perhaps it is time for us to reconsider this «universal truth»; one could amend it to: «We are probably backward, because we think that only we have souls». (7)

Não poderia arranjar melhor introdução para o caso de Fernando Pessoa e a sua frase citada quase até ad nauseam «a minha pátria é a língua portuguesa». Publiquei há quase dez anos um longo ensaio tentando desfazer a ideia de que Fernando Pessoa, tendo vivido na África do Sul em criança e na adolescência, por patriotismo recusara o inglês e optara pela língua portuguesa, conforme nos quis fazer aceitar um certo chauvinismo colectivo que nós portugueses, tal como os outros povos, também temos (8). Comentava então nos seguintes termos a confissão das emoções sentidas por Pessoa/Bemardo Soares ao ler um texto de Antônio Vieira.

Pessoa ouve no seu íntimo o verbo de Vieira. «Aquela grande certeza sinfónica» entra em sintonia com o que está impresso no seu subconsciente. Não é apenas a infância (que Pessoa até diz não ser), mas o registo de uma música – a da língua – que, por processos ainda hoje inextricáveis, como que imprime carácter, por chegar ao cérebro primeiro do que qualquer outra, e vai servir pela vida fora de som-padrão, com uma melodia e ritmo próprios que reagirão sempre num movimento de identificação de cada vez que sintonizar com outra melodia entoada nesse tom ou nesse comprimento de onda, ou nesse mesmo código, se se preferir. Pessoa, ao ouvir ainda na memória o português de Vieira, foi tocado nas estruturas profundas dos seus registos linguísticos e sintonizou, empatizou com ele, sentiu nele algo de seu. Sentiu-se em casa. Não se «naturalizou» nesse momento, como sugere João Gaspar Simões. A naturalização é o processo de adopção de uma pátria que não é a nossa e, para mais, na maior parte das vezes essa naturalização (adopção) é apenas legal. Pessoa não se naturaliza. Reconhece existir algo fundamental entre ele e essa língua. Identifica-se com ela. Em traços largos, identificar-se significa estabelecer-se a igualdade entre duas realidades. No caso, a identidade entre o eu de Pessoa e a língua de Vieira. Evidentemente que o «eu» não se reduz apenas à Língua, mas essa língua é parte constituinte essencial do eu e daí a identificação. Pessoa reconhece-se na sua língua e nela se sente em casa (9).

Este fenómeno do nosso relacionamento com a língua da nossa casa repete-se no dia-a-dia das comunidades portuguesas no estrangeiro. Há uma dúzia e meia de anos escrevi um livro de contos – (Sapa)teia Americana – onde vários textos tratam exactamente desta problemática. Um deles tem um título que, depois do que atrás ficou dito, se tornará agora óbvio – «Era-lhe pátria aquela língua». E a história de um descendente de portugueses que na Bermuda raramente ouvia falar o português que aprendera na sua infância. Foi a Lisboa e descobriu um café onde gente se sentava todo o dia a falar um belo português que o encantava tal como o discurso de António Vieira fascinava Fernando Pessoa/Bemardo Soares. O bermudense mandava pagar bebidas a esse grupo de falantes/faladores para que continuassem a falar. E ele, anónimo no canto do café, enternecido, quase chorava de emoção ao ouvir aquela tão bem falada língua (10). Mais doce ainda é a história de um jorgense, antigo trabalhador na Brown University, que regressou aos Açores. Desconhece que o fiz personagem de uma das histórias da (Sapa)teia. De passagem em S. Jorge dos meus encantos, fui uma vez procurá-lo. Conversávamos longamente naquela paz congénita da sua ilha e ele pôs-se a discorrer sobre a sua experiência com línguas:

«Sabe? Eu antes de ir para a América estive seis anos na França e nunca consegui aprender mais do que umas palavrinhas para casos de muita necessidade. Depois, fui para a América e lá fiquei oito anos. Foi ainda pior. Yess, shôa e pouco mais. Agora o português, senhor professor, eu não sei porquê, mas... caiu-me, bem.»

É isso mesmo. Por isso nos cai bem ouvir os nossos filhos falar português. Sabe-nos como nos sabe um caldo verde, um vinho da terra, um cheiro a criptoméria ou uma bacalhoada, a música do «Alecrim aos molhos», do hino nacional ou do Espírito Santo, ou de uma canção da nossa infância, a paisagem da seara alentejana, uma latada de vinha no Douro ou o mar açoriano, todos os elementos que penetraram os nossos sentidos na infância fixando-se-nos no cérebro e arvorando-se em metro-padrão internacional do que é bom e do que não é tão bom ou do que simplesmente achamos que não presta, porque aquilo que nos habituámos a apreciar é que passa a ser a medida do mais. Exactamente como explicou o antiquíssimo grego Protágoras: o homem é a medida de todas as coisas; das que são, que elas são; das que não são, que elas não são (11).

E por acharmos serem boas as coisas que são nossas é que queremos passá-las àqueles a quem mais queremos: os nossos filhos. E é por isso que é perfeitamente legítimo que pretendamos transmitir-lhes a nossa língua. Compreende-se agora que, quanto mais cedo isso acontecer, maior será a probabilidade de ela constituir para eles uma língua de berço. Mas sabemos que as realidades são outras. A pátria deles não é mais a nossa e eles têm direito a ela e à língua dela. Nada justifica porém que esse cordão umbilical seja cortado, pois é bem possível criar um ambiente sadio em que o inglês e o português prosperem conjuntamente (12). Pode exigir um pouco de sacrifício da nossa parte, mas garante-nos depois podermos assegurar uma continuidade cultural para que nos sentimos inconscientemente impulsionados. Todos nós queremos continuar-nos nos nossos filhos. E quase todos nós vamos a Portugal de vez em quando. Para quem pode, essa é a melhor maneira de ensinar a língua aos filhos porque eles aprendem simultaneamente a língua, a cultura e o amor a ambas e às gentes com quem estabelecem relações de amizade família e amigos. Não será porventura um português perfeito. Talvez um português de sobrevivência, que assim lhe costumo chamar. Mas com as suas delícias linguísticas, como espero ter demonstrado sobretudo no meu Ah! Monim dum Corisco!... (13)

Jorge de Seria escreveu este belíssimo poema ditado por um certo desânimo realista de quem se rende às evidências de que a pátria da língua dos nossos filhos não é mais a nossa:

Ouço os meus filhos a falar inglês
entre eles. Não os mais pequenos só
mas os maiores também e conversando
com os mais pequenos. Não nasceram cá,
todos cresceram tendo nos ouvidos
o português. Mas em inglês conversam,
não apenas serão americanos: dissolveram-se,
dissolvem-se num mar que não é deles.
Venham falar-me dos mistérios da poesia,
das tradições de uma linguagem, de uma raça,
daquilo que se não diz com menos que a experiência
de um povo e de uma língua. Bestas.
As línguas, que duram séculos e mesmo sobrevivem
esquecidas noutras, morrem todos os dias
na gaguez daqueles que as herdaram:
e são tão imortais que meia dúzia de anos
as suprime da boca dissolvida
ao peso de outra raça, outra cultura.
Tão metafísicas, tão intraduzíveis,
que se derretem assim, não nos altos céus,
mas na caca quotidiana de outras. (14)

Mas não terá que ser forçosamente assim. Ainda recentemente li um ensaio de um aluno japonês-americano. Sente-se culturalmente como pertencendo a dois mundos, embora, já em quarta geração nos Estados Unidos, não se expresse muito bem na língua dos seus tetra-avós emigrantes. Mas foi delicioso verificar a ternura com que falava da cultura em que a sua família se insere. E nós, nos Estados Unidos e Canadá, apesar de aqui no Canadá não remontarmos tanto atrás, temos também tantos exemplos nossos de pais que lutaram contra tudo e contra todos quando não havia meios nenhuns. Hoje eles abundam. Pode é faltar vontade. Mas se estamos aqui hoje, é porque a nós ao menos ela não falta.

Não há, portanto, nenhuma razão (quer dizer, nenhuma boa razão) que possa impedir os portugueses do Canadá de defenderem a continuidade da sua identidade através do ensino da sua língua materna aos filhos. No caso dos portugueses do Québec, trata-se mesmo de um direito tão legítimo quanto o que os franceses québecois lutaram por obter face à dominação inglesa.


NOTAS:

(1) Ver M. Piatelli-Palmarini, ed., Language and Learning: The Debate Between Jean Piaget and Noam Chomsky (Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1980). Existe uma tradução brasileira publicada pela Editora Cultrix da Universidade de S. Paulo com o título: Teorias da Linguagem, Teorias da Aprendizagem, 1983.

(2) As crianças que aprenderam uma língua e, por qualquer razão, deixaram de a falar para só a retomarem na idade adulta, não só reaprendem essa língua com enorme facilidade, como também conseguem falá-la praticamente sem sotaque, dependendo a sua execução do nível de perfeição em que falavam a língua enquanto crianças.

(3) Estas generalizações são baseadas nas minhas experiências, mas essas experiências têm sido tanto quanto possível confrontadas com as teorias em circulação nas obras da especialidade. Sobre o caso específico da aprendizagem de uma língua estrangeira, nunca encontrei em parte alguma razões convincentes que explicassem as generalizações acima feitas. Já quando este texto estava concluído e na redacção encontrei uma confirmação da minha evidência negativa. À pergunta: «Porque é que o ensino de língua a adultos é tão difícil, enquanto as crianças aprendem tão depressa uma língua sem nenhuma instrução?», Noam Chomsky respondeu: «Os cientistas desconhecem a resposta. Algo deve acontecer no cérebro por alturas da puberdade. Ninguém sabe muito sobre isso, mas não seria um facto surpreendente. A maioria das capacidades biológicas tem um tempo específico durante o qual elas devem funcionar e não funcionam nem antes nem depois desse períodos.» (Noam Chomsky, Language and Problems of Knowledge. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1988, p. 179).

(4) Uma vez, um aluno a falar com imensa dificuldade, apresentou-se-me dizendo que era surdo-mudo, embora conseguisse fazer-se entender devido a treinos que recebera em escolas especializadas. Não ouvia absolutamente nada, mas sabia ler nos lábios e, por isso, pedia-me que, se eu o autorizasse a frequentar a cadeira, fizesse um esforço para falar sempre voltado para os alunos, a fim de ele poder ver-me a boca. Aceitei-o naturalmente. No fim da aula, tinha uma grande curiosidade em saber até que ponto o Eric conseguira perceber-me. «Quase tudo» – respondeu-me. «Mas foi preciso prestar muita atenção pois tive alguma dificuldade com o seu sotaque.» (Referia-se à minha pronúncia em inglês.)

Não era graça. Era mesmo a sério. O Eric não ouvia nada (nem sequer um telefone a tocar bem junto dele) e «ouvira» o meu sotaque, isto é, «vira-o» nos meus lábios.

Nesse momento, eu apercebi-me de algo completamente novo e que nunca ouvira em parte alguma: as diferenças de pronúncia, os sotaques, resultam, pelo menos em grande parte, de diferentes colocações dos músculos da boca. Daí que o sotaque tenha implicações mais fundas, já que as movimentações da boca não estão desligadas do resto do corpo. (Mas isto é tema para um outro artigo.)

(5) Surgiu há pouco tempo uma excelente síntese sobre o fenómeno da língua. Trata-se de The Language Instinct. How the Mind Creates Language, de Steven Pinker (New York: Harper Perennial, 1995. A visão de Pinker corrobora com dados da investigação científica contemporânea a perspectiva aqui delineada.

(6) Alguns dos parágrafos precedentes extraí-os de um meu ensaio previamente publicado numa revista de publicação ocasional e de difícil acesso, justificando-se assim a sua reprodução aqui: «Estruturas culturais profundas? – a propósito do duplo regresso dos emigrantes», Revista da Semana Cultural de Velas (1992), pp. 86-90.

(7) The New Yorker, 15 de Abril de 1996.

(8) «Sobre o sentido de "A minha pátria é a língua portuguesa" (Pessoa / B. Soares)», Colóquio-Letras, nº 97 (Maio-Junho, 1987) pp. 37-47.

(9) Idem, p.42. Pessoa foi de facto um caso especial. Para esclarecimento das dúvidas suscitadas pelas aparentes contradições entre o que dele aqui se diz e das crianças imigrantes em geral, recomenda-se a leitura desse ensaio.

(10) Ver Onésimo Teotónio Almeida, (Sapa)teia Americana (Lisboa: Vega, 1983), pp. 97-109.

(11) Seria divagar demasiado se entrássemos aqui na questão da língua e do pensamento e do por vezes exagerado papel atribuído à língua na formulação das nossas ideias e até mesmo na nossa concepção do mundo. Ver alguns textos clássicos como Language, Thought and Reality. Selected Writings of Benjamin Lee Whorf. Edited by John B. Carroll (Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1987; Lev Vygotsky, Thought and Language. Newly revised and edited by Alex Kozulin (Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1986). Da interminável bibliografia sobre a chamada hipótese de Sapir-Whorf sugere-se Emily A. Schultz, Dialogue at the Margins. Whorf Bakhtin, and Linguistic Relativity (Madison, WI: The University of Wisconsin Press, 1990). Mas uma revisitação desta questão espero poder fazê-la num ensaio à parte.

(12) A bibliografia sobre o bilinguismo é inúmera. Os interessados não-iniciados poderiam usar como introdução a obra Mirror of Language: The debate ou bilingualism, de K. Hakuta (New York: Basie Books, 1986).

(13) 2ª edição (Ponta Delgada: Signo, 1991).

(14) «Noções de Linguística», Versos e Alguma Prosa de Jorge de Sena. Prefácio e selecção de Eugênio Lisboa (Lisboa: Arcádia e Moraes Editores, 1979), p. 110.


* Texto elaborado a partir de duas versões anteriores lidas no simpósio «Pais e Professores», organizado pelo Consulado Geral de Portugal em Toronto e realizado na Universidade de Toronto, Canadá, em Maio de 1996, e, em francês, no colóquio «Pourquoi apprendre le portugais aujourd'hui», organizado pela Section d'Études Portugaises et Bréziliennes de l'Université de Montréal e realizado em Novembro de 1996.

Deixei deliberadamente inalteradas no texto as suas marcas de oralidade. A leveza de uma escrita destinada a ser lida em público não implica necessariamente a superficialidade do seu conteúdo. Assim o espero, pelo menos.

Onésimo Teotónio Almeida, texto publicado na Revista da Faculdade de Letras, nº 21-22 – 5ª Série, 1996/1997, pp. 15-21.

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