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Ensaios


Em busca de clarificação do conceito de Identidade cultural – O caso açoriano como cobaia (1)

Studies in Modern Philosophy

"The purpose of this course is to demonstrate conclusively that nothing is. Conducted by Professor Rensalier, author of The Knowledge of Null and editor of the Negative Absolute Quarterly, the class will examine such questions as "why?" and "why not?" A prime object of this course is to help students with an identity crisis discover there is no such thing as identity."

Catalogue of Courses: Aquarius University (2)

A questão da identidade foi assunto pouco querido das ciências sociais pós-Segunda Guerra. Os motivos percebem-se. Por um lado, o medo dos exageros nacionalistas, já que a questão estava colada a essa outra do carácter nacional, que teve na ideologia nazi o seu mais horripilante expoente. Mas houve, suponho, duas outras razões curiosas: o marxismo nunca viu com bons olhos o relativismo cultural e muito menos o relativismo ético. Para além de constituir um desvio teórico das concepções universais da história e da natureza humana, era também um desvio metodológico que só atrasaria e complicaria a obtenção dessa sociedade das diferenças abolidas. A outra razão não é menos curiosa: as ciências sociais anglo-americanas, de tradição weberiana, desdenharam também o problema da identidade. Procuraram leis do comportamento humano pressupondo que ele seria uno e único, desde que as devidas instituições estivessem em funcionamento. Os cientistas sociais do mainstream anglo-americano deram, e dão, sucessivas provas de ser essa a sua perspectiva. Um pequeno exemplo, que nos diz respeito por tocar no caso português, é o de uma recente recensão por Walter Opello de um livro português sobre a identidade nacional, por sinal cheio de ideias mas muito atabalhoado e pouco preocupado quer com dados estatísticos quer com rigores de linguagem. O politólogo resumiu as teses do livro, que insistiam nas virtudes e sobretudo nos defeitos nacionais, ajuntando-lhes o seguinte comentário:

«The problem that this book has, of course, is that like all national character studies, it seeks to explain the level of Portugal's development without considering any of the structural variables, internal and external of the State, that can be pointed to as causal to that situation. Moreover, it ignores completely the argument that Portugal's "historic personality" may have been produced by powerful state institutions rather than absent fathers. My impression is that Portugal in 1994, thanks to the country on account of European Union membership, is being rapidly transformed into the capitalist society the author hopes it will become. As far as I can tell this has happened despite the continuation of machismo, saudades, and masculine café society.» (3)

Hoje, porque nenhuma das tradições anteriores consegue explicar o fenómeno do nacionalismo que por todo o lado pulula, volta a ser aceitável falar-se de identidade. Livros como Imagined Communities (4) e The Invention of Tradition (5) entram nas bibliografias de toda a gente e não me admira que um outro, recentemente publicado, Jewish Identity (6), encontre o mesmo eco, a julgar pelo calibre do elenco dos seus colaboradores, que inclui Hilary Putnam e Joseph Margolis. Mas a lista recente de livros sobre esta problemática é enorme (7). As razões deste ressurgimento prendem-se em parte, parece-me, com a necessidade de preencher o vazio deixado pelo pós-modernismo. A fragmentação que se operou nas então sólidas visões do mundo – cristã, marxista, liberal – provocou uma espécie de tentativa de salvamento em que cada indivíduo procura agarrar-se aos grupos com os quais sente alguma identificação. Nos Estados Unidos, por exemplo, o género e a etnia (no caso dos negros, a raça) surgiram como potentes focos de identidade.

Nesta comunicação, porém, cingir-me-ei ao problema teórico da identidade, que, como acontece com o autor e o crítico do livro atrás citados, é frequentemente reduzido a esse outro, famigerado, do carácter nacional, o qual, diga-se, ao menos no meu entender, deveria ser substituído pelo conceito de características culturais. Mas a justificação dessa alternativa já a fiz noutro lugar (8).

O filósofo inglês Thomas Reid, ao reflectir sobre o problema da identidade, num livro publicado em 1785, e na sequência do que, um século antes, propusera John Locke, escreveu:

«Se me pedem uma definição de identidade, confesso que não posso dar nenhuma; é uma noção demasiado simples para admitir uma definição lógica, mas não consigo encontrar palavras para expressar as diferenças específicas entre este e outros conceitos, embora eu não corra o perigo de confundi-lo com outro qualquer» (9).

David Hume sentiu também dificuldades semelhantes a ponto de, contra a sua própria experiência, ser levado a negar a possibilidade de se falar inteligentemente sobre o conceito de identidade pessoal. No terceiro volume do seu Treatise of Human Nature, ao voltar a reflectir, num apêndice, sobre as suas próprias posições explanadas no primeiro volume dessa obra, afirma:

«Mantive algumas esperanças de que, por deficiente que pudesse ser a nossa teoria do mundo intelectual, ela estaria livre de contradições e absurdos, que parece espreitam qualquer explicação que a razão humana possa dar do mundo material. Mas após uma revisão mais cuidadosa da secção sobre a identidade pessoal, eu encontro-me num tal labirinto que, devo confessar, não sei nem corrigir as minhas anteriores opiniões, nem torná-las consistentes» (10).

Trezentos anos depois de Locke, os problemas conceptuais continuam insolúveis. Derek Parfit confessa mesmo que "não há resposta para perguntas sobre identidade" (11).

Se é esta a situação para o problema da identidade pessoal ou individual, que dizer então da identidade colectiva? O labirinto de que fala Hume é a única imagem que me ocorre. Foi, aliás, essa mesma que tomou Octavio Paz quando, sem qualquer ligação com os filósofos ingleses acima mencionados, a considerou, na sua reflexão sobre identidade mexicana, "uno de los simbolos míticos más fecundos y significativos" 12, a ponto de usá-la no próprio título do seu famoso livro – El Labirinto de la Soledad.

Não é necessário irmos muito longe para encontrarmos um eco dessa metáfora. Eduardo Lourenço serviu-se igualmente dela para título do seu belo livro de ensaios sobre a identidade nacional portuguesa – O Labirinto da Saudade (13).

Nem Octavio Paz nem Eduardo Lourenço se debruçam nesses mencionados livros sobre as questões filosóficas que a definição do conceito de identidade levanta. As suas reflexões são determinadas por aquele sentimento que tanto Thomas Reid como Derek Parfit admitem não poder eliminar: o de que a questão prática (existencial) é real e dela não podemos fugir – Thomas Reid admite mesmo que usava o termo identidade "por conveniência de linguagem" (14). E é isso que ainda hoje continuamos a fazer, tal como acontece com outros conceitos. Não existe acordo, por exemplo, quanto ao de inteligência e não deixamos de usá-lo por isso.

É, com efeito, no plano existencial que a questão se nos põe e nos amarra. Se não a toda a gente, nem do mesmo modo ou com igual intensidade, pelo menos ela toca um segmento importante de pessoas. Mas basta que se ponha a algumas.

No plano colectivo, a situação é idêntica. Ainda que teoricamente tudo seja imensamente mais problemático do que no plano individual, os debates sobre as identidades nacionais e culturais, longe de desaparecerem, intensificaram-se nos últimos anos. Sirvamo-nos como referência de um volume exactamente sobre a identidade colectiva, e proveniente de uma tradição cultural não anglo-americana – a francesa: Identités Collectives et Changements Sociaux (15). Trata-se das actas de um colóquio sobre o tema, realizado em Toulouse em 1979. Logo na introdução, Pierre Tap, o coordenador do volume, escreve:

«A noção de identidade que serve aqui de fio de Ariadne (16), de suporte, de ponto de mira ou de alvo, é particularmente difícil de circunscrever devido ao seu carácter polissémico e à riqueza das suas conotações. Mas esta dificuldade não é puramente linguística e intelectual. Ela está exacerbada pelas implicações ideológicas que encerra, os problemas e conflitos individuais ou colectivos que desvenda» (17).

No debate filosófico sobre a identidade individual, atrás referido, apesar das diferenças, ressaltam alguns elementos que, de um modo ou de outro, devem ser integrados no conceito de identidade. Todos eles foram apontados por Locke: a memória, a consciência (mais exactamente, consciousness (18)) e a continuidade. Esses mesmos elementos surgem sistematicamente nas reflexões contemporâneas sobre a identidade colectiva, como se poderá verificar nos textos escritos pelos participantes desse colóquio de Toulouse. Marie-Claude Groshens, por exemplo, afirma que "a constituição de uma memória social é um elemento indispensável na produção da identidade de uma colectividade" (19). Ela própria se dedica, nesse seu estudo, a analisar alguns elementos constitutivos dessa memória numa comunidade para, como diz, "se agarrar a matriz da sua identidade" e permitir-lhe "tomar-se sujeito do seu próprio destino histórico" (20).

Deixemos de lado essa veleidade de uma comunidade se "tornar sujeito do seu destino histórico" e concentremo-nos no facto de que, quer o conceito de identidade seja teoricamente indefinível (como Hume admite), quer não, na prática as comunidades sentem e encontram-se na sua memória social, por razões que hoje cada vez melhor vamos conhecendo graças aos avanços das ciências cognitivas. Trata-se de uma realidade que se não pode escamotear. Apesar das sucessivas e veementes rejeições por parte dos cientistas sociais depois da Segunda Guerra Mundial, o conceito de identidade nacional reaparece com força mesmo dentro de uma Europa que, paradoxalmente, se quer unir. Um dos participantes do citado colóquio, Edmond Marc Lipiansky, fala sem rodeios da importância de se "analisar a representação da identidade nacional", o que, para ele, significa "explorar a relação imaginária que uma sociedade entretém consigo própria e com os seus vizinhos; e mostrar o apoio que uma tal representação fornece às estratégias do grupo social que a engendra; e explicar de que modo as imagens que suscita podem captar o desejo daqueles a quem se dirige e congregá-los à volta dessas estratégias'" (21). Lipiansky é o mesmo autor de um livro que recupera em título esse conceito de "alma nacional" há muito posto fora de circulação – L'Âme Française ou le National-Libéralisme (22).

Mas encerremos esta já longa digressão teórica com pelo menos uma definição operacional de uma realidade que, como tantas outras da experiência humana, temos dificuldades em explicitar com exactidão, mas que sentimos ser real. Parece-me reunir condições de operacionalidade a seguinte proposta de Groshens:

«Para além do inventário dos traços objectivos (aparência física, língua, costume, atitudes e comportamentos...) ou dos traços subjectivos (representação, vontade, imaginação, sentimentos específicos...) a produção da identidade de um grupo implica a sua capacidade de se reconhecer nesses traços. Esta capacidade resulta de um complexo de "sentimentos – representações – vontades – imaginações" cujo conteúdo se liga exclusivamente com a identidade; ela nasce do redobrar reflexivo (no sentido sartreano do termo) na sequência do qual o que à partida era da ordem da determinação experimentada conscientemente ou não – se transforma em autodeterminação consciente e voluntária» (23).

Como se vê, tudo isto está bem próximo do que sobre a identidade individual vêm dizendo os filósofos ingleses. Num famoso ensaio publicado em 1940, H. P. Grice, na sequência de Locke, afirmava que "o eu (the self) é uma construção lógica e é definível em termos de memória", (24). Transposta para o plano da identidade colectiva, a reflexão francesa citada acrescenta-lhe a dimensão de utilização consciente duma realidade experimentada pelos grupos humanos e por eles complexamente construída.

Antes de prosseguirmos, será conveniente referir que, juntamente com o supracitado conceito de características culturais, prefiro usar também o de identidade cultural em vez de identidade nacional. As razões parecem-me óbvias: o conceito de estado está, na prática, misturado com o de nação e todos sabemos que às alterações provocadas por vicissitudes históricas nas fronteiras dos estados não correspondem concomitantes alterações da nação. Por isso, e para podermos falar com mais rigor em termos de psicologia social, seria preferível substituirmos a expressão "identidade nacional" pela de "identidade cultural". Ser-nos-ia assim mais fácil falar de identidade cultural basca, flamenga, ou quebécoise, evitando assim a terminologia inexacta e politicamente mais comprometida de identidade espanhola, belga ou canadense. De qualquer modo, usando ou não a terminologia tradicional, será sempre dentro desses parâmetros conceptuais que falarei de identidade.

Para sair um pouco destas abstracções, esquematizarei muito superficialmente o caso cultural açoriano mais ou menos dentro do paradigma acima delineado, mas em moldes não rígidos – faço questão de sublinhar – dada a referida natureza, vaga e dificilmente definível, destas realidades.

Lipianski fala de dois grandes domínios a partir dos quais um grupo constrói a sua identidade: o da determinação experimentada e o da auto-determinação consciente e voluntária. Em termos mais explícitos, a determinação experimentada significa o conjunto de experiências a que foi exposto um indivíduo na sua vida – no caso, um açoriano. (Recordo aqui que o que conta fundamentalmente é a experiência da infância e adolescência, mais ou menos até ao princípio da idade adulta (25). Além disso, a experiência de um indivíduo não se limita ao que fisicamente o rodeia. Há todo um mundo maior que, de diversas maneiras e cada vez mais, penetra esse microcosmo açoriano. Para não falar já das experiências tidas fora desse mundo, e que são sempre, de um modo ou de outro, incorporadas na mundividência e na identidade de cada um. Mas trata-se aqui de delinear os parâmetros dentro dos quais a maioria dos açorianos vive as suas experiências mais marcantes.)

Nesse domínio, e seguindo ainda mais ou menos de perto Lipianski para não complicarmos desnecessariamente esta análise esquemática, temos:

1 – Ordem física

– a insularidade (o mar, o isolamento)

– o vulcanismo

– o clima (o nevoeiro, a humidade, a pressão atmosférica)

– a paisagem (a orografia, a flora, a luminosidade, as cores)

– outros elementos como os sons, o silêncio, etc.

2 – Ordem cultural (26) (no sentido antropológico) – língua (linguagem – léxico, sotaques, etc.)

– social (este domínio engloba todo o modo geral de estar no mundo (27))

– religioso (festas como as do Espírito Santo, Santo Cristo, manifestações como os romeiros)

– criativo/artístico:

a) música (folclore, que inclui as cantorias ao desafio e as "velhas")

b) artes (arquitectura, incluindo a popular, artesanato)

c) literatura (que incluiu o romanceiro, o folclore oral e a poesia popular)

d) cozinha

(A lista não pretende ser exaustiva.)

No domínio artístico/criativo existem níveis dos quais se destaca o impropriamente chamado "erudito" ou "culto" (de "cultura" no sentido de "alta cultura"). Se cada grupo humano não é um mero reprodutor e imitador do modelo cultural que recebeu, alguns grupos vão mais longe no desenvolvimento de uma ou mais facetas da sua actividade. Nalguns casos, chegam a ponto de ser originais em relação ao já feito por outras culturas do círculo ou ramo a que pertencem, ou a ser mesmo originais em absoluto.

Há aqui a considerar dois planos importantes, sempre no que diz respeito à identidade: o do criador e a sua relação com o seu mundo; e o de qualquer açoriano com a obra desse criador. Um exemplo: Vitorino Nemésio comporta-se diferentemente de Antero em relação ao papel que os Açores têm na sua obra, mas um açoriano de hoje coloca-os a ambos na sua lista de referência açóricas, porque a sua grandeza constitui um desses elementos positivos de que as pessoas se servem para com eles se associarem – "é um dos nossos" (28). Vejamos o que, no campo das letras e artes, se passa com o criador em relação ao seu mundo. (No campo das ideias e da ciência, a ligação aos elementos locais é menos importante, ou quase mesmo sem importância, dependendo de se tratar de teoria política, filosofia ou física.) Parece haver três tipos gerais de comportamento nestes domínios:

1º O que expressa de modo esteticamente mais elaborado esses elementos do mundo físico e social, Três exemplos de diferentes áreas:

Na pintura, Domingos Rebelo; na música, Tomás Borba; na ficção literária, Nunes da Rosa e Florêncio Terra.

2º O que se expressa em termos menos ligados ao mundo sóciocultural geograficamente localizado, mas trata de realidades a que impropriamente se costuma chamar "universais". Três exemplos:

Nas ideias e na poesia, Antero; na música, Francisco Lacerda; nas artes plásticas, Canto da Maya (29).

3º O grupo dos que, ou fazem simultaneamente as duas coisas, ou alternam períodos em que fazem uma ou outra. Exemplos:

Na poesia, Roberto de Mesquita, Nemésio e Côrtes-Rodrigues: na pintura, Antônio Dacosta; nas ideias, Teófilo de Braga (30).

É, pois, a todo este elenco, que inclui as próprias personalidades criadoras das obras que reflectem ou não o mundo físico-social dos seus autores, que cada indivíduo vai, consciente ou inconscientemente, buscar os elementos com os quais constituirá a sua identidade (31). Mas o mesmo fenómeno se passa com qualquer indivíduo ao acumular na sua infância e adolescência as experiências de que se servirá para seleccionar e compor a sua identidade. Sabemos que essa construção é selectiva. Algumas achegas pertinentes e que poderão ajudar-nos a compreender o processo encontram-se, por exemplo, em The Past is a Foreign Country, de David Lowenthal (32), e em How Societies Remember, de Paul Connerton (33). Por um processo em regra inconsciente, cada indivíduo selecciona, conforme a sua maneira de ser e circunstâncias do seu desenvolvimento, a sua experiência passada em relação a cada um desses elementos, e as suas aspirações e ideais, que dizem respeito então ao domínio da intencionalidade (34).

Sociologicamente sabemos que há indivíduos que se fixam mais na experiência passada e outros na do futuro (a política, por exemplo, pertence mais ao domínio do futuro). Sabemos também que o grau de intensidade dessa identificação individual com qualquer desses elementos varia de indivíduo para indivíduo.

Temos então que, devido ao facto de o ser humano ser um animal social, e de preferir associar-se àqueles com quem mais elementos partilha, surge assim o fenómeno da identidade colectiva (35).

Há países mais inclinados do que outros à reflexão sobre a identidade. Na Alemanha (36), ela é uma obsessão recorrente. Mas há muitos outros, como a Argentina ou o México, por exemplo (37). Ou o Canadá, onde se diz em graça que a questão da identidade nacional deve ser o segundo tema dominante nas conversas dos canadianos, só ultrapassada pelo hóquei em gelo (38). Na vizinha Espanha, o debate vem de longe (39).

Entre nós, a questão é igualmente obsessiva (40). "Portugal, a questão que nós temos connosco mesmos", escreveu Alexandre O'Neill. Para os açorianos, todavia, ela é a questão que nós temos connosco mesmos e com Portugal.

Detenhamo-nos, pois, um pouco mais no caso dos Açores.

Não será necessário vir demonstrar aqui que a história dos Açores deixa bem nítida, na mente de quem para ela olhar com alguma atenção, a existência dessa consciência de identidade cultural. Ela aflora com pujança e clarividência em muita da sua literatura, mas também das suas outras manifestações artísticas, da sua reflexão antropológica, sociológica e histórica em geral. Para não falar da política, que não nasceu por geração espontânea, nem subsiste no vácuo. Publiquei não há muitos anos um livro onde julgo ter demonstrado a existência de uma forte identidade cultural açoriana – Açores, Açorianos, Açorianidade (41). Não repetirei por isso aqui, nem resumirei sequer, o que já disse. Limitar-me-ei a usar um argumento de autoridade. Recorrerei a Eduardo Lourenço, a quem dificilmente alguém negará o lugar cimeiro entre os intelectuais portugueses vivos que se têm debruçado sobre a identidade nacional portuguesa – e daí o carácter de insuspeito e a força do argumento de autoridade ao referir-se ao caso açoriano. Disse Lourenço nos Açores ao ser-lhe pedido que falasse num colóquio sobre autonomia regional:

«Eu sei – e se o não soubesse a realidade histórica e mítica do arquipélago mo lembraria – que não estou precisamente em Viária do Castelo nem em Bragança que não são definidas na Constituição como regiões autónomas (e que o fossem...) mas nos Açores, território e realidade singular no espaço de raiz e invenção portuguesas a que nos séculos, a distância e os homens imprimem uma identidade particular.

(...)

Só o caso dos Açores me parece representar a forma mais pura do autonomismo, quer dizer, de um estatuto à parte no conjunto nacional, fundado num sentimento de diferença de estrutura positiva e não meramente ressentida, diferença que existe e deve ser preservada nos termos que são os seus, mas não exacerbada, nem na ordem política, nem na cultura.

(...)

A questão entre Portugal e os Açores é uma questão de conhecimento, de mútuo reconhecimento. Esse reconhecimento mútuo e necessário é urgente para que uns e outros não deliremos sobre puros fantasmas». (42)

Abro um parênteses para uma observação: Eduardo Lourenço não tem rebuço em referir-se a Portugal e aos Açores como duas realidades, naturalmente por conveniência de expressão e não levado por qualquer intenção de rigor teórico. De facto, é assim que fazemos na linguagem quotidiana. Às vezes esse uso – Açores e Portugal – é contestado por receosos de que se acentue excessivamente a separação, já que os Açores estão englobados no conceito de Portugal. A essa objecção costumo responder com o rigor teórico. É que esse uso é não só um modo facilitador de expressão, mas até está correctíssimo: os Açores e Portugal são duas realidades geográficas obviamente separadas. Politicamente, a referência exacta aos Açores e Portugal tomados conjuntamente deveria ser "República Portuguesa". Pelo menos até nova alteração da Constituição. Mas fechemos este parênteses e passemos adiante.

A questão da identidade surge sempre num contexto de confronto. Normalmente não nos apercebemos dela quando vivemos no seio de uma comunidade sem contacto com outra, ou outras. A consciência da identidade portuguesa surgiu no confronto com Castela. Historicamente, o ressurgimento da preocupação com a identidade está em regra ligado ao confronto com uma realidade exterior. Basta lembrar os "estrangeirados" e o seu olhar crítico sobre o seu Portugal quando o comparavam com a Europa do centro e do norte. Mas tanto Antero como Eça e Fernando Pessoa ou Eduardo Lourenço têm, na origem das suas reflexões e preocupações com a identidade, uma experiência de confronto com uma realidade fora daquela que conhecem como sendo profundamente a sua. Com os outros países, a regra verifica-se. É ao confrontar-se com outra cultura que um nacional se apercebe da diferença entre essa e aquela a que pertence. Octavio Paz confessa, no seu citado livro que "muchas de las reflexiones que forman parte de este ensayo nacieron fuera de México, durante dos anos de estancia en los Estados Unidos" (43). Mas, ficando ainda no exemplo do México, a obra de Carlos Fuentes resulta em grande parte da sua dupla morada: New York e México. O mesmo se diga ainda de José Gaos, o criador do termo "autognose", que Eduardo Lourenço também usa, no seu O Labirinto da Saudade. Gaos emigrou de Espanha para o México e esse facto influenciou as suas reflexões sobre a identidade cultural.

No caso do Brasil, o antropólogo Roberto da Malta já repetiu também muitas vezes que as suas reflexões sobre o seu país, das quais a mais conhecida é Carnavais, Malandros e Heróis, foram originadas pela sua prolongada estada nos Estados Unidos. Às vezes, um outro fenómeno ocorre: um estrangeiro, ou alguém de fora, ao confrontar-se com uma cultura, apercebe-se da diferença. Foi assim com Alexis de Tocqueville ao visitar a América. Ninguém ainda hoje conseguiu suplantar De la Démocracie en Amérique. O exemplo correspondente para o caso açoriano é o de Raul Brandão e o seu inultrapassado As Ilhas Desconhecidas. Ainda relativamente ao caso português, registarei aqui a surpreendente admissão de Eduardo Prado Coelho num colóquio realizado há poucos anos no Porto. Estou em crer que foi a sua experiência em Paris que o levou a afirmar:

«O que eu vou dizer, de certo modo, repete o que disse Eduardo Lourenço, de uma forma provocatória. O provocatório é meu. Eu também tenho a convicção, cada vez mais, que, de facto, quer a nível de comportamentos quer a nível de um determinado número de mitos e jeitos, até nesse plano as coisas passam pelo corporal, pela relação com o espaço, etc., como aqui há pouco se disse, existem traços profundos de cultura, de identidade cultural.» (44)

Mas dizia eu que é no confronto que a dita questão nasce. Na maior parte dos casos, o confronto dá-se a partir do mais pequeno para o maior, e é o subgrupo que se sente subgrupo e expressa esse sentimento – que é também ressentimento (o tal de que fala Lourenço) – contra o grupo maior.

Foi assim no caso dos Açores, cujo exemplo prototípico desse sentir a diferença e afirmá-la é Vitorino Nemésio (45). Figura prototípica, ele é um caso paradigmático. Ao confrontar-se com a realidade Portugal, confrontou-a com a da sua "memória" de açoriano. E parece assim acontecer com os açorianos da diáspora, tanto nos Estados Unidos e Canadá, como na metrópole portuguesa. Ainda que, como David Hume, não saibamos definir a identidade, sabemo-lo experiencialmente. Por isso, repito, ela não pode ser escamoteada, nem tratada negligente ou displicentemente pelos powers that be (46).

Estou de acordo com Eduardo Lourenço, quando afirma que a identidade açoriana não é um mero ressentimento. Ela é – e tem todas as razões para isso – uma consciência bastante elevada de uma personalidade cultural singular no espaço mais geral da cultura portuguesa; e não se desenvolveu historicamente por oposição a esta, mas afirmou-se dentro dela. Não vejo razões para procurarmos alterar essa tradição e esse rumo. O filósofo George Santayana afirmou um dia que "os pés de um homem devem estar plantados na sua terra, mas os seus olhos devem mirar o mundo todo". Nesse sentido, Antero e Nemésio são, na história cultural açoriana, figuras emblemáticas, expoentes máximos daquilo que tantos outros conterrâneos seus fizeram, ou continuam a procurar fazer, nesse seu modo açoriano de serem portugueses.

Distingui atrás entre a questão das características culturais e a identidade. Aquela é do domínio da antropologia e da psicologia. É a tal autognose, essa esfera do autoconhecimento que um grupo tem ou procura ter de si próprio. É fundamentalmente um exercício de inteligência. A identidade, porém, pertence ao domínio do afecto. Um indivíduo X pode ter todas as características que grosso modo se diria fazerem-no pertencer ao grupo cultural Y, mas ele, por quaisquer razões, assim não sente. É por não se aperceberem desta diferença que muitos recusam a questão da identidade. Confundem-na com o problema das características culturais, ou com a famigerada questão do carácter nacional, perdendo assim uma diferença fundamental cujas implicações estão hoje à vista para quem quiser reflectir sobre o que se passa na ex-Jugoslávia, na ex-Checoslováquia, na ex-União Soviética e em tantas outras politicamente quentes regiões do globo (47).

Ao fim e ao cabo, cada indivíduo faz a sua leitura do passado, compondo-o à sua maneira (um pouco como as crianças fazem as suas construções com as formas dos legos) e é com essa composição que ele se identifica. Embora seja natural que os grupos culturais partilhem de determinados aspectos dessas leituras, elas não são necessariamente coincidentes. É por isso que, reconhecendo todavia muita validade à expressão de Eric Hobsbawm and Terence Ranger invention of tradition – que implica ser no fundo uma invenção o que as nações fazem da sua tradição histórica, não se trata apenas de invenção. Pelo menos, nem tudo é invenção (48). Por razões idênticas, não me agrada essa outra tentativa de captar o cerne da questão da identidade experimentada por Homi K. Bhabha nessa símil – nation as narration (49), inspirada nas teorias que acentuam as semelhanças entre a narrativa literária e a de história. Estou convencido da existência de muito mais que simplesmente isso. Com efeito, apesar desse título (nation as narration é mesmo o título do livro), que se propõe apenas encarar a nação como narração, o livro acaba por falar da "narrativa de nações". Ora, porque as pessoas narram as suas nações, não deveríamos ser levados a supor que elas concebem a ideia de nação simplesmente porque a narração existe, já que a pergunta lógica permanece e hoje é mais acutilante do que nunca: depois de tão trágicos acontecimentos, como os que, motivados por nacionalismos, temos presenciado neste século, porque é que as pessoas ainda se sentem impelidas a "narrar" as nações?

Uma das mais sensatas perspectivas sobre a questão da identidade cultural, bem como sobre essa outra a ela ligada, o nacionalismo, é a de Benedict Andersen no seu livro Imagined Communities. O hoje famoso antropólogo acentua a importância política do conceito ao indicar em termos bem claros os objectivos do seu trabalho:

«(...)oferecer algumas sugestões provisórias para uma interpretação mais satisfatória da 'anomalia' do nacionalismo. A minha impressão é que, neste assunto, tanto as teorias marxistas como as liberais se estiolaram no ptolomaico esforço de 'salvar os fenómenos', e que se requer urgentemente uma reorientação de perspectiva, uma espécie de espírito ptolomaico. O meu ponto de partida é que a nacionalidade (...) bem como o nacionalismo são artefactos culturais de um tipo especial». (50)

Mais adiante, Andersen critica indirectamente aqueles que desdenham a realidade do nacionalismo, apontando para "o poder político dos nacionalismos versus a sua pobreza filosófica e até incoerência:

«(..) ao contrário de outros ismos, o nacionalismo nunca produziu os seus grandes pensadores: nenhum Hobbes, Tocqueville, Marx, ou Weber. Este vazio dá facilmente azo, entre intelectuais cosmopolitas e poliglotas, a uma certa condescendência. Como Gertrude Stein em frente a Oakland, poder-se-ia concluir rapidamente que "there is no there there» (51).

Reconheço que passei a falar de nacionalismo, mas ele afinal não é mais do que uma forma desse fenómeno do etnonacionalismo, como Walker Connor demonstrou ser mais rigoroso chamar-lhe, num recente livro exactamente como esse título (52).

Ao forjarem a sua identidade, porém, os grupos culturais não se imaginam apenas, como sugere a hoje famosa expressão de Andersen. Eles não imaginam a sua comunidade do mesmo modo que imagina a China quem nunca lá foi. É por isso que seria mais exacto chamar-lhes "comunidades mentais", para acentuar que elas existem na mente das pessoas como realidades autênticas e não fantasiadas. Essas conexões colectivas não são imaginadas apenas, pelo facto de serem mentalmente concebidas. Mas essa nova proposta também não resolve o problema, pois não deixa precisa a natureza dessas realidades mentais. Parece-me assim igualmente insuficiente a hoje muito divulgada expressão "lugar de memória", com que Pierre Nora procurou captar a ideia de nação. Como vimos, a memória é, afinal, apenas um dos elementos integrantes do processo de identidade (53). Walker Connor corrigiu o cliché que classificava o homem como "um ser racional" preferindo considerá-lo como "um ser nacional". Na verdade, essas concepções de pertença a comunidades não são apenas mentalmente concebidas porque são acima de tudo sentidas, experienciadas. Daí ser mais exacto chamar-se-lhes "comunidades do coração". O trabalho da mente é, pois, esta concatenação, a criação da narrativa através da qual cada indivíduo liga as peças mais próximas da sua mente e do seu coração, e que foram extraídas do conjunto de experiências acumuladas no meio cultural em que aconteceu crescer.

Num colóquio subordinado ao tema Existe uma Cultura Portuguesa?, cujos debates foram publicados num livro com o mesmo título, Eduardo Lourenço afirmava que, no caso português, "o mito supremo, o que resultou de todos os mitos, é pura e simplesmente a própria palavra Portugal" (54). Essa síntese maravilhosa capta a ideia central que aqui eu quis expressar. No fundo, a identidade é a identidade de cada um. Como afirmei há doze anos ao revisitar a questão da açorianidade, num simpósio sobre Literatura Açoriana que organizei em Providence, a açorianidade é a açorianidade de cada um (55). Termos assim vagos têm força porque são preenchidos pela experiência pessoal sentida pela memória e coração de cada indivíduo. Mas nem esse sentimento é fixo ou isolado, nem deixa de se modificar face a contextos diferentes. Foi por isso que, como também já escrevi, me senti micaelense quando fui para a Terceira nos meus treze anos, mas senti-me açoriano no Continente e, na Espanha, senti-me português. Mais tarde, na América, senti-me europeu e, na China, senti-me Ocidental. Mas, se fosse a Marte, sentir-me-ia terrestre. A identidade, sendo diferença, não implica oposição e por isso nada tem de necessariamente anti-universal. Na minha experiência particular, esses sentimentos de diferença e pertença nunca me impediram de me deliciar desde o primeiro dia com a beleza de Angra, de me encantar com as rochas das praias do Algarve e me fascinar com as ilhas gregas, de me deslumbrar com o Grand Canyon no Arizona, de me extasiar ao percorrer a muralha da China, nem de fazer amigos nesses ou outros lugares. Ao longo da vida, a nossa identidade vai-se alargando (deve alargar-se) para o universal. Mas todo o universal tem o seu chão. O meu, por exemplo, chama-se Açores e por ele me habituei a sentir sempre de modo especial, ainda que não entenda completamente porquê. Pascal diria: razões do coração que a inteligência não entende. E eis aí, em resumo, não a chave mas o mistério da identidade.


NOTAS:

(1) A parte teórica deste ensaio resume algumas das questões tratadas numa cadeira que lecciono há cerca de dez anos na Brown University intitulada "Ideologies of National Identities".

(2) Panfleto humorístico da autoria de John D. Kirwan.

(3) Walter Opello, recensão crítica a Rui Aragão, Portugal: Desafio Nacionalista. Psicologia e Identidade Nacionais (Lisboa: Teorema, 1985), in Portuguese Studies Review 3 (Fall-Winter 1994-95) 2, 112s.

(4) Benedict Anderson, Imagined Communities (revised edition, London/New York: Verso, 1991).

(5) Eric Hobsbawm and Terence Ranger, eds., The Invention of Tradition (Cambridge: Cambridge University Press, 1983).

(6) David Theo Goldberg and Michael Krausz, Jewish Identity (Philadelphia: Temple University Press, 1993).

(7) Mencionarei apenas mais dois, por estarem directamente relacionados com o tema desta comunicação: William Bloorn, Personal Identity, National Identity and International Relations (Cambridge: Cambridge University Press, 1990) e Walker Connor, Ethnonationalism. The Quest for Understanding (Princeton: Princeton University Press, 1994).

(8) "National character or deep cultural structures? – a revisitation of a recurrent theme", comunicação apresentada ao XXXI Congresso Internacional de Sociologia, Roma, 1989. Uma versão será publicada em breve na Risco.

(9) Thomas Reid, Essays in the Intellectual Powers of Man, in John Perry, ed. Personal Identity, (Berkeley: University of California Press, 1975), p. 108.

(10) David Hume, Treatise of Human Nature, in J. Perry, p. 173.

(11) Derek Parfit,---Personalidentity and survival", in Perry, p. 204. Ver também do mesmo autor Reasons and Persons (Oxford: Oxford University Press, 1986). Ainda sobre o debate contemporâneo sobre a identidade, veja-se igualmente Peter Unger, Identity. Consciousness and Value (Oxford: Oxford University Press, 1990) e Charles Taylor, Sources of the Self: The Making of the Modern Identity (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1989).

(12) Octavio Paz, El Laberinto de la Soledade 2ª edición revisada y aumentada (Mexico, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1959), p. 188.

(13) Eduardo Lourenço contou-me que deu ao seu livro o título O Labirinto da Saudade sem se aperceber de qualquer ligação com o livro de Paz. Quando um dia deu pela semelhança, telefonou ao editor para alterá-lo, mas o livro já estava impresso.

(14) Op. cit. , p. 12123.

(15) Organizado por Pierre Tap (Paris: Sciences de l'Homme, 1986). Idênticos problemas e conclusões afloram no volume colectivo L'identité, resultado de um seminário interdisciplinar dirigido por Claude Lévi-Strauss (Paris: Quadrige/PUF, 1977).

(16) Curiosamente, nova alusão à metáfora do labirinto.

(17) Op. cit.

(18) "Nothing but consciousness can unite remote existences into the same person: the identity of substance will not do it; for whatever substance there is, however framed, without consciousness there is no person: and a carcass may be a person, as well as any sort of substance be so without consciousness." John Locke, op. cit., p. 48

(19) Marie-Claude Groshens, "Production d'identité et memoire collective", in Pierre Tap (org.), op. cit.

(20) Id.

(21) E. Marc Lipianski, "L'identité nationale comme representation", in Pierre Tap, op. cit., p. 60.

(22) (Paris: Éditions Anthropos, 1979).

(23) "Production d'identité et memoire collective", op. cit.

(24) H. P. Grice, "Personal Identity", Mind (October, 1941), p. 340.

(25) Tenho desenvolvido algumas reflexões sobre estes problemas em trabalhos como "Aculturação – Algumas observações –, Arquipélago/Ciências Sociais 2 (1987), pp. 229-237; "Identidade cultural: conflitos solúveis e insolúveis", in Eduardo Mayone Dias (org.), Portugueses na América do Norte (Lisboa: Peregrinação, 1983), pp. 41-55; bem como noutros textos ainda inéditos, como "Inconsciente colectivo, ou estruturas culturais profundas?" (II Jornadas Culturais das Velas, S. Jorge, 1989) pp. 86-90; "Cultural identity / cultural diversity: difficulties with the first as a rationale for the latter" (University fo Toronto, 1983); e "National character, or deep cultural structures? – Some comments on the return of a concept" atrás citado.

(26) Estamos fundamentalmente em presença da manutenção dos valores tradicionais portugueses (em geral de modo mais acentuado do que no continente, sobretudo o litoral), mas com um desenvolvimento condicionado pelo meio físico atrás descrito. Temos páginas altamente instrutivas sobre tudo isso em antropólogos e etnólogos como Arruda Furtado, Luís da Silva Ribeiro e José Agostinho. (Sobre este assunto tenho escrito noutros lugares, mas sobretudo em "A Profile of the Azorean", in Donaldo Macedo (org.), Issues in Portuguese Bilingual Education" (Cambridge, Mass.: National Assessment and Dissemination Center for Bilingual/Bicultural Education, 1980), pp. 113-164; e também em Açores, Açorianos, Açorianidade (Ponta Delgada: Signo, 1989).

(27) Inclui-se aqui tanto a discrição e o comedimento, como um certo "estado natural" (à Rousseau) de algumas facetas do relacionamento, sobretudo com a natureza.

(28) É evidente que o processo aqui delineado serve tanto para explicar a posição de um português em relação à cultura portuguesa, como a de um chinês em relação à chinesa.

A escolha dos elementos considerados positivos (por quem escolhe) é uma das características da construção da identidade cultural. Ficará para outra ocasião a desmontagem deste processo.

(29) Prefiro dar exemplos de autores e artistas já falecidos.

(30) Nenhuma das divisões apontadas é rígida.

(31) É por isso que, ao falar da sua identidade cultural, um indivíduo refere figuras destacadas do passado do seu grupo cultural – as figuras e a sua obra.

(32) (Cambridge: Cambridge University Press, 1985).

(33) (Cambridge University Press, 1989).

(34) A história individual e/ou colectiva (talvez melhor: a consciência que cada um dela possui) é uma das formas através das quais se manifesta essa mesma memória individual e/ou colectiva. Não será necessário entrar aqui no conhecido domínio da selectividade operada pelos grupos sociais (e mesmo pelos indivíduos) na elaboração da sua história.

(35) Já depois de terminado este ensaio, deparei com afirmações do antropólogo Marc Augé, na sua conferência da série "Balanço do Século" promovida por Mário Soares, que são muito próximas das feitas ao longo destas páginas. Depois de observar que "a questão da identidade e da pessoa estão verdadeiramente no centro das interrogações contemporâneas", afirma: "Embora criticada [a noção de identidade], os antropólogos estão pelo menos de acordo quanto a um ponto: o carácter relativo de qualquer afirmação identitária, que nem por isso põe em causa nem a sua realidade nem a sua pertinência." E mais adiante: "a realidade íntima da pessoa individual, a identidade global do grupo em que se inscreve e a identidade particular dos seus antecedentes, descendentes, colaterais ou aliados são pensados em continuidade, sendo o indivíduo e o grupo de indivíduos apenas identificáveis no plural, e a identidade apreendida apenas por relação com os outros." (Marc Augé, "O homem e os homens: A crise do sentido no mundo contemporâneo", in Fernando Gil (org.), Balanço do Século. Ciclo de Conferências promovido pelo Presidente da República (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990, pp. 184s).

(36) O último sobre essa questão que adicionei a uma já longa bibliografia foi A German Identity (1770-1990), (New York: Routledge, 1989), de Harold James.

(37) Na América Latina a questão não é apenas dos países individualizados, mas de toda a região. A bibliografia é interminável. Alguns exemplos apenas: Jaime Giordano e Daniel Torres (org.), La Identidad Cultural de Hispanoamerica (Santiago: Instituto Profesional del Pacífico, 1986), o número especial da revista Nuestra América, dedicado à 'Identidade e Cultura Latinoamericana" (no. 8, 1983), ou qualquer dos números das revistas Prometeo e Latino America. Para uma visão das raízes e da história dessa preocupação na América Latina veja-se Martin S. Stabb, In Quest of Identity. Patterns in the Spanish American Essay of Ideas, 1890-1960. (Chapel Hill, NCC: The University of North Carolina Press, 1967); Amary11 Chanady, ed., Latin American Identity and Constructions of Difference (Minneapolis: University of Minnesotta Press, 1994). Para o México em particular, recorde-se toda a obra de Leopoldo Zea. O debate continua ainda com muito vigor. Basta ver o recente livro de Roger Barra, La Jaula de la Melancolia. Identidad y Metamorfosis del Mexicano (Mexico: Grijalbo, 1987). Para o Brasil, mencione-se Renato Ortiz, Cultura Brasileira e Identidade Nacional (São Paulo: Editora Brasiliense, 1985), mas sobretudo Roberto da Matta, Que faz o brasil, Brasil? (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1984).

(38) O canadiano Andrew H. Malcohn escreve: "para muitos canadianos talvez a sua identidade seja procurar eternamente a sua identidade, uma empresa de Sísifo que garante uma angústia eterna". The Canadians (Toronto: Baniam Books, 1986), p. 56. Malcolm cita o conhecido teórico literário canadiano Northrop Frye: "Os canadianos estão de infância condicionados a pensar em si como cidadãos de um país com uma identidade incerta, um passado confuso e um futuro periclitante." (Id., p. 58)

(39) A bibliografia é tão extensa que aqui só valerá a pena apontar algumas adições recentes, como Francisco Ayala, La Imagen de España (Madrid: Alianza Editorial, 1986), Juan Goytisolo, España v los Españoles (Barcelona: Editorial Lumen, 1979, ou Julian Marías, España Inteligible. Razón Histórica de las Españas (Madrid: Alianza Editorial, 1985). Recentemente surgiu nos Estados Unidos o volume colectivo Iberian Identit v. Essays on the Nature of Identity in Portugal and Spain, coordenado por Richard Herr e John H. R. Polt (Berkeley, CA: Institute of International Studies, University of California, Berkeley, 1989), a comprovar, se necessário fosse, a actualidade do terna.

Já depois de escrito este ensaio, teve lugar em Lisboa uma jornada cultural de divulgação do livro espanhol. Ao fazer o balanço da escrita no domínio do ensaio no país vizinho, António Guerreiro escreve: "Provavelmente, um dos temas mais comuns do ensaísmo espanhol é precisamente a Espanha como problema e identidade." "As vozes e os ecos", (Expresso, 3-11-1990)

(40) Abstenho-me de referir bibliografia aqui, já que tenho entre mãos um livro sobre o caso português – A Obsessão da Portugalidade. Mencionarei apenas dois ensaios meus onde esbocei algumas introduções à questão: "A questão da identidade nacional na escrita portuguesa contemporânea", Hispania, LXXIV (1991) nº 3, 492-500; e "Portugal and the concern with national identity", in Ann L. Mackenzie, ed., Portugal – Its Culture, Influence and Civilization, Special Issue of lhe Bulletin of Hispanic Studies, LXXI (1994) nº 1, 155-163.

(41) (Ponta Delgada: Signo, 1989).

(42) Eduardo Lourenço, "Da Autonomia como questão cultural", in Vários, A Autonomia Como Fenómeno Cultural e Político (Angra do Heroísmo: Instituto Açoriano de Cultura, 1987), pp. 52; 56-57; 60-61.

(43) op. cit., p. 12.

(44) Intervenção in Augusto Santos Silva e Vítor Oliveira Jorge (orgs.), Existe uma Cultura Portuguesa? (Porto: Edições Afrontamento, 1993), p. 133.

(45) Já ouvi, com frequência, portugueses do continente repetirem que consideram os açorianos seus iguais e que não notam nenhuma diferença. É natural. São os açorianos – os do subgrupo – que sentem a diferença. Mas o fenómeno é universal.

(46) Nem ser reduzida a simples estatísticas populacionais, como fez, não há muito tempo, o ministro de um governo, infelizmente em conversa particular que não pode ser provada. Segundo ele, "os açorianos metem-se em dois estádios".

Para além de o senhor Ministro ter errado nas contas – e isso é mau, porque não se tratava de nenhum ministro das Artes – (e, já agora, se em Portugal possuíssemos estádios tão grandes, bem poderíamos candidatar-nos a organizar o campeonato do mundo!), essa atitude reflecte uma incoerência fundamental. Antes de me explicar, porém, recordarei que, há uns anos, na Assembleia da República, um deputado usava argumentação semelhante dizendo que os Açores, afinal tinham a população de Almada. Num artigo sobre a relatividade dos números eu lembrei ao senhor deputado que, se só os números contam, a população de Portugal inteiro nem sequer iguala a da cidade de New York. Agora, ao senhor Ministro, aproveito para lhe apontar a incoerência: eu julgava que o grande argumento que subjaz a toda a reclamação portuguesa de uma atenção especial por parte da Comunidade Europeia era o de que não olhassem apenas para a magreza dos nossos números em termos populacionais, mas que nos reconhecessem uma identidade cultural afirmada e desenvolvida ao longo de oitocentos anos. É por isso que não percebo a alteração de critérios. Ou até percebo, porque aos políticos não é justo pedir-lhes coerência ou memória. É bater a porta errada. Ao menos é grande a probabilidade de assim ser.

(47) Não é só em Portugal que estas confusões acontecem. Um exemplo muito recente surgiu no debate travado sobre a questão da identidade americana travado nas páginas do New York Times. Um intelectual como Richard Sennett (Professor de Humanidades na New York University), respondendo a Sheldon Hackney, Presidente da National Endowment for the Humanities, escreveu: "Mr. Hackney is the latest of a long line of americans who have sought to counter society's fissures by discovering a national identity or national character. These phrases, however, merely display the gentlemanly face of nationalism." Richard Sennett, "The Myth of Identity", in The New York Times, Sunday, January 30, 1994. Curiosamente, um filósofo pós-modernista como Richard Rorty entrou no debate defendendo a necessidade de uma identidade nacional para os americanos, confirmando assim uma das suposições expressas no início deste ensaio relativamente às causas do crescente interesse na problemática da identidade. Ver Richard Rorty, "The Unpatriotic Academy", The New York Times Sunday, February 13, 1994. Em Portugal, exemplos recentes de ausência de diferenciação destas questões podem encontrar-se em Boaventura Sousa Santos, Pela Mão de Alice. O Social e o Político na Pós-Modernidade (Porto: Edições Afrontamento, 1994); António Marques Bessa et al., A Identidade Portuguesa. Cumprir Portugal (Lisboa: Instituto Dom João de Castro, 1988) e ainda numa grande parte das intervenções no já citado volume colectivo Existe numa Cultura Portuguesa?

(48) Faço questão de sublinhar que não pretendo rejeitar a expressão, mas apenas o seu emprego generalizado, já que, havendo invenção, há nas tradições importantes elementos que não são inventados. Pelo menos na maioria das culturas. O que quer que se pense dos descobrimentos portugueses, eles não são uma invenção. Mas mais: há as invenções que passam a ser históricas: as profecias do Bandarra são invenções, mas é um facto histórico que elas persistiram durante séculos, apesar de inventadas.

(49) Homi B. Bhabha, Nation as Narration (London: Routledge, 1990).

(50) Andersen, p. 4.

(51) Id., p. 5. A concepção de identidade nacional aqui proposta é bastante mais próxima da sugerida por William Bloom: ''Nacional identity describes that condition in which a mass of people have made the same identification with national symbols – have internalized the symbols of the nation – so that they may act as one psychological group When there is a threat to or the possibility of enhancement of, these symbols of national identity." William Bloom, Personal Identity, National Identity and International Relations (Cambridge: Cambridge University Press, 1993), p. 52.

(52) Walker Connor, Ethnonationalism. The Quest for Understanding (Princeton: Princeton University Press, 1994).

(53) Ver La Nation, Vol. II da série Les Lieux de Mémoire, dirigida por Pierre Nora (Paris: Gallimard, 1986).

(54) A. S. Silva e V. O. Jorge, p. 40.

(55) "Açorianidade: Equívocos Estéticos e Éticos", in O. T. Almeida (org.). Da Literatura Açoriana. Subsídios para um Balanço (Angra do Heroísmo: SREC, 1986).

Onésimo Teotónio Almeida, texto publicado nas Actas do Congresso do I Centenário da Autonomia dos Açores, pp. 65-89.

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