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A recepção crítica a A Casa Fechada de Vitorino Nemésio, e uma breve revisitação

"A Casa Fechada", a última das três novelas de um volume de Vitorino Nemésio, e a que lhe dá o título (1), encontrou desde o princípio urna recepção altamente favorável. Os críticos distinguiram-na sistematicamente das duas outras companheiras de volume – "O Tubarão" e "Negócio de Pomba". Fê-lo João Gaspar Simões logo após a sua publicação. Depois de tecer considerações sobre a importância da estrutura psicológica no romance (ausente em "O Tubarão"), diz achá-la de algum modo em "A Casa Fechada", "uma perfeita novela". (2) Curiosamente, Simões faz, a propósito, alguns comentários sobre o próprio Nemésio. Na opinião do crítico literário, é "um escritor que a si mesmo se procura" e, nessa "procura paciente, por vezes desorientada de um escritor excepcional mente dotado de expressão literária", parece "perdido daquilo que nele pode constituir a verdadeira personalidade". (3)

O juízo de Gaspar Simões sobre "A Casa Fechada" é emitido sempre em contraste com as outras duas novelas do livro. As diferenças entre aquela e estas são estabelecidas numa linguagem de claro-escuros nitidamente distintos:

Nemésio chegou, finalmente, a "A Casa Fechada." E aí sim. Aí há tudo: há a verdade psicológica, há a tragédia, há a força do destino, há contradições humanas, há choques de temperamentos, há amor, há ternura, há sensualidade, há maldade – há vida, enfim. Esta novela é unia verdadeira obra-prima. Naquela casa fechada há muitos anos agoniza uni velho, crianças dizem coisas maravilhosamente inúteis, criadas falam do que lhes interessa, chegam visitas, Partem visitas, um marido sofre por ver morrer a mulher e esquece-a a olhar para os seios da amiga que a trata. Que ambiente de dor e de sensualidade, de vida e de sonho! E que sobriedade na frase (coisa tão rara em Nemésio) e que sobriedade nas notações exteriores (coisa tão rara nele também)! Enfim: esta novela vale as outras duas. Esta novela e uma obra-prima. (4)

Pouco tempo depois, Adolfo Casais Monteiro recenseava também o livro na Revista de Portugal. Para ele, "A Casa Fechada" era «uma explosão em profundidade", enquanto "Negócio de Pomba" o era "em superfície", resultando a diferença da "qualidade" das personagens. (5) "O Tubarão", por sua vez, pareceu-lhe "mais um 'exercício', daqueles que os autores devem guardar no fundo duma gaveta".(6) No seu conjunto, as três novelas revelavam to crítico ser Vitorino Nemésio "um artista que ainda não se fixou, que não encontrou ainda a 'forma para o seu pé". (7) Casais Monteiro sublinha a importância da criação de tipos humanos na ficção e acrescenta que "as personagens destas três novelas apresentam uma progressão de humanidade que, quási nula na primeira, frouxa na segunda, é bastante intensa na última", (8) Todavia, ainda segundo Adolfo Casais Monteiro, mesmo aí a "'intriga' é de reduzidas proporções".

Ela é, de facto, simples: todo o interior de uma casa acorda no protagonista Luiz, em segundo casamento, memórias mal enterradas, obsessivas e sensuais, da primeira mulher, complexificadas por uma certa inquietação relativa à escolha da segunda vez. Casais Monteiro resume o seu juízo crítico em poucas palavras:

Mas tudo isto é dado em sugestões que nunca se precisam, num admirável ritmo, tudo nos surge no meio duma polifonia de contrastes, num claro-escuro de sobriedade perfeita F a profunda humanidade desta novela nasce precisamente, não só da 'autenticidade' das personagens, como da atmosfera geral que elas agitam. (9)

Sobre o estilo de "A Casa Fechada" Casais Monteiro é igualmente encomiástico: "despoja-se muito" por contraste com a escrita de "O Tubarão", "torna-se mais leve, mais dúctil", revelando assim um Nemésio "já senhor da sua 'maneira própria'". (10)

Para além da publicação de José Martins Garcia, em 1978, de Vitorino Nemésio – A Obra e o Homem, (11) a que me referirei mais adiante com algum detalhe, nada mais de significativo parece ter sido acrescentado sobre o livro A Casa Fechada até à sua segunda edição em 1979. (12) Aí, na introdução, David Mourão-Ferreira ocupa-se mais de uma releitura-com-outro-olhar das duas primeiras novelas do volume, considerando os juízos tanto de João Gaspar Simões como de Adolfo Casais Monteiro marcados pelas preocupações estéticas dos anos trinta:

Se ainda hoje aplaudimos, sem reticências, os juízos de Gaspar Simões e de Casais Monteiro acerca da novela "A Casa Fechada", já em contrapartida discordamos, por inteiro, de quanto dizem – e é praticamente o mesmo – a respeito da primeira novela do livro. A cada nova leitura, um texto como "O Tubarão" tem-se-nos revelado cada vez mais denso, mais perfeito, mais digno de ser também, embora por outros motivos, considerado uma obra-prima – e, por outro lado, precursoramente anunciador daquela consumada arte narrativa, a um tempo elíptica e perifrástica, de extrema subtileza metafórica e metonímica, que virá a manifestar-se plenamente, se bem que de modo menos concentrado, nas páginas de Mau Tempo no Canal". (13)

Sobre "A Casa Fechada" David Mourão-Ferreira considera já dito o que sobre a novela havia a dizer, limitando-se a citar longamente um belo texto crítico sobre "Confissão e Defesa cio Romancista", de Joaquim Paço d'Arcos, que Mourão-Ferreira muito bem vê constituir "a melhor das 'introduções' às novelas do volume A Casa Fechada, por revelarem maravilhosamente as coordenadas e convicções profundas, literárias e estéticas de Nemésio", concluindo a sua própria introdução nestes termos: "A voz de Vitorino Nemésio, grande crítico, alternou e rivalizou sempre com a de Vitorino Nemésio, grande e incomparável criador."

Num texto ainda inédito, escrito no início dos anos 80, como entrada precisamente sobre o volume A Casa Fechada, para um Grande Dicionário da Literatura Portuguesa e de Teoria Literária, de João José Cochofel, (que nunca chegou a ser publicado), Fátima Freitas Morna aponta "a utilização sóbria e eficaz da 'imaginação material' no sentido bachelardiano, que geometriza a narrativa e encarna em representação realista, elo mais fantástico dos realismos, a problemática do recorte comum da vida pela morte e vice-versa". (15) A estudiosa de Nemésio sublinha o ritmo "obsessivamente interrogativo" da novela, na sua opinião "um dos mais perturbadores e conseguidos textos da novelística portuguesa contemporânea e um dos mais 'modernos' que a pena de Nemésio assinou." (16)

Em 1978, como atrás se disse, José Martins Garcia publica Vitorino Nemésio – A Obra e o Homem. Nesse estudo, analisa em profundidade a marca insular da ficção de Nemésio – o cerne dela "é açoriano, medularmente ilhéu"." Daí Nemésio não atingir, "ao tratar de ambientes do 'Continente', o vigor, a originalidade, a expressividade, a mestria que o caracterizam como invulgar narrador açoriano." (18) E mais adiante:

Longe do mar, o cenário novelístico de Nemésio transforma-se numa prefiguração da morte. O homem que veio da bruma do Atlântico pode relatar peripécias da costa portuguesa, pois aí se encontra virado para o horizonte e a distância – no fundo, sempre comovido a Oeste, Quando substitui, porém, o oceano pelos pinheiros – como acontece em "A Casa Fechada" –, à sua angústia de prisioneiro parece não ter limites impregnando o mundo com uma complexa gama tumular.

Sem constituir uma obra-prima, é uni curioso testemunho duma asfixia multímoda: paisagem sufocante como o verde escuro dos pinheiros; supressão de uni horizonte vital que valha a pena; crítica implícita a unia certa burguesia (...); crítica a um certo machismo latente e ainda a avaliação da soturnidade da província, rural, isolada dos centros portuários que são, ao fim e ao cabo, os "pulmões" do "Continente". (19)

Martins Garcia sugere depois a possível leitura simbólica "casa fechada = país fechado = classe fechada" e afirma estar essa narrativa estruturada "sob o signo da Morte". Segundo o crítico, o maior interesse dessa novela "reside principalmente numa certa concepção da Morte" (20).

Como se viu, Martins Garcia abre uma larga janela sobre Nemésio e a sua ligação à ilha. Em "A Casa Fechada", uma novela cuja acção decorre no interior do Continente, deparamos com a seguinte passagem:

Agora caíam a cada passo nestes exames fisionómicos, pondo-se diante um do outro como se tivessem aportado a uma ilha deserta e fosse conveniente inteirarem-se das reservas vitais de que cada um dispunha. O território da ilha era o silêncio da casa. o torpor de Maria Adelaide na febre, o Sr. Conselheiro na sua planície paralítica. E os pequenos brincando no mar dos pinhais com os seus barquinhos de corcôdea, como uns pescadores ao longe... Estavam quase cortadas todas as comunicações. (21)

Estas linhas remetem-nos para um mundo muito íntimo de Nemésio, exemplarmente analisado por J. Martins Garcia no mencionado estudo, e que Oscar Lopes recorrentemente refere citando a evocação do "ovo bicado e quente" que o poeta "deixou ria sua infância açoriana". (22) Com efeito, se na "casa fechada" há morte, como sugere Martins Garcia, há também essa sugerência de imagens de felicidade perdida, de Ilha fechada" na sua intimidade de embrião de vida e o desejo impossível de regresso a ele. Na poesia de Nemésio abundam possíveis ligações osmóticas com esta temática. Assim, vale a pena citar aqui o próprio Nemésio sobre o seu livro O Bicho Harmonioso, onde aquele verso surge:

De O Bicho Harmonioso direi, como o próprio símbolo diz: É esse meu duplo lírico, animal fabuloso, que me elucida das minhas aspirações profundas: amores, cuidados, sonhos, o mundo perdido da infância – o "ovo que deixei bicado e quente, / vazio de mim, no mar" / "E que hoje ainda deve boiar, ardente / Ilha, / E que ainda hoje deve lá estar". (23)

Nemésio prossegue sugerindo ser esse ("O Canário Verde", onde aqueles versos se encontram) o poema central do livro, e cio que poderá chamar toda a sua obra poética.

Outro poema, intitulado precisamente "O Ovo", abre com a afirmação "Enchi de oeste a minha vida" e fecha assim:

Mas queria, mais que mar, bater
Ainda as praias carregadas
De passos, conchas e do haver
Das aves livres lá pousadas
Que já não posso recolher.

E um ovo,
Nada mais que um ovo,
Num punhado de pó, entre juncais,
Que desse vida, penas, povo
Para as paragens e arcais. (24)

As referências cruzadas poderiam continuar e passariam forçosamente por ainda outro poema, "A Concha":

A minha casa é uma concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.
(...)
A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra da memória. (25)

Na Wallace Collection, em Londres, existe um quadro do holandês Caspar Netscher, de 1622, intitulado "The Lacemaker". Uma mulher sentada numa cadeira a um canto da casa, iluminada por uma luz serena e íntima como a de Vermeer, faz laços. No chão vêem-se duas conchas. Num comentário a essa obra, Mariet Westermann escreve: "As aparentemente desleixadas conchas representam o espaço especial preservado da mulher; com efeito, textos contemporâneos frequentemente comparam a relação entre a mulher e a casa com a da améijoa com a concha: ambas estão sempre nela." (26)

Casa fechada, ilha fechada, saudade de mulher perdida, concha, ovo bicado e quente, Nemésio sentado numa pedra da memória?


NOTAS:

(1) NEMÉSIO, Vitorino. A casa fechada. Coimbra: A. Amado Editor, 1937.

(2) SIMÕES, João Gaspar. A Prosa e o romance contemporâneo. Crítica – I, Porto, 1942, p. 217. (Trata-se da recolha de um texto publicado no Diário de Lisboa, em 4-11-1937).

(3) Gaspar Simões acrescenta: "É o que acontece, de resto, a quási todos os escritores em que o talento da expressão é superior à sensibilidade." (Ibidem, p. 217) E acrescenta mais adiante: "Vitorino Nemésio, impelido pelo seu grande talento verbal a exprimir o que quer que fosse, correu de princípio o perigo de nada chegar a exprimir de próprio. Salvou-o a curiosidade intelectual e o seu espírito crítico a si próprio lentamente revelado", descobrindo «a tempo que o escritor tem alguma coisa mais a dizer do que faustosamente nada." (Ibidem, p. 218).

(4) Ibidem, p. 222.

(5) MONTEIRO, Adolfo Casais. Recensão. Revista de Portugal, nº2, p. 309, Jan., 1938.

(6) Ibidem, p. 308.

(7) Ibidem, p 310.

(8) Idem.

(9) Idem.

(10) Idem.

(11) GARCIA, José Martins, Vitorino Nemésio – a obra e o homem. Lisboa: Arcádia, 1978.

(12) Oscar Lopes e David Mourão-Ferreira referem-se sem grandes demoras a A casa fechada em dois textos reunidos em Críticas a Vitorino Nemésio. Lisboa: Bertrand, 1979. p.114-136 e 198-225.

(13) MOURÃO-FERREIRA, David, Introdução. In: NEMÉSIO, Vitorino. A casa fechada, 2.ed. Lisboa: Bertrand, 1979, p.13-14.

(14) Ibidem, p. 25.

(15) Texto fornecido pela autora, Fátima Freitas Morna, em versão dactilografada. (p.2) Aqui fica o meu sincero agradecimento pelo envio desse texto, bem como fotocópias de outros textos sobre a novela de Nemésio.

(16) Ibidem, p. 3.

(17) GARCIA. Vitorino Nemésio – a obra e o homem, p. 77.

(18) Ibidem, p. 78.

(19) Ibidem, p. 80. Martins Garcia explica: "Entre 'O Tubarão' e 'A Casa Fechada' existe um fundamental traço comum: em ambas as novelas o autor nos apresenta famílias citadinas em deslocações de férias. Este traço é, só por si, muito sintomático: Nemésio, como ilhéu, recusa a sua fixação no 'Continente'. O seu gosto pelas terras exóticas – gosto de viajante, acrescente-se – não lhe favoreceu a inspiração de ficcionista no caso concreto da vida portuguesa. Em nenhuma das referidas novelas se sente a adesão do autor a formas de convívio tão profundas que lhe despertem a imaginação para os grandes retratos da sociedade portuguesa (à laia de um Eça ou de um Aquilino). Não. Para Vitorino Nemésio, os temas portugueses relacionam-se com a 'transplantação'. Viagem! Para a praia ou campo! Dir-se-ia que o inconsciente do autor foge incessantemente. O vaivém da maré não deserta o mais profundo do seu ser." (Idem.)

(20) GARCIA, Vitorino Nemésio – a obra e o homem, p. 81-82.

(21) NEMÉSIO. A casa fechada, p. 283.

(22) LOPES, Oscar. Em busca de sentido. Questões de Literatura Portuguesa. Lisboa: Caminho, 1994. p.136.

(23) NEMÉSIO, Vitorino. Poesia (1935-1940). Venda Nova: Bertrand Editora, 1986, p. 20. (Da Poesia. Prefácio à 13ª edição conjunta de três livros do autor, em 1961).

(24) NEMÉSIO, Vitorino. Nem toda a noite a vida. Lisboa: Edições Ática, 1973. p. 40-41.

(25) Ibidem, p. 87.

(26) WESTERMANN, M. The art of the Dutch Republic, 1585-1718. London: The Everyman Art Library, 1966. p.125.

Onésimo Teotónio Almeida, texto publicado no volume Escrever a Casa Portuguesa, organizado por Jorge Fernandes da Silveira. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999, pp. 51-57.

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