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Entrevista


A criação diarística em Fernando Aires

(Entrevista dirigida por José Leon Machado)

Fernando Aires, um dos mais importantes escritores açorianos da actualidade, é autor de quatro volumes de diário com o título genérico de Era Uma Vez O Tempo. Sentados no escritório da sua casa em Ponta Delgada, a janela aberta sobre a cidade com o mar ao fundo, iniciámos uma conversa informal de que apresentamos alguns fragmentos.

L. M.: Em que material é que escreve o diário?

F. A.: Sempre escrevi em folhas soltas, dobradas a meio, porque é mais cómodo. No caderno, se eu inutilizo o texto, tenho de arrancar as folhas. Se risco, torna-se mais difícil a leitura. A folha solta, se a inutilizarmos, atira-se para o cesto dos papéis. Quando muito arranjo uma capa onde guardo as várias folhas soltas. Ou então agrafo-as quando atingirem dez ou vinte páginas.

L. M.: O seu diário é essencialmente um diário manuscrito?

F. A.: É um diário manuscrito. E continua a ser um diário manuscrito por um velho hábito. Todavia vejo que, à medida que vou entrando na manipulação do computador, vou-me sentindo mais à vontade para poder escrever ali directamente – e descubro-lhe as vantagens. Mas ainda é muito escasso o texto escrito directamente no computador.

L. M.: Escreve então os textos à mão e passa-os depois para o computador. Depois como é que os revê?

F. A.: Costumo escrever de jacto e depois é que trabalho o texto. É como um pedaço de barro que o oleiro molda em bruto, surgindo dali uma forma cada vez mais elaborada. Há, todavia, que ter atenção – porque se se trabalha o texto como quem faz rendinha à mão, há o grande risco de o texto perder a espontaneidade. Ele tem que brotar e ser alguma coisa de tão fluido como uma água que corre. É fundamental que seja uma coisa viva, que flua e vibre. Se mova por si e nos escape das mãos. Eça de Queirós também trabalhou minuciosamente os textos e não houve desastre. Mas o texto era do Eça...

L. M.: Eça de Queirós não escreveu diários.

F. A.: Sim, é verdade. Eça não escreveu diários. Mas o trabalho de escrita de um romance pode ser o mesmo.

L. M.: Em que locais costuma escrever o diário?

F. A.: Escrever não costuma ser uma função sedentária. Quem está precavido e quem tem alguma experiência leva consigo inevitavelmente um bloco-de-notas ou umas folhas soltas. Vai preparado para não perder ocorrências ou ideias que surjam.

L. M.: Recorda-se de algum caso em que estava num local qualquer e se lembrou de uma ideia e escreveu-a?

F. A.: Não posso particularizar. Isso aconteceu muitas vezes em lugares sugestivos ou depois de uma conversa com alguém. Então toma-se um apontamento para não se perder um futuro texto.

L. M.: Quando é que costuma escrever?

F. A.: Desde o tempo de Coimbra que me habituei a estudar e a escrever, de preferência, de manhã. De manhã estou mais fresco e afluem as ideias. Depois de lavar a cara, de respirar o ar lá de fora, de fazer um pouco de exercício mexendo-me, sinto-me com mais disposição. Mas, é claro, nestas coisas não há programa rígido.

L. M.: Como é que publicou o primeiro volume de Era Uma Vez O Tempo?

F. A.: Alguma coisa desse primeiro volume, antes da impressão em livro, foi publicada no Diário dos Açores. Tinha lá um grande amigo, o Silva Júnior, que dirigia o jornal. Ele conhecia coisas que eu escrevia, tínhamos conversas e muitas vezes me pedia para mandar textos para as páginas do jornal. E eu mandei. Nessa altura eu não tinha bem assente o projecto de juntar os textos e publicá-los em livro.

L. M.: Já tinha um título?

F. A.: Os primeiros textos, recordo-me que se apresentavam como Páginas de Diário. A partir de certa altura, creio que apenas como Diário. Quando saía a página de letras, vinha sempre um retalho do diário. Muito do primeiro volume foi assim. Os outros já não – porque quando decidi publicá-los, achei que perdia a novidade.

L. M.: Como é que resolveu juntar os textos num volume?

F. A.: Os meus amigos, entre os quais o próprio Silva Júnior, induziram-me a publicá-los em livro. Acabei por propor a edição ao Instituto Cultural de Ponta Delgada, de que era director o Professor Almeida Pavão. Ele tinha sido meu professor no liceu, conhecia-me bem. Tinha lido os meus textos que saíram no jornal e responsabilizou-se pela publicação.

L. M.: Como foi acolhido o primeiro volume?

F. A.: Teve aqui em Ponta Delgada um bom acolhimento. Talvez por eu ter sido professor, por me conhecerem dos jornais. O facto é que esse bom acolhimento me deu vontade de continuar.

L. M.: E o segundo volume?

F. A.: Estava praticamente implícita a publicação do segundo volume. Tive depois uma oferta por parte da editora Salamandra de Lisboa para a publicação dos volumes seguintes.

L. M.: Como reagiu a sua família à publicação dos diários?

F. A.: Teve, naturalmente, prazer em verificar que o diário foi bem aceite aqui. Somos uma família, não é? As críticas nos jornais foram simpáticas. Contento-me. Não sou como o Saramago ou o Vergílio Ferreira que passe a vida a ranger os dentes por não conseguir obter o prémio Nobel.

L. M.: Falando no Vergílio Ferreira: o Fernando Aires em Era Uma Vez O Tempo refere-se a cada passo à Conta-Corrente. Até que ponto ela o terá influenciado na escrita do seu diário?

F. A.: A cada passo? Será que me refiro assim tantas vezes à Conta-Corrente? Suponho que não. O meu amigo pode verificar. Todavia, é certo que somos mais ou menos influenciados por isto e por aquilo quase sem darmos por tal. O Leon Machado dirá. É natural que ao ler o diário de Vergílio Ferreira, ao ler o diário de Miguel Torga, tivesse retido alguma coisa deles. Acontece com toda a gente, não é verdade? Se alguém, entretanto, me perguntasse que escritor mais me influenciou, diria que foi o Eça. Eça de Queirós está tão dentro de mim, tão dentro dos meus hábitos de leitura, a minha admiração por ele é tão grande, que não posso deixar de reconhecer que, de uma maneira ou de outra, me influenciou – nas referências com que avalio o mundo à minha volta, nas minhas opções estéticas. Sei lá.

L. M.: O primeiro volume da Conta-Corrente foi publicado em 1980 e o Fernando Aires começou a escrever Era Uma Vez O Tempo em 1982. Será que houve certa motivação da sua parte ao ver outro autor a escrever um diário?

F. A.: Quando o diário do Vergílio saiu em 80, eu não o conheci logo. A obra, no continente, foi bastante divulgada. Mas aqui não. Pelo menos eu não dei por ela. Quando isso aconteceu, em finais de 82, eu já tinha começado o diário. Não me influenciou, propriamente, como motivação para começar, também eu, um diário. De Vergílio Ferreira impressionaram-me, sim, as interrogações angustiadas sobre Deus, a vida, a morte, aquela vocação de filósofo tão pouco comum na nossa literatura. Uma angústia que deveria constar dos compêndios para o efeito de documentar o drama existencial. Muito antes do diário dele, tinha lido Manhã Submersa e Aparição. Li este último quando andava a fazer o estágio no liceu do Porto e nunca mais esqueci aquela página belíssima sobre o semeador: «Ó Bailote, tu já não tens a mesma mão para semear...» – e por aí fora.

L. M.: E quanto ao Torga, houve alguma motivação?

F. A.: Conheço o Torga desde o meu tempo de estudante. Cheguei a conhecê-lo, pessoalmente, em Coimbra, quando fui, mais o Jacinto Soares de Albergaria, esperá-lo ao consultório na esperança de um autógrafo (sem saber que ele detestava isso). Li muito cedo o Diário dele, é verdade. Mas penso que não foi muito importante para mim.

L. M.: Quer então dizer que diarística propriamente dita só conheceu a do Torga antes de começar a escrever.

F. A.: Sim.

L. M.: Sei que o Fernando Aires escreveu um primeiro diário por volta de 1949.

F. A.: É excessivo dizer que escrevi um diário por essa data, pois essa primeira tentativa não foi muito longe. Não passou de umas poucas de páginas, algumas das quais enviei para o jornal da minha cidade natal (juntamente com dois ou três contos). Foi uma experiência sem continuação, fruto talvez do abandono que sentia, das saudades da família e da ilha.

L. M.: Como explica que cerca de trinta anos depois recomeçou a escrever o diário? Não terá sido uma espécie de crise existencial aos cinquenta anos de idade, uma reflexão sobre si próprio?

F. A.: Com efeito, os cinquenta anos de idade coincidem, frequentemente, com uma crítica existencial. É a idade em que a gente se dá conta da vida a fugir. De repente, surge a convicção de que se está a entrar na velhice e é aterrador quando se pensa nisso a sério. A mocidade passou, começa a ameaça às coisas vitais que constituem a razão de viver: a saúde. A capacidade do amor plenamente sentido e partilhado. Os projectos de vida e de realização a longo prazo. Então a gente procura uma fenda na muralha – a escrita de um diário pode ser resposta a isto.

L. M.: São normalmente os adolescentes e as pessoas que entram numa idade avançada que escrevem diários. Os adultos entre os vinte e os cinquenta não costumam escrever. Porque será?

F. A.: Creio que já respondi, parcialmente. A adolescência é (ou era) por natureza sonhadora, delineadora de um futuro. Vão acontecendo coisas e os adolescentes, os mais indagadores, procuram dar respostas. Depois é o encanto destes segredos pessoais que lisonjeiam o ego. Esses diários da adolescência ficam, em geral, na gaveta, vindo mais tarde a ser rasgados ou guardados como recordação. Quando é já o diário da maturidade avançada, os cabelos embranquecidos, uma vida vivida, experimentada, aí então já se trata de um caso mais sério. Funciona como memorial: a necessidade de buscar no passado alguma consolação que o presente não dá. O prazer e a aventura de ter sido jovem. Os casos de amor, os amigos que se perderam. É um manancial sem limites.

L. M.: O seu diário dos vinte anos serviu-lhe como experiência de escritor futuro?

F. A.: Não direi tanto. Percebo a sua perplexidade, a sua necessidade de ir buscar o substrato, uma explicação que justifique o aparecimento, digamos, "súbito", de um diário na velhice. Vendo bem, não será (não é) caso único. É bom que lhe diga que nunca deixei de escrever nos jornais locais, em revistas (Insulana, Atlântida, e assim). Tenho mesmo uma colaboração razoavelmente longa no já citado Diário dos Açores (intitulada "Cartas para o Nosso Tempo"), que corresponde a um determinado período da minha vida e da minha maneira de pensar a vida. Portanto... Mas você, Leon Machado, é exigente. Não se contenta. Quer fundamento mais sólido e convincente que justifique o diário dos cinquenta. Pois alevá!

L. M.: Se não tivesse nascido nos Açores, teria escrito o diário? Até que ponto as ilhas terão influído nisso?

F. A.: Não é fácil responder. Podemos relembrar o que já está dito e redito e que se considera como factores favoráveis à escrita de vários géneros (desde a poesia à ficção). Refiro-me à paisagem, à distância, ao tempo triste que muitas vezes nos fustiga com temporais desmedidos – não falando nos muito citados terramotos e vulcões que, se não acontecem (estes últimos), felizmente durante vidas inteiras, estão lá para nos consumir.

L. M.: E no entanto nos Açores há apenas um diarista.

F. A.: Assim se diz. E agora à primeira vista, quase deu cabo da minha argumentação. Todavia, é necessário que se diga, se existe em princípio e apenas este diário publicado, a verdade é que não falta a poesia, o conto, a novela, o romance, na nossa história literária.

L. M.: Por que razão não há uma tradição diarística nos Açores?

F. A.: Nos Açores, a diarística foi substituída pela poesia confessional, que é uma forma mais "aceitável" de confissão. Na poesia, mesmo quando o poeta se confessa, não escandaliza ninguém. Porque é próprio da poesia aquela linguagem. Não choca ninguém. O diário, pelo contrário, corre o risco de ser uma confissão pública considerada ousada, menos tolerada, por ser escrito em prosa (sabendo todavia que o diarista que se preza não é, necessariamente, obrigado a nenhuma sangria desatada). A "confissão" pública é sempre perturbadora, sobretudo para quem habita num ambiente circunscrito, como é o nosso aqui, uma cidade pequena, onde toda a gente vigia toda a gente.

L. M.: Poderemos dizer que o Armando Côrtes-Rodrigues seria um dos poucos autores açorianos que poderia ter escrito um diário?

F. A.: Ele escreveu uma série de crónicas (Voz de Longe, em dois volumes) que comungam de certo modo do diarismo: a evocação da infância, o passado da ilha, a lembrança do povo com quem se deu intimamente. Enfim, uma série de considerações de natureza memorialista. Porém, acho que não chega a realizar nenhum verdadeiro diário.

L. M.: O Armando Côrtes-Rodrigues terá sido uma espécie de antecessor do Fernando Aires?

F. A.: Gostava muito de ter tido essa honrosa presença como antecessor. Mas penso que a não posso evocar. Faça essa pergunta ao Onésimo ou ao Eduíno de Jesus. Pergunte ainda ao Vamberto.

L. M.: Continua a escrever o diário?

F. A.: O diário é como um vício. Um vício bom. Pelo menos dele não se morre.

Ponta Delgada, 17 de Abril de 1998

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