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Entrevista


Excerto da entrevista a João de Mancelos, conduzida por Ana Ramos, a propósito da publicação do conto «As Fadas Não Usam Batom», no manual escolar Palavras & Limitadas – Língua Portuguesa, 10º ano (organização de Ana Margarida Ramos, et alii, Lisboa, Plátano Editora, 2003).

Ana Ramos: Com explicas o facto de a protagonista da narrativa ser do sexo feminino?

João de Mancelos: As mulheres sempre foram e continuam a ser vítimas da discriminação sexual, sobretudo nos países do sul da Europa, em África e em muitas religiões sob o domínio islâmico. Achei importante reflectir sobre essa questão num espaço e tempo precisos: o nosso país, antes da revolução de Abril. Por isso, criei Alice, uma rapariga cujo sonho era, desde criança, ser actriz. Concretizar esse projecto revelou-se um trabalho árduo: Alice enfrenta a oposição do pai, da mãe e até da sua melhor amiga, Lara. Todos eles acreditam que esta profissão não é digna e que usar batom não é próprio. Mas Alice não se deixa desencorajar – e aqui revela a formidável força que muitas mulheres possuem, desenvolvida durante a luta constante contra os preconceitos que enfrentam no ambiente doméstico, na profissão e na vida em geral. Alice consegue a sua independência como pessoa e como artista. É uma actriz de nomeada, dentro e fora do país. No entanto, para obter o êxito, teve de quebrar muitos laços e de romper o seu relacionamento com o pai. Isso custou-lhe imenso: ficou com uma ferida aberta para o resto da vida. Muitos anos depois de ter deixado a Figueira da Foz, Alice regressa – talvez para fazer as pazes; talvez para perceber o que aconteceu.

AR: Como foi lidar com uma personagem feminina e com as suas emoções particulares?

JM: Há quem defenda que as mulheres e os homens têm formas distintas de sentir e de relatar as suas experiências. Alguns estudiosos dizem mesmo que as pessoas do sexo feminino escrevem de uma maneira diferente, porque são biologicamente diferentes, e foram educadas de uma maneira também diferente. Isso é questionável: um homem pode escrever como uma mulher, às vezes ou sempre, e o oposto também é verdade. Basta pensar que as cantigas de amigo eram compostas por homens, os quais imaginavam o sofrimento das donzelas, longe dos namorados ou impossibilitadas de estar com eles. Um escritor é como um actor: veste a pele das personagens; tenta sentir como elas; imagina as suas dores e alegrias. Assim, não me foi particularmente difícil criar Alice, uma rapariga sensível que faz um percurso longo e doloroso, à custa de muitos erros e enganos.

AR: O conto tem várias interferências de outros modos literários para além do narrativo. A que se devem?

JM: Utilizei a técnica modernista da colagem: juntei excertos de prosa poética e de texto dramático; diálogos e monólogos; momentos de acção e descrições. Penso que cada modo se adapta a um sentimento específico da personagem. O modo lírico, por exemplo, parece-me adequado à transmissão de sentimentos profundos e de meditações. Já o texto dramático é mais adequado para mostrar as lutas, tensões e discórdias entre as personagens. Recordo, por exemplo, o passo em que Alice enfrenta o pai. Não nos esqueçamos de que a protagonista é uma actriz – e tem de actuar, portanto, mesmo num texto em prosa.

AR: O teatro, as máscaras, o palco e todos os aspectos relativos à arte dramática têm um papel decisivo no texto. Sentes algum tipo de atracção por essa arte?

JM: Toda a representação – seja ela no palco ou no cinema – me interessa. O texto, da autoria de um dramaturgo, guionista ou escritor, ganha uma nova vida quando representado. A tensão torna-se maior, as personagens feitas actores volvem-se mais reais. Algumas pessoas chegaram a falar comigo acerca da possibilidade de levar ao palco «As Fadas Não Usam Batom». A ideia atraiu-me e ao mesmo tempo deixou-me apreensivo, porque não escrevi este conto para ser representado. Abri o livro e perguntei a Alice o que ela achava. Respondeu-me que não precisava de um palco para ser actriz. Que dentro da cabeça de cada leitor já existe um palco; cada um pode imaginar a história a ser representada. Não são necessários actores, cenários, adereços, holofotes, aparelhagem sonora – basta ser capaz de fantasiar.

AR: O texto esta cheio de referências textuais mais ou menos explícitas. Consideras que esse facto dificulta a leitura ou aproxima os horizontes textuais do leitor e do autor?

JM: Um texto nunca é original; um autor não é um deus capaz de construir um conto a partir do nada. Todos somos influenciados por outros escritores, pintores, músicos… Neste conto, optei por mostrar ao leitor o universo de algumas das minhas obras preferidas: poemas, romances, textos dramáticos. Tal não dificulta a leitura, pois não é necessário nem fundamental que o leitor conheça esses textos. O conto vive por si, apesar de respirar uma multiplicidade de influências. Calculo que seja interessante ou divertido para o leitor que leu Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, encontrar aqui uma espécie de Alice. É como dar de caras com uma amiga que não víamos há algum tempo e de quem gostamos. Ela mudou, mas há sempre qualquer coisa da Alice que em tempos conhecemos. No texto encontram-se elementos provenientes de outras histórias – e alguns que ainda ninguém descobriu. O escritor revela e encobre, num jogo e num desafio ao leitor.

[…]

AR: Como recebes as críticas e as opiniões dos leitores?

JM: É importante prestar atenção às opiniões, favoráveis ou desfavoráveis, dos leitores em geral e do críticos em particular – desde que estas sejam construtivas e fundamentadas. Um escritor está sempre em construção e deve ter a humildade de reconhecer que errou, e também ter sabedoria para gerir o talento. Apenas através da hetero e auto-crítica poderá melhorar, de obra para obra.

AR: O que pensas dos jovens portugueses e dos seus comportamentos? Consegues rever-te neles?

JM: Revejo-me nos jovens que vivem de uma forma construtiva, não naqueles que desistem, se resignam e pensam que já não há anda por que valha a pena esforçar-se. É fácil esconder a cabeça debaixo da almofada e dizer «não há futuro». É fácil fingir ou assumir que se é incompreendido. É fácil viver a vida como se fosse uma festa e imaginar que ninguém sofre. O difícil é aceitar isto: o futuro existe, somos parte de uma comunidade humana mundial, e temos a obrigação, como membros da espécie, de tornar o planeta num lugar mais habitável. Protestando contra as injustiças; defendendo os direitos humanos e as liberdades fundamentais; protegendo a natureza; escrevendo para que as pessoas se tornem mais pessoas. Um dos meus poetas e cantores preferidos, Léo Ferre, escreveu: «na escola da poesia não se aprende: combate-se». A escrita não é um instrumento de intervenção inócuo, mas antes uma forma de reescrever a História, de a alterar, de preencher as elipses que os políticos e as ideologias no poder criam para marginalizar os grupos que se lhes opõem.

AR: Como te posicionas face a alguns dos problemas que o conto aborda: conflito de gerações, escolha da carreira, relações familiares, doença e morte?

JM: O conflito de gerações não é apenas inevitável: é também saudável e faz parte do acto de crescer. A escolha da carreira é um momento crítico da vida de cada pessoa e deve ser feito, acima de tudo, em função as aptidões de cada um. Em criança, sonhava ser astronauta – acabei a escrever livros, alguns dos quais de ficção científica. Não fui até à lua, mas ela estava dentro de mim. Relações familiares: cada vez mais os laços de afecto são importantes, dentro e fora do círculo familiar, neste mundo fragmentário, de tentações e enganos. Morte: há provavelmente mundos para além dos mundos, lugares por visitar onde as almas nascem e os corpos renascem, outros palcos, outros cenários. Talvez um dia, num outro universo, numa outra vida, tome chá com Alice, Leah Catarina e outras personagens dos meus contos.

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