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Crónicas


Ana Gabriela Fernandes: As Iniciações Filosóficas



O conto «Cola da China», em Fluviais de José Leon Machado

Não sendo especialista na matéria, da análise literária de textos, não posso evitar a sensação de estar a "pisar o risco", a invadir "propriedade privada". Assim, a minha análise não é literária. Talvez "filosófica", "psicológica", ou "cinematográfica", "musical"… Talvez.

Quando li o conto vi logo o filme. A rua estreita, a claridade, as personagens, os planos, as sequências, o ritmo, a fotografia, a música. Só faltava encontrar no plano real o que eu vira no plano mental.

O cenário é a parte velha da cidade, um beco justo e uma oficina num rés-do-chão de um prédio do século passado. Imaginei ruas velhas onde a luz entra de lado e se insinua nas paredes e nos telhados. Uma oficina na penumbra, o chão coberto de serradura, pedaços de madeira e fitas tiradas à plaina, a luz indirecta vinda da larga vidraça da janela para o quintal, que às vezes se move com as árvores e torna os objectos quase vivos. A cor dourada da madeira em grandes planos, a mesa, as ferramentas, os tampos, violas grandes, médias, pequenas, cavaquinhos, guitarras, bandolins, o banco de carpinteiro com o torno e a famosa cola. O recanto da cozinha onde a velha sentada bebe por uma malga fumegante em plano estático.

Agora as ideias. A "iniciação filosófica" de um rapaz: o lado poético disso tudo, acreditar nos sonhos, no que é genuíno (a sonoridade e o timbre característicos da música popular portuguesa), e nas pessoas, sobretudo nas mais velhas, na sua sabedoria (não me despertava interesse a sua personalidade, mas a sua arte… Mas não, quis uma viola de artífice), na sua honestidade ou integridade (Quem fazia ainda instrumentos de corda com tamanha perfeição?).

As personagens e as ideias: o rapaz e o velho, os sonhos e o saudosismo, o entusiasmo e o desencanto, a verdade e a ficção, a afabilidade e a antipatia. Mas há um ponto comum, o seu fascínio pela música, ao ponto de o velho aprender a tocar sozinho (e aqui entra a sua própria juventude, longínqua, os namoricos e as serenatas) e o rapaz querer uma guitarra autêntica para iniciar uma aprendizagem. Esta única cumplicidade irá criar um momento mágico, irrepetível, esse momento mágico em que o velho toca uma modinha: saiu-lhe uma harmonia vagarosa, aguda e tristonha. Prendi-me aos acordes, às notas, à sonoridade… Era uma coisa simples, de tónica-dominante, e, no entanto, complexa, e quase bela. O quintal a reverdecer visto da vidraça transformou-se num jardim de palácio antigo.

Todo o conto é poético e filosófico! E triste também. A lógica de uma existência de velho, representada pela decadência inevitável que se insinua e que depois o acompanha: o homem bamboleava, dando a impressão de ter uma perna mais curta do que outra… Pela porta da cozinha entreaberta vislumbrava-se uma banca tosca de xisto, o fogão a gás de duas bocas carcomido pela ferrugem, prateleiras de pinho enfeitadas com papel que fora colorido… saiu da cozinha, os pés a arrastar… uma autêntica criança… É ferrugem no cérebro. Tenho de lhe fazer tudo.

E o rapaz não é de todo ingénuo, há o entusiasmo e a curiosidade pelas coisas e pelas pessoas. Apercebe-se de tudo, embora não queira ver ou fixar-se nesse lado escuro da existência. Prefere acreditar. E tem uma capacidade de observação muito mais certeira e afinada do que ele próprio reconhece: inquiri-o acerca do recipiente com um líquido que eu duvidava entre ser cola ou verniz… – Cola da China?… predispus-me a voltar à oficina, não só pela dedicação à música, mas também por acesso de altruísmo dos meus dezasseis anos… Já estava arrependido de não ter comprado uma coreana. A essa hora já saberia a maior parte dos acordes. Não é só a capacidade de observação, é uma sensibilidade para "sintonizar" uma certa realidade não imediatamente perceptível (a decadência moral?), mas que aparece nas suas representações: a decadência física e a decadência da casa. É o rapaz que nos conta a história, é através dele que conhecemos o velho e a sua existência, a filosofia e a lógica dessa existência, o trabalho artesanal, o que é autêntico e genuíno e o que é postiço e ficção. E é através do rapaz que vivemos esse momento mágico, essa cumplicidade entre ele e o velho.

A descoberta final, a "iniciação filosófica" do mundo e dos homens, de um segredo profissional que não passa de uma mentira, a descoberta de um lado medíocre ou mesquinho da realidade (Eu pelo menos desconhecia, como desconhecia o mundo e os homens… A viola, a minha querida viola, estava descolada desde o tampo até ao braço. Era da cola, da sinistra cola da China com cheiro a caramelo) não apaga o seu lado poético. Porque houve um momento mágico e uma "mensagem", típica dos velhos que gostam de ser ouvidos. Quando o rapaz lhe diz, fascinado pela sua arte, que é vendo e ouvindo que se aprende, ele contrapõe: É a praticar, a cortar os dedos, a fazer calo...

Ana Gabriela Fernandes, Janeiro de 1998

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