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Crónicas


Ana Gabriela Fernandes: As Iniciações Filosóficas



Júlio Machado Vaz,
Domingos, Sábados e Outros Dias,
Lisboa, Relógio d’Água, 1993.

Ideias à volta do texto «deixar o umbigo órfão» de Júlio Machado Vaz em Domingos, Sábados e Outros Dias

Como é que um autor se torna importante para nós? Às vezes, por um feliz acaso. Um programa na TV, um rosto que nos fita, uma voz solta e cantante e um livro na mão, com marcas em páginas que de vez em quando lê. Sem desligar a teoria da vida real, das pessoas reais! E a linguagem poética, a mais próxima da realidade e das pessoas! Essa capacidade de comunicar! Frases, expressões, imagens… E são tantas as imagens que o autor vai buscar às brumas da memória!, os livros e os filmes que vai desencantar ao baú!

O dia em que nos apresenta o teatral Cyrano de Bergerac, a sua poética Roxanne e o belo Christian… Várias flores na mesa, um corte no caule de uma, a história poética e triste, e mais um corte noutra flor. E sentirmos que estas flores a quem a vida (ou elas próprias) vai maltratando, corte daqui e dali, vivem como se fossem personagens de ficção, não vivem realmente… O dia em que nos fala de carruagens paradas em ramais esquecidos… Em que imaginamos tardes melancólicas, ervas a invadir as linhas, estações desertas, o silêncio absoluto. A ilusão da protecção da vida e dos outros. E essa voz a empurrar carruagens teimosamente estáticas!… O dia em que lança um desafio maroto (termo tão caro ao autor!): Andem ao sol, ou só com chapéu, mas não se escondam na sombra. Deixem-se bronzear. E o poema de Fernando Pessoa onde se misturam palavras como memórias, sentir e sol

Só depois peguei nos textos, mas a voz é a mesma. E a eterna curiosidade, a busca constante! Como é irrequieto este autor! Acompanhar-lhe o ritmo é tropeçar em ideias e esperar que a memória as assimile. É correr por atalhos e esperar não perder nada de essencial pelo caminho. Este autor desafia-nos a desarrumar as nossas prateleiras (arrumadinhas) e a rebuscar nos nossos sótãos (onde temos medo de mexer). Fala-nos da vida real e de como andamos para aqui a vegetar, cada um no seu canto. A indiferença é um mal crónico, progressivo, fisicamente indetectável. Não nos leva ao cemitério, mas traduz um embotamento quase irreversível dos afectos, vegetamos de boa saúde. De como nos deixamos embalar em anestesias quotidianas, na mediocridade de existências que nada têm de real, de vivido. Somamos os dias, confortavelmente. Às vezes incomodamo-nos, mas não é nada de especial. Falamos de paz, de equilíbrio. Nada de excessos na nossa vida. Começamos a não deixar que as coisas e as pessoas nos toquem realmente. Convivemos, sem prazer ou conflito, dir-se-ia um reumatismo da alma. Reagimos a contratempos, não vivemos. Porque para estar vivo é preciso muito mais. A vida é feita de coisas imperfeitas (tentativas, procuras, descobertas, surpresas), mas à qual nos fechamos.

(…) é necessário olhar em volta, deixar o umbigo órfão. Substituir a palavra ficção (o gesto) pela palavra vida (o acto). Substituir a palavra dever (obediência cega ao exterior) pela palavra responsabilidade (assumir as próprias opções). Substituir a palavra segurança (o não-viver, estático) pela palavra mudança (viver, movimento). Aceitar e respeitar as diferenças. Diferenças e as mil e uma formas de as vestir de adjectivos ameaçadores, da cor da pele à opinião pública, tudo pode ser anatematizado em nome de todos nós (p. 142). E sem moralismos, o que é mais difícil. Habituados como estamos a vozes seguras de si, estudadas, contidas, afectadas, espartilhadas, aparecer de vez em quando uma voz solta, livre, marota, real, é uma lufada de ar fresco, é o sol em dias de Inverno. É raríssimo, hoje que o mimetismo social invadiu a nossa cultura, em que se compartimentam e desumanizam as relações entre as pessoas.

Precisamos destas vozes autênticas e irreverentes, que acordem consciências adormecidas. Esta insistência na ordem e na segurança e no progresso, que se baseia em normas e regras, é perversa em si mesma. Só alguns terão a ilusão dessa segurança, será o privilégio de uns poucos, os que decidem e normalizam as outras existências. Cada vez mais pessoas andarão nas margens, cada vez mais pessoas andarão perdidas nessas margens, empurradas por muros e cercas, electrificadas ou não. Tudo será muito científico e normal. Indolor. A violência e o amarfanhar dos direitos humanos como resultados inevitáveis do trajecto de uns e do silêncio cúmplice de outros. Os exemplos não são problema, basta pegar no mapa e saltitar pelos continentes, eles pululam como cogumelos, não atómicos, mas seguramente venenosos. Precisamos destas vozes. Precisamos de poetas. Experimentar atalhos quando escolhemos auto-estradas. Saltar algumas cercas e pisar alguns riscos. Tocar o bombo (esse instrumento de percussão tão português)! Amanhã é hoje. Amanhã será tarde. É sempre tarde. Estamos todos no mesmo barco. Fugir é cobardia. Não, não vi o Titanic, mas consigo vislumbrar um outro, o nosso, em que ilusoriamente os poderosos pensam estar a salvo e também vão na enxurrada. É certo que com mais hipóteses de ilusoriamente se salvarem do que os outros. E se um dia, por indiferença, ouvirem notícias sem escutar ou olharem através de fotografias ensanguentadas; se tudo lhes parecer "normal" durante o dia e as angústias nocturnas só os fizerem pensar em digestões difíceis, que seja por cansaço ou defesa da vida, não por acefalia. Precisamos do bombo e da festa também! O S. João com alho-porro em vez dos martelinhos! (Cf. o texto S. João, pp. 227 e 228.). Assim, em qualquer momento, por uma razão ou outra, poderão sempre dar um salto e gritar "basta, ainda estou vivo" ao sair em tromba, porta fora, rumo à luta. Essa maravilhosa confiança nas pessoas! As pessoas que às vezes nos conseguem surpreender. É essa a nossa esperança.

Ana Gabriela Fernandes, Fevereiro de 1998

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