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Crónicas


Ana Gabriela Fernandes: As Iniciações Filosóficas



Os Núcleos
Associação de Protecção da Família em Crise, 2008

Estes núcleos estão fragilizados, ouvia-o dizer. Esta Associação de Protecção da Família em Crise sempre lhe parecera uma causa perdida. O colega sempre se referira às famílias como núcleos, como se fossem células. Quando a tensão interna, os conflitos, se agudizam, dizia, o núcleo não se consegue defender convenientemente das agressões exteriores. Repara.

Um exemplo. Como tantos outros. As agressões internas e externas a que um indivíduo está sujeito desde sempre. As internas que o fragilizam. As externas que o querem destruir. Qualquer das alternativas era uma ameaça constante. Para onde quer que se virasse um indivíduo não agressor estava sempre vulnerável. E não havia saída possível.

Identificou duas espécies de indivíduos, os agressores e os não agressores.: Os agressores estavam melhor preparados para a sobrevivência. Mas destes havia uns que ainda estavam melhor equipados, os que sabiam gerir a violência. Estes eram de longe os melhor equipados. Porque tudo tinha a ver com a forma como se gere a violência, cada vez mais mental do que física. A evolução dos tempos, pensou.

Num raciocínio paralelo, havia também duas espécies de núcleos. Os defensivos-vulneráveis e os ofensivos-agressivos. Os guerreiros, como o colega os chamava, preparados para a violência do mundo exterior, perfeitamente adaptados a essa lógica da violência, equipados para a sobrevivência dos seus indivíduos, construídos para alargar o seu território. Células guerreiras num corpo vivo.

Quando o colega falava sobre a violência e os núcleos e o mundo exterior visualizava sempre esse filme a preto e branco. Sombras, caminhos sinuosos, escadas na penumbra, casas desertas, jardins abandonados.

O estudo a que o colega se dedicara durante anos não tinha propriamente a ver com os tipos de núcleos mas com a sua estrutura e organização internas e as suas interacções com o mundo exterior. Considerava todos os tipos de núcleos em pé de igualdade, isso não lhe interessava. Não isolara nenhum desses factores. Dividira os núcleos em duas categorias essenciais e era apenas isso que lhe interessava, fossem núcleos constituídos por um casal macho-fêmea com ou sem filhos, por um elemento do casal com filhos, por um casal do mesmo sexo com ou sem adoptandos, por um único indivíduo e adoptandos, por um grupo com afinidades, por uma pequena comunidade ou novo clã. Procurara igualmente antecedentes de predisposição para uma ou outra das categorias essenciais.

Os rituais de ensaio ou de aceitação e rituais de manutenção ou de confirmação. Para ser aceite por um determinado grupo, e os grupos são sempre exclusivos, um indivíduo tem de mostrar que é um deles. É toda uma encenação complexa, uma linguagem, uma gesticulação e uma determinada filosofia. E depois não basta ser aceite num grupo. O indivíduo tem de se comportar à altura.

A minha resistência aos grupos é que me permite estudá-los com alguma objectividade, ouvia-o dizer muitas vezes. Talvez não fosse assim tão simples. Nunca fui verdadeiramente aceite por nenhum grupo, dizia, nunca me adaptei à lógica dos rituais. No fundo detesto todo o tipo de rituais. Sei que são necessários. Mas não os suporto. Quando detecto essa necessidade de encenação, passo a repeli-la com todas as energias e a agir de forma absolutamente incompatível.

A partir de uma certa altura passara a dizer que não fora totalmente honesto consigo próprio nem com os outros. Também eu representei um papel, encenei uma peça. Mas não era a peça adequada. Talvez por isso este meu fascínio pelo estudo dos grupos, desde os grupos-base, os núcleos, até aos grupos mais complexos. Recusas a encenação de rituais de aceitação e de manutenção do grupo, dizia-lhe então, mas encenas para ti próprio rituais de afirmação/confirmação da tua existência. Porque não podemos viver sem rituais, os individualistas como tu têm de ter os seus. Só que não se dirigem a um grupo mas a si próprios. Agora repara. A tua rejeição absoluta de pertença a grupos, quaisquer que sejam, não tem já implícita essa tua forte consciência da existência dos grupos, da sua importância na tua existência, tão forte e absoluta que te levou a dedicar a tua própria existência ao seu estudo? Os grupos não terão muito mais importância para ti do que para os seus elementos? Não exercem sobre ti um fascínio muito maior? Não rejeitamos o que mais desejamos, quando o desejamos de forma tão absoluta?

Lembrou-se desse filme de meados do século passado que sempre o fascinara, The Little Foxes. Havia os predadores e os que tiveram que aprender a defender-se deles para sobreviver. Os melhores de nós morrem sempre cedo demais, pensou. Como se pode utilizar a inteligência para pisar os outros e não ser uma simples pisadela mas uma tentativa de destruição sistemática. Enquanto uns mal conseguem viver e mesmo assim ainda arranjam tempo para dar a mão aos outros, os predadores não se contentam em viver. Para viver têm forçosamente de destruir os inofensivos, os vulneráveis. É um instinto predatório, compulsivo, uma forma de loucura muito primária que permanece na espécie humana por assim dizer, e que não recua perante nada, nada os atinge ou sensibiliza, nem o sofrimento alheio. E no fim de contas deve ser isso mesmo que os excita mais, o sofrimento alheio. Alimentam-se do sofrimento alheio e da destruição dos mais vulneráveis. É horrível ter de conviver com gente desta. Quanto mais longe melhor. Mas é muito difícil distinguir um predador à primeira. Já se tinha enganado inúmeras vezes, e quando dava por ela tinha vários predadores a orbitar à sua volta, prontos a atacar nos pontos mais vulneráveis. E o que era mais incrível é que essa gente passava por ser perfeitamente normal quando eram autênticos doentes e os outros, por doentes, quando eram perfeitamente normais. Era por isso que já não acreditava na função dos especialistas dos comportamentos porque trocavam as coisas completamente e tentavam transformar em predadores os inofensivos, encaixá-los num sistema de valores vigente. Porque os predadores que se prezam nunca se sentem mal na sua pele, nunca têm tempo ou disponibilidade mental para observar a sua própria natureza de predadores, nunca chegam a ter consciência da sua natureza de doentes. Descarregam sobre os inofensivos e vulneráveis toda a sua agressividade e frustração, de forma compulsiva e sistemática e só se satisfazem através dos seus instintos destruidores. Mas são estas pessoas doentes que mais influência têm sobre as outras pessoas e isso é que é terrível. Estamos todos à mercê desta gente doente e limitada e não há nada a fazer porque se trata de um gene que se multiplica, e é muito mais resistente que qualquer outro, apesar de doente. É como um carácter dominante. Nenhum outro gene pode competir com este. E assim estes predadores proliferam por aí, como moscas. Perfeitamente adaptados e auto-indulgentes, além de auto-satisfeitos. Sem qualquer problema de consciência ou o que quer que se lhe assemelhe, precisamente porque não têm consciência. Sem qualquer dúvida quanto à sua conduta e às consequências dessa mesma conduta, porque não têm sensibilidade. Há pessoas que se alimentam da infelicidade dos outros, procuram-na e provocam-na, insaciáveis.

Ana Gabriela Fernandes, Junho de 1999

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