Ana Gabriela Fernandes: As Iniciações Filosóficas
POSTO MILITAR ESTRATÉGICO, 2005
– Vou ver se tomo um café. Trago-te um?
Agradeceu ao colega e continuou absorto no estudo das coordenadas no monitor. Matemática pura. Abstracção total. Lidar com a vida e a morte através de números.
– Aqui tens.
Pegou no café distraidamente. Sentiu o olhar observador do colega que entretanto se sentou novamente ao seu lado. Esperou pelo mesmo comentário de sempre. Aí está, pensou.
– Ultimamente não andas com bom aspecto. Tens descansado o suficiente?
Sentiu que já tinha esgotado todas as explicações possíveis. Impressão tua, já não pegava. É claro que estava cansado. É claro que tinha insónias. De que adiantava estar com explicações se ninguém podia resolver a situação.
– O Artimanhas prometeu a redução do turno. Alegra-te. Pertences à nata.
O Projecto. Porque é que o tinham escolhido, afinal? Não tinha as características exigidas, senão ter-se-ia adaptado. Malditos testes, malditas regras de conduta, maldita sorte.
– Vai dar um giro até lá fora que eu tomo conta do brinquedo.
Agradeceu com um sorriso. Encostou-se à viseira redonda do gabinete e acendeu um cigarro. Tinham sido treinados para brincar às guerras. Talvez o seu problema fosse excesso de imaginação. Onde o colega via um instrumento sofisticado e eficaz, com uma função abstracta e científica, ele via a sua função essencial. Não conseguia evitar ver o filme todo, em sequência de imagens, em câmara lenta, ver todo o pesadelo, não ser poupado ao pesadelo. Excesso de imaginação. Porque diabo isso não tinha sido revelado nos testes?
Apagou o cigarro e foi sentar-se em frente do monitor. Alguma coisa se tinha alterado mas não conseguiu ver logo o que era. Verificou as coordenadas. Era uma alteração imperceptível, dificilmente detectável. Mas o computador de acesso não dar pelo erro… Isso é que não conseguia compreender.
– Repara nas tuas coordenadas.
Esperou que o colega fizesse a verificação.
– Ei, houve aqui um erro qualquer. Não percebo…
Ligou os sensores para detectar a origem. Pediu apoio à unidade central. Verificou tudo no controle dos sensores. Nada. Verificação de avaria. Nada.
– Passa-me estes dados aos crânios, pediu.
O colega hesitou. – Devíamos tentar resolver as situações da nossa responsabilidade primeiro. Como é que pensas que isso vai ficar no relatório de hoje…
– E como é que pensas que vai ficar a não detecção de anomalia grave num sistema de alta precisão, ligado ao emissor de pulverizadores? Consegues explicar esta interferência? Passa-me par lá os dados imediatamente. Vou tentar novamente o controlo com outros elementos, quem sabe…
Nova tentativa. Nada. Não conseguia perceber porque é que o computador de acesso não dava a indicação de emergência, como é que uma alteração daquelas tinha surgido sem ser detectada.
Sentia o nervosismo do colega enquanto ia passando os dados. Segundos depois descodificou a mensagem no seu monitor: Origem desconhecida. Outros gabinetes do Projecto com o mesmo problema. Cancelar operação até indicação em contrário. Desactivar os emissores.
Emissores desactivados. Aguardam-se instruções.
– O que é que te parece? É como um desvio. Faz uma espécie de curva. Não é um erro normal. Repara, vou passar os sinais a uma imagem geométrica, vê só isto.
– O que é que queres dizer, que não é um erro normal…
– Segue um padrão, pelo menos. Repara, houve uma nova alteração. Vou passar de novo isto para… olha, a curva acentua-se ligeiramente. Vês a primeira… e esta quase sobreposta.
– Se desactivámos tudo, como é que isso continua a…
Viu o colega fixar o ecrã obsessivamente. E compreendeu. Em situação de destruição programada o colega funcionava na perfeição, mas em situações de emergência, de soluções rápidas, de corrida contra o tempo, de capacidade de improviso, era ele o eficiente. Tinham avaliado isso tudo nos testes. Detestou o Projecto como nunca até então. Tudo previsto. Homens e computadores em perfeita simbiose.
Até aparecer um erro vindo não se sabe de onde…
Ana Gabriela Fernandes