Letras & Letras

Notas de apresentação


Modo Mudando, de José da Cruz Santos (org.)

Em 1998, de 19 a 23 de Janeiro, realizou-se no Porto uma semana de oportuna homenagem a Vasco Graça Moura (1942). Para além das importantes comunicações apresentadas por especialistas, o evento foi enriquecido por uma exposição biobibliográfica e iconográfica, além de um concerto musical. A iniciativa coube à livraria Modo de Ler, à Cooperativa Árvore e à Fundação Eng. António de Almeida. O pretexto era a celebração dos 35 anos de actividade deste notável escritor, com 56 anos de idade, natural do Porto, figura absolutamente invulgar de intelectual contemporâneo.

Curiosamente, a sua obra literária iniciou-se justamente com a publicação de um livro de poesia intitulado Modo Mudando (1963), agora retomado. Daí para cá, a obra literária do A. cresceu e diversificou-se consideravelmente nos géneros da Poesia, da Ficção, do Ensaio, da Tradução ou da Antologia, o que demonstra bem a assombrosa amplitude dos seus interesses e, sobretudo, dos seus dotes criativos. A somar a esta impressionante actividade de escrita, tem desempenhado superiormente algumas funções público: trabalhou em instituições como a RTP, na direcção da IN-CM, na Comissão dos Descobrimentos. Mais recentemente, no Serviço de Bibliotecas da Fundação Calouste Gulbenkian e agora como parlamentar europeu. Desempenha ainda o papel de apreciado cronista em algumas das mais importantes publicações periódicas nacionais. Não surpreende que a sua obra literária tenha sido objecto de merecidos e relevantes galardões, dentro e fora de Portugal, como o Prémio Pessoa; e, mais importante ainda, que seja lida e apreciada pelo público, o que se manifesta no número de edições de várias das suas obras.

Nesta interessante colectânea, o leitor encontra um conjunto de nove textos, relevantes para a compreensão do escritor de Uma Carta no Inverno, que, na sua prolífica actividade editorial, acaba de recolher a sua actividade poética dos últimos anos em Poesia (1997/2000). A abrir e a fechar, duas entrevistas – uma conduzida por Ana Marques Gastão; outra por José Viale Moutinho. De permeio, meia dúzia de textos críticos. Eduardo Lourenço analisa o "ensaísta exemplar", que, desde os trabalhos sobre Herculano ou David Mourão-Ferreira, passando pelos perspicazes e recorrentes estudos camonianos e, mais recentemente, pelas incursões garrettianas, se mostra como modelar scholar. Fernando Matos Oliveira, Fernando Pinto do Amaral e Laura Castro caracterizam e sinalizam o percurso poético do autor, salientando alguns dos seus traços mais definitórios e sedutores.

Por seu lado, Isabel Pires de Lima ressalta o legado clássico da sua escrita, a par do irónico jogo intertextual dito pós-moderno. Completa-se com a intervenção de Miguel Veiga num debate então ocorrido; e ainda com a panorâmica evocativa de Óscar Lopes. Como se adivinha, a temática das comunicações espelha a diversidade dos géneros abordados pela inigualável criatividade do polígrafo homenageado. Em suma, uma obra de merecida homenagem e de balanço crítico de uma das vozes mais singulares e multifacetadas do panorama português contemporâneos.

Cândido Martins

José da Cruz Santos (org.), Modo Mudando (Sete Ensaios sobre a obra de Vasco Graça Moura), Porto, Campo das Letras, 2000 (Col. Campo da Literatura / Ensaio; 165 págs.).


Poesia (1997/2000), de Vasco Graça Moura

Na presente e oportuna obra de Vasco Graça Moura (n. 1942), recolhe-se a produção poética, relativamente extensa, dos mais recentes anos, desde Uma Carta no Inverno a Giraldomachias e à elotiana elegia Terra de Ninguém (incluindo alguns inéditos). Completa-se assim, com este "segundo" tomo, o grosso volume dos Poemas Escolhidos (Bertrand, 1996), que abarcava, de um modo selectivo, a escrita poética do autor desde 1963 a 1995, perfazendo os dois quase quarenta anos de poesia.

Como afirmava metapoeticamente João Cabral de Melo Neto, em meados deste século, na poesia contemporânea, cada poeta vai traçando o seu percurso singular, configurando e amadurecendo a sua poética. "Eu cá transformo tudo em literatura", afirma-se num conhecido verso denunciador da poética alquímica, simultaneamente irónica e classicizante de Vasco Graça Moura. Essa tendência para a autodefinição transparece em alguns dos seus textos poéticos, mas também em escritos que ocasionalmente os acompanham, como acontece em "Poesia e autobiografia", onde podemos ler: "Para mim essas coisas são naturais. Escrevo poemas quando uma certa disponibilidade, uma certa informação e uma certa tensão agudizam a minha percepção do mundo e me permitem operar, por via da palavra poética, uma manipulação dele" (pp. 182-3). Neste sentido de recriação artística, não escandaliza ninguém que o poeta afirme, longe de biografismo ingénuos, que toda a sua poesia é modulada por uma "dimensão autobiográfica".

Na sua refinada e aparentemente prosaica captação recriativa do efémero quotidiano, não esquece a moderna lição de O'Neill ou de Cesário, dois dos seus assumidos mestres. É justamente à luz da concepção simultaneamente lúdica e ética, orientadora do seu trabalho oficinal, que lemos com enorme prazer poemas como o lamento para a língua portuguesa ou os sentidos poemas com pessoas. Referindo-se aos mais recentes trabalhos poéticos, anota o poeta: "não é de estranhar [que] ocorram várias diferenças de processos e de registos literários". Apesar destas brevíssimas observações autocríticas, ou, por exemplo, das inovações da toada popular estruturadora das letras do fado vulgar, estamos em crer que são mais notórias as linhas de permanência do seu já longo trajecto poético, salientadas, aliás, por vários dos seus críticos nos últimos tempos.

Alheia a modismos fáceis, a serôdios vanguardismos ou a herméticas elucubrações, a poética de Vasco Graça Moura afirma-se como uma voz modelarmente inovadora no actual panorama literário português, singularizada por alguns cativantes traços temático-compositivos: dotada de uma expressão irreverentemente irónica e parodística; indissociável de um inteligente e cativante jogo intertextual, de herança barroca, neoclássica (Tolentino, por ex.) ou contemporânea (O'Neill); estruturada por um cativante sentido de proporção e de medida, de matriz clássica; desencadeadora da divertida surpresa pela recriação de uma tópica classicizante; perpassada por uma contida melancolia neomaneirista; seduzida reiteradamente pelo o diálogo inter-artístico com a pintura, a música ou a fotografia; dominada pela omnipresença tutelar do estro de Camões.

Cândido Martins

Vasco Graça Moura, Poesia (1997/2000), Lisboa, Quetzal, 2000 (425 págs.).


Rousseau em Portugal, de Fernando Augusto Machado

Estamos diante de um estudo fundamental para se perceber a importância da germinação e implantação das ideias liberais no Portugal iluminista, as opções que se tomaram com o vintismo, bem como as guerras ideológicas que se lhe seguiram. Neste processo teve uma importância singular a difusão clandestina das ideias heterodoxas do genebrino Jean-Jacques Rousseau, autor da Contract Social. Isso mesmo foi objecto do longo e fundamentado estudo de Fernando Augusto Machado, docente e investigador da Universidade do Minho (Braga), originalmente apresentado como dissertação de Doutoramento naquela instituição, no domínio da História e da Filosofia da Cultura Portuguesa.

Para alcançar esse grande objectivo, o A. traça-nos a amplitude da recepção do pensamento rousseauniano em Portugal, ao mesmo que discorre sobre as consequências dessa recepção na sociedade portuguesa. Ou seja, além de abordar panoramicamente o pensamento do autor de Nouvelle Heloïse ou das Confessions, servindo-se das fontes primárias e da bibliografia passiva, Fernando Machado inventaria e analisa a difusão do pensamento de Rousseau na sociedade portuguesa, desde Ribeiro Sanches a Almeida Garrett. Isto pressupõe uma aturada e persistente pesquisa em bibliotecas e arquivos, e a consequente reunião de uma enorme massa de informação, organizada através de um adequado fio condutor.

Numa leitura convidativa, o A. convoca o olhar dos estrangeiros sobre o Portugal do séc. XVIII. Introduz-nos nos mecanismos da censura e da inquisição, com a publicação de documentos inéditos. Inventaria as obras de Rousseau existentes em Portugal, acrescentando consideráveis novidades. Ressalta o espírito anti-rousseauniano de algumas das obras estrangeiras. Comenta os ecos de Rousseau na parenética e nos textos pastorais. Passa em revista o seu pensamento na imprensa periódica, nacional e estrangeira. E, como era de esperar, comenta a presença de Rousseau em autores portugueses desta época. Neste tipo de estudos, nunca se pode dizer que o tema está completamente esgotado. Porém, dada a quantidade de material analisado, muito dificilmente as conclusões deste notável estudo serão infirmadas por novos dados.

Cândido Martins

Fernando Augusto Machado, Rousseau em Portugal (Da Clandestinidade setecentista à legalidade vintista), Porto, Campo das Letras, 2000 (Col. Cultura Portuguesa, 5; 711 págs.).


Da Literatura Comparada à Teoria da Literatura, de Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux

Reedição de um trabalho já com alguns anos, agora apresentado como "ampliado, revisto, renovado", conforme indicação dos seus autores. Trata-se, mais rigorosamente, de uma "terceira versão" de um pequeno manual, cerca de 20 anos depois da 1ª ed., então com ambicioso título de Literatura Portuguesa, Literatura Comparada e Teoria da Literatura (Edições 70, 1982), com uma 2ª ed. (em 1988), ligeiramente modificada. Escrita de parceria com outro professor e investigador francês, exigiu certamente um esforço de coesão na escrita e articulação estilístico-conceptual dos dois autores. Mais importante ainda é ressaltar que, na época em que apareceu, esta obra preenchia um vazio bibliográfico no âmbito de uma nova disciplina da área dos Estudos Literários.

No essencial, a obra mantém a estrutura das anteriores edições, agora dipartida em duas grandes secções: "Conhecimento do Estrangeiro"; "Da História Literária à Teoria da Literatura". Um dos seus autores ´w Álvaro Manuel Machado, Prof. Catedrático da Universidade Nova de Lisboa, autor de conhecidos trabalhos sobretudo na área da Literatura Portuguesa (Romantismo e Geração de 70). Organizou recentemente um Breve Dicionário de Literatura Portuguesa (Presença, 1996). O co-autor do presente livro é também Prof. Catedrático de Literatura Comparada, na Universidade da Sorbonne Nouvelle – Paris III.

Felizmente, a referida escassez bibliográfica no domínio da Literatura Comparada foi ultrapassada. Depois dos trabalhos pioneiros de Fidelino de Figueiredo, Rodrigues Lapa, Hernâni Cidade, Vitorino Nemésio ou Jacinto do Prado Coelho, a disciplina de Literatura Comparada foi criada curricularmente nas Faculdades de Letras na década de 70 (FLUL, 1976). De então para cá, os estudos nesta área ampliaram-se e diversificaram-se consideravelmente. Depois da sua institucionalização académica, os estudos comparatistas contam hoje, mesmo em Portugal, com importantes organismos que dinamizam o intercâmbio entre os investigadores, potenciam a investigação e promovem a publicação de relevantes estudos. Neste capítulo, merecem destaque: a Associação Portuguesa de Literatura Comparada (APLC), criada em 1977, organizadora de congressos periódicos; os institutos universitários como o recente Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Univ. de Lisboa – organismos dinamicamente presididos pela Profª. Helena Carvalhão Buescu; ou revistas especializadas como a Dedalus.

Cândido Martins

Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, Da Literatura Comparada à Teoria da Literatura, 2ª ed. revista e aumentada, Lisboa, Presença, 2001 (Col. Fundamentos, 13; 161 págs.).


Sob a Névoa, a Cidade e Outros Contos, de Joaquim Matos

Além de antologia de impressões sobre as circunstâncias que moldaram a vida do autor, este livro é uma viagem repartida pelos dois universos afectivos que povoam a sua sensibilidade e imaginação: o Porto («Foi o Porto que me modelou, com tudo o que ele tem de bom e de mau. Foi no Porto que o meu coração se desenvolveu. É no Porto que ele bate. As raízes pertencem a Matosinhos, mas o coração pertence ao Porto. Especialmente a S. Bento da Vitória [...]», carta de 18.5.1997) e as margens do Leça ou, mais precisamente, Matosinhos («Nasci em Matosinhos, em 1929, na rua de Conde S. Salvador, a uns metros da lota do peixe. Andei na Escola do Adro, da Confraria do Bom Jesus de Matosinhos.» idem).

Livro de paixões e compaixões, de ternuras e emoções, de quedas e redenções, por estes contos de Joaquim Matos perpassa aquela aragem breve e leve, levíssima como pena esvoaçando, que nos transporta aos instantes de indisfarçável dignidade e, até, plenitude da sua infância e juventude («[...] não guardo nenhum sabor amargo desses tempos, pelo contrário [...]»). Da fundura do seu mundo morto, Joaquim Matos traz, para diante de nós, o cenário onde se movimentam as figuras, certamente para ele inesquecíveis, de gente com rosto. E, ao contrário de Raul Brandão, da maioria continua a saber o nome (ou a inventá-lo, o que vai dar ao mesmo. E se alguém adivinhar, nestes contos, onde termina a realidade e começa a fantasia, vai mais longe do que eu, que não consegui descortinar o fio que os separa).

Do Prefácio de Helder Pacheco

Joaquim Matos, Sob a Névoa, a Cidade e Outros Contos, Porto Campo das Letras, 2001 (Col. Instantes de Leitura).


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