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Notas de apresentação


Obras de António Dinis da Cruz e Silva

É muito fácil continuar a repetir apressados lugares-comuns sobre a acentuada pobreza ou estéril formalismo da poesia neoclássica portuguesa, nem sempre devidamente fundamentados sobre o directo conhecimento da criação literária. Mais difícil, mas ao mesmo tempo muito mais sedutor é revelar nos dias de hoje a obra de alguns desses poetas arcádicos. Foi a essa tarefa extremamente meritória que se propôs Maria Luísa Malaquias Urbano com a edição do primeiro volume da obras de Cruz e Silva. Pelo menos, daqui para diante, os leitores poderão ajuizar do valor estético da obra de autores como este, sem a desculpa da dificuldade de acesso ao texto dos autores da 2ª metade do séc. XVIII.

No seio da agremiação Arcádia Lusitana, António Dinis da Cruz e Silva (1731-1799) tomara o pseudónimo de Elpino Nonacriense. Tal como outros árcades, depois de cursar Direito, seguiu a carreira da magistratura. É, aliás, nesta condição que vem a desempenhar a difícil função de juiz na questão da Inconfidência Mineira, em terras brasileiras, julgando outros poetas arcádicos no papel de réus (Tomás António Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e José Alvarenga Peixoto).

Para a História da Literatura, celebrizou-se fundamentalmente como activo co-fundador da Arcádia Lusitana (1756), juntamente com outros condiscípulos coimbrões; como o criador do poema parodístico O Hissope (1768), considerado por Garrett como a “verdadeira coroa poética de Dins”; como renovador de géneros de matriz clássica, como a ode pindárica; e sobretudo, como um dos autores que se esforçou pela difusão do ideal clássico de pureza, equilíbrio e bom gosto, contrariando assim os excessos do Barroco. Foi só postumamente, logo no princípio do séc. XIX (1807-1817), que apareceram os seis tomos das suas criações literárias, sob o título genérico de Poesias. A organização desta edição, seguida agora no essencial por Maria Luísa Malaquias Urbano, coube ao académico Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato, um dos primeiros historiadores do arcadismo. Nascido em Lisboa, Cruz e Silva acaba por morrer no Rio de Janeiro.

Enquanto se aguarda, com justificado interesse, a publicação dos próximos dois volumes, neste vol. I, o leitor depara-se com publicação conjunto dos dois primeiros tomos da edição romântica. Em termos de géneros, este volume inaugural agrupa um considerável número de sonetos (mais de três centúrias), acompanhados das respectivas “Notas e Variantes”, seguindo o tomo I da edição romântica de Aragão Morato; a par de uma dissertação arcádica (em duas conferências) sobre a teorização da écloga, e dos idílios (25, pastoris, piscatórios e um venatório), do referido tomo II.

Entre outros méritos, esta edição organizada por Maria Luísa Malaquias Urbano apresenta o de uma sintética, mas oportuna introdução – a ser continuada nos textos introdutórios dos seguintes volumes –, sobre a vida e obra literária de Crus e Silva; mas ainda sobre a sua “personalidade literária” e a edição das suas Obras. Um segundo mérito reside na inclusão de notas de rodapé, de natureza informativa, esclarecendo sobretudo alusões e referências mitológicas, históricas ou simbólicas, tão frequentes dentro do convencionalismo arcádico. Finalmente, através do conhecimento de alguns manuscritos, Maria Luísa Malaquias Urbano informa-nos de alguns textos inéditos.

O formalismo e a erudição da poesia deste magistrado-poeta têm de ser julgados em função das intenções renovadores do neoclassicismo arcádico, bem como da reacção anti-gongórica do seu tempo. Dois dos grandes modelos eram o classicismo francês e italiano, com a doutrinação estética de Boileau e Muratori. Apreciada no seu tempo e nos alvores do Romantismo, desde os juízos de Garção e de Filinto, aos elogios de Bocage e de Garrett, a sua obra, tal como a de outros contemporâneos têm merecido uma recepção menos unânime modernamente.

Reconhecendo o papel central das convenções arcádicas, ainda hoje se lê com agrado certa poesia de Cruz e Silva inspirada em determinados mitos, ou aquela que se mostra próxima de vivências individuais; bem como alguma expressão poética mais quotidiana e até satírica. Ficamos a aguardar os dois restantes volumes, para então podermos formular um juízo mais completo e ponderado.

Cândido Martins

António Dinis da Cruz e Silva, Obras de..., vol. I, Lisboa, Edições Colibri, 2000; edição de Maria Luísa Malaquias Urbano (477 págs.)


Paródia no “Satyricon” de Petrónio

Perante os frequentes estudos que, nos últimos anos, vem sendo publicados sobre a Paródia, somos tentados a pensar que o discurso parodístico constitui uma modalidade discursiva característica da Arte e da Literatura contemporâneas, assumidamente irónica e pós-moderna, embora não necessariamente ridicularizadora. Contudo, como nos recorda a lição aristotélica da Poética, a Paródia é quase tão antiga como a própria Literatura.

De facto, a Paródia desempenhou um importante papel na criação literária de várias épocas, desde os clássicos gregos e latinos, nomeadamente no teatro ou na prosa (v.g., Uma História Verídica, de Luciano); até outros períodos onde foi especialmente usada, com destaque para a Idade Média e Renascimento (como o demonstram os admiária deráveis estudos de M. Bakhtine sobre Rabelais); mas também o Barroco, tão seduzido pela reescrita paródica, ou ainda as Vanguardas das primeiras décadas do séc. XX.

O bem elaborado estudo de Paulo Sérgio Margarido Ferreira é uma elucidativa prova da antiguidade da Paródia. Além de outros trabalhos demonstradores da sua apreciável formação clássica e teorética (por ex., a tradução do Livro III dos Epigramas de Marcial ou a publicação de estudos sobre a Paródia – cf. Euphrosyne, vol. 28, 2000: 177-186), publicou recentemente este estudo, apresentado academicamente como dissertação de Mestrado na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Se de outros créditos precisássemos, bastaria lermos a merecida e francamente elogiosa apresentação do Doutor Walter Medeiros, ao considerar que este estudo se tornará “de ora avante um ponto de referência para os filólogos empenhados no estudo da paródia na Antiguidade”.

Os Elementos Paródicos no “Satyricon” de Petrónio e o seu Significado é de facto, um estudo modelar sobretudo para os investigadores das Literaturas Clássicas. Mostrando conhecer não só a extensa bibliografia petroniana, mas também uma actualizada conceptualização da Paródia, Paulo Sérgio encontrava-se de posse dos pressupostos essenciais para a realização deste trabalho de investigação sobre a sedutora obra deste aristocrata suicida. Ainda que mutilada, a narrativa do Satyricon e especialmente de algumas das suas cenas, como a parodística Cena Trimalchionis, continuam a seduzir o leitor contemporâneo. Na pena do desencantado árbitro das elegâncias, procônsul da Bitínia e sobrinho do estóico e moralista Séneca, isso manifesta-se sobretudo através da inquietante captação da decadência do Império e da corrupta corte de Nero, no séc. I da era cristã. Foi justamente esta decadência que F. Fellini procurou transmitir através do seu filme Satyricon (1969).

Ora, um dos aspectos mais sedutores da narrativa petroniana é a sua dimensão paródica, já abordada com maior ou menor incidência pelos estudiosos do Satyricon, embora com as limitações inerentes ao estádio de evolução dos Estudos Literários. Porém, como oportunamente salientado por Walter Medeiros, uma coisa é elaborar o inventário das passagens reveladoras das fontes e dos processos de imitação ou de paródia, como o fez a velha filologia oitocentista, no seu afã genético e classificador; outra bem diferente, é a de apresentar uma explicação englobante dos processos parodísticos da escrita petroniana.

Esse é o objecto de estudo e, simultaneamente, o grande mérito da perspicaz e bem estruturada análise de Paulo Sérgio – dividida em duas partes: paródia literária (dos géneros, tópicos e convenções) e paródia não literária (das instituições sócio-culturais) –, ao debruçar-se argutamente sobre os fragmentos da obra que, se completa, poderia ser considerada como uma Odisseia paródica.

Cândido Martins

Paulo Sérgio Margarido Ferreira, Os Elementos Paródicos no “Satyricon” de Petrónio e o seu Significado, Lisboa, Edições Colibri / Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2000 (163 págs.).


O Mito de Camões em Itália

Não é apenas mais um estudo sobre Luís de Camões, a somar à extensíssima bibliografia já existente, que vai crescendo diariamente de modo ininterrupto, como acontece com outros grandes clássicos da literatura universal. O trabalho de Henrique de Almeida Chaves (natural de Lisboa, onde nasceu em 1964) é um importante estudo sobre a recepção do mito de Camões em Itália, sobre a enorme fortuna do Poeta lusíada em variadíssimos autores italianos, sobretudo em Oitocentos.

Consabidamente, o mito de Camões tem lenta gestação a partir da cultura, da literatura e da crítica literária peninsulares da morte do Poeta, sobretudo no período do interregno filipino, com destaque para as edições comentadas de Manuel de Faria e Sousa, como bem o demonstram os estudos de Mara Lucília Gonçalves Pires sobre a crítica camoniana no séc. XVII. Mais tarde, como estudado de modo exemplar por Ofélia Paiva Monteiro, é recuperado e configurado definitivamente a partir do Romantismo e, sobretudo, das celebrações republicanas do III Centenário da sua Morte.

Sem esquecer a sua importante associação mítica a Tasso, num binómio recorrente sobretudo na crítica literária italiana, o que é interessante é verificar como o mito nacionalista de Camões, a par dos seus generalizados topoi biográficos e literários, se mostram relevantes para a autonomia da unidade nacional italiana com Garibaldi. Nesse processo político-social da Itália do “Risorgimento”, onde se constatava a falta de uma verdadeira epopeia nacional, desenvolvia-se assim uma recepção simultaneamente literária e política da obra e imagem de um Camões liberal, genial personificação de um povo e da sua gesta heróica.

Originalmente, este trabalho de Henriques de Almeida Chaves constituiu a dissertação de doutoramento de Henrique de Almeida Chaves, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em 1997. A Luciana Stegagno Picchio cabe a elogiosa apresentação da obra.

Aliás, o interesse de Henrique de Almeida Chaves por esta temática vem de um trabalho académico precedente, uma vez que dedicara a sua dissertação de mestrado aos Aspectos da Recepção Literária do Mito de Camões em Itália no Século XIX (1804-1896), apresentada à referida instituição, em 1990. A este aspecto, some-se ainda um outro não menos relevante: o facto de o autor viver em Roma, desenvolvendo aí o seu trabalho de docência e investigação, revela-se imprescindível para a consulta de riquíssimas bibliotecas italianas. Essa consulta e o estudo correspondente constituem-se como etapas absolutamente indispensáveis para a elaboração de um bom trabalho de pesquisa neste campo do comparativismo, como é o caso desta informada obra.

Trata-se, pois, de uma tese que se situa no âmbito disciplinar do comparativismo literário. Já antes do presente trabalho de Henrique de Almeida Chaves, outros estudiosos se debruçaram sobre o alargado campo dos estudos luso-italianos (relacionando Camões com Ariosto, Tasso ou Petrarca, v.g.) e, em particular, sobre a recepção de Camões em Itália. Apontem-se, a título de exemplo, trabalhos de Jean Lacroix, Giacinto Manuppella, Alessandro Martinengo, José da Costa Miranda, José V. de Pina Martins, Luciana Stegagno Picchio ou de vários estudos publicados em revistas especializadas como Estudos Italianos em Portugal, naturalmente citados e conhecidos pelo autor, como se pode verificar pela sua bibliografia final.

Dispomos já de importantes estudos sobre a recepção de Camões na Alemanha, na Inglaterra ou em Espanha (como os de Eugenio Asensio ou Dâmaso Alonso, por exemplo). Faltava, porém, um trabalho sistemático sobre a recepção italiana como este, estruturado a partir dos importantes progressos dos Estudos Literários, nomeadamente a partir das fecundas propostas da Literatura Comparada; ou da renovação metodológica da Estética da Recepção de Hans Robert Jauss e dos conceitos já clássicos de “horizonte de expectativa”, “influência”, “imagem” ou “recepção literária”.

O autor deste bem organizado estudo, estruturado em seis capítulos, começa por definir o importante conceito de “mito”, clarificando as suas várias acepções, uma vez que mais do que a recepção de uma obra, estamos perante a análise de um processo de recepção de um mito de base nacionalista. Centrado sobre o séc. XIX, o estudo do largo processo da fortuna camoniana começa com as traduções e edições da sua obra; prolonga-se nas biografias e no discurso crítico sobre Camões; desenvolve-se na escolha do mito de Inês de Castro e na sua reinterpretação; afirma-se, enfim, na preferência, para a escrita dramática e melodramática, do tema larmoyant do heróico poeta-soldado português, abandonado, incompreendido e infeliz. Em suma, Luís de Camões é o paradigma do herói liberal, imagem tão cara quer aos sentimentos patrióticos da estética romântica, quer ao contexto sócio-político da unificação italiana subjacente.

Cândido Martins

Henrique de Almeida Chaves, O Mito de Camões em Itália, Lisboa, Edições Colibri, 2001 (397 págs.).


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