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Notas de apresentação


Arcanjos e Bons Demónios (Crónicas da Guerra de África 1961-1974), de Daniel Gouveia

«O tema da guerra estava tão estafado... Mas um livro andava, havia muito, a bailar-lhe no espírito, praticamente desde que aquilo acabara. Era o estilo que o reprimia. A maneira de abordar o tema fazia-o adiar, adiar sempre, o raio do livro. Vivências não faltavam. Únicas, raras, ou se calhar comuns a qualquer militar de qualquer guerra. Lembrou-se do soldado de Maratona e da relatividade do tempo. Certamente, aquele grego enfrentara o combate com o mesmo medo de todos os guerreiros. Para depois vir a morrer da corrida que fez para transmitir a notícia da vitória. Os seus contemporâneos devem ter lamentado a morte de um herói tão novo. E viveram mais trinta, cinquenta anos. Mas que importa ter vivido mais trinta ou cinquenta anos, quando passaram 25 séculos sobre o episódio?

Este pensamento ocorria-lhe sempre que saía para operações. Ajudava-o a desprezar a morte, caso fosse nesse dia que a estatística o escolheria para se alimentar. Pensava: que interessa morrer hoje ou de velhice para quem esteja a ler a história desta guerra daqui a duzentos anos? E afivelava as armas, juntava-se às fileiras e partia mais tranquilo.» (Do primeiro capítulo)

Daniel Gouveia, Arcanjos e Bons Demónios (Crónicas da Guerra de África 1961-1974), Lisboa, Hugin, 2ª ed., 2002 (Ficção).


Estiletes de Pedro Eiras

«Há um Limiar em que sou visto e um limiar em que não. Um passo para a frente é decisivo: o sensor apanha-me no seu raio: e a luz acende-se, Fiat lux, a lâmpada no céu, sete trombetas de apocalipse, napalm e anjos suspensos, a vigilância, os espiões, tudo na minha cabeça, na minha cabeça. Penso: não, isto é só um quarto de banho, a última onda da tecnologia, a máquina servindo o homem, vassala­gem. Somos substantivos e adjectivos, procuro-me para me convencer: isto é só, isto não passa de, isto limita-se a ser um quarto de banho.

Então por que me sinto observado, minado, telescopado? Eu entro e a luz acende-se. Nem tive tempo para procurar o interruptor. A mão está habi­tuada a certa cegueira, a tactear. A mão precisa da treva inicial enquanto procura o interruptor. Esta treva é toda a treva, e a mão lembra-se da treva, de fabricar os seus próprios instrumentos para o seu próprio uso. A mão lembra-se de ser mão. Quando foi preciso a mão ligar e desligar, acender e apagar Luzes, a mão habituou-se, submeteu-se. Não foi difícil. Mas agora a mão procura o interruptor e não o acha. Há um limiar em que a mão é vista, e a luz acende-se. Há uni limiar em que não. Sozinha, meu deus, sozinha, a luz acende-se.» (do conto "Inconfidência: Letes", pp. 49-50)

Pedro Eiras, Estiletes, Porto, Cadernos do Campo Alegre, 2001 (Contos).


Os Ases de Cataguases (Uma História dos Primórdios do Modernismo) de Luiz Ruffato

«Onde foram buscar suas fontes aqueles rapazes, nos idos de 1920? Como era Cataguases naquele tempo? Que sonhos vivia a juventude, nascida de raízes cafeeiras, e cujos pais procuravam no comércio, na indústria e no política novos ares?

Como arrumaram suas ideias, qual

o contexto social em que viviam, que

apertos passaram para editar uma

revista fora dos moldes Habituais

e alinhada aos demais modernistas?

Não só essas, mas muitas outras perguntas poderão ser respondidas com a leitura de Os ases de Cotaguases, do escritor cataguasense Luiz Ruffato.

Veio o estudo de Ruffato sobre o Movimento Verde como o depoimento do representante de uma geração nova e consciente, que vem trazer sua compreensão do fenómeno, sua visão do que foi o experiência artística de 1927. Envolto ainda numa moldura novecentista, a Cataguases daquele tempo deveria representar um enigma muito mais perturbador para os jovens que o ousaram desafiar do que se poderá supor hoje. Portanto, o quadro que se delineia na amostragem da aventura ‘verde’ não é tarefa fácil para se compreender, mas Luiz Ruffato, aliando qualidades de pesquisador e escritor, soube trabalhar o material encontrado e trazer subsídios essenciais. Muito me alegra perceber que a existência de Verde e de outros movimentos que vieram depois já vai se enraizando na cultura da cidade coma um património a partir do qual muitos outros poderão também frutificar.

Esse o verdadeiro sentido que a tradição e o passado devem ter. Propiciar novas e instigantes conquistas em direcção ao futuro. E nessa linha que o livro de Luiz Ruffato, por certo, traz contribuição ainda mais valioso.» (da badana do livro)

Luiz Ruffato nasceu em Cataguases em 1961. Tem publicados Histórias de Remorsos e Rancores (contos, São Paulo, Boitempo, 1998), (os sobreviventes) (contos, São Paulo, Boitempo, 2000, Prémio Casa de las Américas de Cuba) e Eles Eram Muitos Cavalos (romance, São Paulo, Boitempo, 2001, Prémio APCA de Melhor Romance de 2001, Prémio Machado de Assis do Fundação Biblioteca Nacional e indicado para o Prémio Jabuti de Melhor Romance de 2001) e As Máscaras Singulares (poemas, São Paulo, Boitempo, 2002). Participa das antologias Novos Contistas Mineiros (Porto Alegre, Mercado Aberto, 19881, 21 Contos pelo Telefone (São Paulo, DBA, 2000), Geração 90 – Manuscritos de Computador (São Paulo, Boitempo, 2000, organização de Nelson de Oliveira) e Os Apóstolos – Doze Revelações (São Paulo, Nova Alexandria, 2001, organização de Márcia Denser). Tem contos traduzidos para inglês e espanhol.

Luiz Ruffato, Os Ases de Cataguases (Uma História dos Primórdios do Modernismo), Editor-Empresa, 2002 (Ensaio).


Contos Eróticos de Natal

«Corria a época natalícia de 1999 e, na Hugin, fazia-se o cômputo dos livros a editar na quadra próxima. Alguém aludiu ao problema do excesso de oferta e à velha questão dos ingredientes que atraem o comprador para determinado livro em detrimento de outro, no mar de hipóteses que uma livraria oferece. Capa, tema, autor, formato, preço... Como temas presentemente mais aliciantes para as massas – verberando-se, é claro, o declínio da Cultura em favor delas – lá vieram a intriga, a violência, o sexo.

Foi então que uma voz atirou:

– Eu sei o que é que se vendia bem. Era um livro com o título "Contos Eróticos de Natal"!

Os risos gerais poderiam ter rematado por ali o gracejo. Só que um dos interlocutores era Jorge Guimarães, autor da casa, nesse dia em visita. Replicou, tranquilamente, que seria um desafio... Bem trabalhada, era uma ideia a encarar com seriedade. Por que não?» (da nota introdutória)

AA. VV., Contos Eróticos de Natal, Lisboa, Hugin, 2000 (Ficção).


Trapos de José Abílio Coelho

«O corredor era branco, estreito e comprido. De ambos os lados, aferra­das às paredes nos intervalos existen­tes entre as várias portas que davam acesso aos gabinetes médicos, havia macas assentes em estruturas metáli­cas e sobre elas doentes e acidentados à espera de vez para serem atendidos. Estranhamente, todos eles se encontra­vam em silêncio, como se pensassem que só a morte é barulhenta.

A meio do corredor, encostado num pedaço de parede livre de portas, ha­via um banco corrido, com uns três metros de comprimento, no qual se sen­tava uma boa dezena de pessoas, tam­bém à espera de consulta. Todas ti­nham apertadas nas mãos as fichas de papel amarelo que lhes davam à en­trada da Urgência, quando faziam a ins­crição. Estavam caladas, a maioria de cabeça baixa e olhos esbarrados no chão azulado e muito limpo. Um relógio redondo, de metal, estava pen­durado por sobre uma das portas do fundo e os seus ponteiros marcavam nove horas e dez minutos. O calor co­meçava a apertar.» (pp. 15-17)

José Abílio Coelho, Trapos, Póvoa de Lanhoso, Editorial Ave Rara, 2000 (Ficção).


Os Melhores Contos de Os Putos de Altino do Tojal

É uma colectânea que recolhe, no entender dos editores, os melhores contos de Os Putos de Altino do Tojal. São 23 contos, alguns deles «quase inéditos», como é referido em subtítulo. Tendo sido Os Putos e as suas sequelas alguns dos livros mais lidos e vendidos em Portugal nas décadas de setenta e oitenta, com direito a serem tratados em manuais escolares, utilizados como argumentos televisivos e de banda-desenhada, traduzidos para várias línguas e caídos no sótão do esquecimento nos últimos anos tal como acontece a todas as coisas, esta nova edição vem lembrar que os ditos ainda comportam uma leitura actual.

Altino do Tojal, Os Melhores Contos de Os Putos, Póvoa de Lanhoso, Editorial Ave Rara, 2001 (Contos).


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