Letras & Letras

Crónicas


Fernanda Macahiba: Metáforas



Metáfora I

Creio que uma das maiores, senão a maior mágica existente na natureza é o ciclo das estações. Infelizmente, no Brasil elas não são definidas com a precisão européia. Imagino como deve ser linda a chegada da primavera após um longo inverno generoso em neve e frio. Os contrastes conseguem amadurecer e fazer florescer. As plantas sempre fizeram parte de minha vida, apesar de eu não ter dom para plantar e colher, como certas pessoas especiais. A família de meu pai sempre foi fascinada por plantas. Minha bisavó tinha uma horta de fazer inveja a qualquer num – lembro-me que cultivava até espinafres.

Minha avó paterna cuidava do jardim com religiosidade cristã e as rendas portuguesas eram suas meninas dos olhos.

Minha avó materna enchia a casa de xaxins, jibóias, pingos de ouro e tantas outras espécies que formavam uma profusão ‘selvagem’. Tudo começava na garagem e avançava para dentro de casa.

Por possuir mão tão boa para plantar, meu avô tinha brigas homéricas com ela, observando e convivendo com o desempenho excepcional das verdinhas, que começavam a disputar espaço com o carro na entrada da casa.

Meus avós maternos sempre tiveram horta no quintal, mesmo morando em São Paulo.

Já meu pai sempre foi fascinado por orquídeas. Guardo em minha lembrança episódios memoráveis de trilhas pelo meio da mata e subidas em árvores para ‘roubar’ uma planta dessa espécie.

Uma vez arranhou o corpo todo, quando um galho podre lá de cima quebrou com o peso dele, que veio abaixo quebrando galhos e galhos da pobre árvore. Tudo isso por causa de uma orquídea amarela com manchas marrons, que, segundo meu pai, era rara.

Minha casa era cheia de orquídeas de todas as ‘raças’. Até mesmo aquelas consideradas não  cultiváveis fora de seu habitat natural enchiam de flores e outras floresciam duas vezes ao ano.

Uma vez meus irmãos foram jogar bola no quintal e fizeram uma das árvores de trave, acertando e dizimando parte das orquídeas. Nunca vi meu pai tão furioso!

Parece que algumas pessoas têm realmente um ‘dom’ para plantar. Não raro escutamos comentários: – aquele tem mão boa, tudo que planta, dá.

Não é o meu caso. Meu único sucesso foi com um pobre ipê amarelo que plantei no corredor que desaguava no quintal. Ganhei essa muda de ipê numa feira de flores que acontecia na Casa da Cultura em Lorena.

Fazendo um parêntese, Lorena é conhecida pelos ipês que margeiam a avenida principal. Amarelos, roxos, brancos... As árvores ficam lindas na época da florada! Os ipês brancos deitam tantas folhas que quando eu ia para a escola parecia que pisava na neve.

Voltando ao meu caso do ipê amarelo, plantei a muda num lugar errado e ela, teimosa, resolveu ‘pegar’ e cresceu demais.

Vivia entupindo a calha de casa e eu nunca deixei ninguém cortar. A raiz ficou enorme e estourou o piso do corredor. Meu pai a enfeitou com orquídeas roxas herdadas de um tio avô (ele ganhou as flores quando esse tio faleceu).

Alguns meses antes de falecer, meu pai exterminou todas as plantas do quintal, incluindo as orquídeas e setenta por cento do tronco do 'meu' ipê. Perguntei a ele o porque da devastação e recebi como resposta apenas um  sorriso triste. Ele sabia algo que eu nunca poderia desconfiar – seu ciclo estava terminando. Senti muita tristeza naquele dia.

Hoje, quase dois anos após sua morte, 'meu' ipê amarelo está tentando florescer e observo sua luta e sua vitória.

Nunca tive paciência para regar diariamente plantas e os pequenos vasos que tenho em casa sofrem com minha falta de consideração permanente.

Talvez se eu criasse cactos fosse mais feliz, pois não exigem regas diárias para existir.

Apesar da minha inabilidade e falta de dedicação com os seres vegetais, sempre fui agraciada com espécimes que marcaram minha vida.

Tenho paixão por árvores centenárias e acho perfeita a tradição de alguns povos que plantam árvores no dia do nascimento dos filhos e os ensinam a cuidar delas.

No início de 2006, assisti uma palestra do professor Dr. Luís Barco, dedicada aos ingressantes da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, que contou o procedimento de uma Universidade de medicina européia. Discorreu acerca do momento da colação de grau dos ‘futuros’ médicos, em que há uma cerimônia com o plantio de árvores.

Relatou o instante em que uma médica mostrou a ele a árvore que havia plantado no momento de sua graduação. Estava imensa. E ela visitava 'sua amiga' semestralmente.

Em uma outra ocasião, quando fiz um curso no parque da Água Branca em São Paulo, encontrei algumas pessoas abraçando o tronco das árvores que enfeitavam as alamedas. Achei estranho e tentei ver sentido naquilo, sem o conseguir.

Metáforas à parte, há coisa mais deliciosa que andar num dia quente e de repente encontrar uma sombra de árvore?

Sempre sonhei em ter minha própria casa e plantar minhas árvores, que seriam de meus filhos, netos e assim por diante.

Não tenho ainda esse local, mas em minha última mudança, num acesso impensado, recusei uma casa de aluguel praticamente ao lado da Universidade para morar num bairro isolado só porque no quintal brilhava uma árvore enorme.

Nem ao menos conhecia o interior da casa, mas a árvore bastou. Imaginei Ninianne (minha filha) correndo pela grama, os oito cachorros traquinando e eu, deitada à sombra num dia quente.

Essa árvore tem um tronco central enorme e desse tronco surgem galhos bastante robustos que foram desgraçadamente podados ao meio.

Mas a teimosia dessa árvore venceu e de cada um desses galhos robustos saíram muitos galhos finos que acolhem todo o quintal. Ela ficou desengonçada (lembra muito a árvore lutadora do filme do Harry Potter), mas sobreviveu bravamente à tentativa de destruição.

Para mim ela é a árvore mais linda do mundo. Até mais que os invejados baobás do Pequeno Príncipe.

Creio que árvores são seres mais teimosos que conheço – depois de jumentos e de mim mesma.

Quando me mudei soube que o dono da casa não aprecia a vegetação local. Vivia destruindo as árvores e trepadeiras, coisa estranha de se fazer partindo-se do princípio de que o bairro é, decididamente, rural.

Enfim, quando lembrava sempre molhava o tronco enorme, que tem parte das raízes caminhando pela grama. Mas, como disse, não sou assídua com plantas.

A árvore estava sem folhas e após alguns meses elas começaram a crescer pelos galhos, primeiro com timidez e após as chuvas com um vigor incrível. Ela não tinha flores, mas para que? pensava eu, se toda aquela grandeza me mostrava a história de vida daquele ser.

Pode parecer infantil demais, mas é impossível deixar de imaginar que tudo aquilo saiu de uma sementinha, talvez deixada ali ao acaso.

E é inevitável deixar o pensamento fluir quando o vento sopra forte e olho, através da vidraça, aqueles galhos balançando e soprando, soprando um tipo de melodia que me parece conhecida por fazer parte do mundo.

E faz sol, chove, venta, esfria e a árvore continua ali. Sempre. Respeitando os ciclos.

Presenciei o nascimento das folhas e a queda de todas elas. Vi a feiúra estampar-se de marrom nos troncos e raízes e agora, há pouco tempo, novas folhas nasceram.

Ciclo perfeito e maravilhoso!

Quando passeio pela Universidade estou rodeada por árvores das mais diversas. Não raro amigos comentam a beleza de uma ou outra.

Campinas parece ser a cidade dos Flamboyants. Essas árvores são lindas! Exibem uma cor tão poderosa que acabam por diminuir todas as outras folhagens que estão à sua volta. Mal comparando seriam como pavões em meio às galinhas.

Conheço algumas pessoas que têm essas árvores no quintal ou na calçada de casa. E, sem exceção, no mês de novembro, ouço comentários: – a minha árvore está linda!

De certa forma nos apropriamos desses seres. Ou talvez eles se apropriem de nossa alma, fazendo com que renasçamos ao observá-los.

Há duas semanas, após ouvir de um amigo sobre o esplendor de seu Flamboyant, cheguei em casa pensando que era feliz por ter a minha arvorezona esquisita e verde. Não a plantei. Ela já estava lá quando cheguei. Mas de certa forma sinto que é minha e que sou dela.

Essa semana, ao abrir o portão e olhar para cima me deparei com uma mecha de flores alaranjadas lá no galho mais alto e descobri que minha arvorezona é, na verdade, um flamboyant.

Senti uma alegria tão grande! Vontade de gritar, abraçar o tronco dela, dançar ao redor, etc, etc.

Esperança. Talvez seja essa a palavra perfeita para descrever o que senti.

Ela levou dois anos para conseguir ser o que realmente é, em todo esplendor, apesar das podas.

E, naquele momento de perda familiar, esse foi todo o presente que eu precisava.

Para finalizar, não poderia deixar de citar o desenho de Walt Disney, artista criticado por tirar todo o sentido dos contos de fadas, transformando finais tristes em felizes. Mulan, desenho elaborado após a morte do criador Disney, mas que preserva sua idéia dos finais felizes, traz duas cenas memoráveis.

 Uma delas é o momento em que Mulan não consegue agradar a casamenteira e chega em casa envergonhada, por não conseguir respeitar uma tradição. O pai senta-se com ela debaixo de uma árvore que está toda florida, com exceção de um único broto que ainda não abriu. E ele diz que tem certeza de que aquele broto, quando abrir, será a flor mais linda de todas. Diz que cada um tem seu tempo. E ao final do filme toda a árvore perde as flores e sobra apenas aquele broto, que se abre em flor. E no contraste com a ausência das outras flores, torna-se especial.

Outra cena desse desenho que me parece digna de menção é o comentário que o Imperador da China faz quando percebe que Mulan, uma mulher (considerada um ser inferior na China da época) salvou todo o Império. Ele diz que ‘a flor que desabrocha na adversidade é a mais bela’.

Observando a natureza e o ser humano (que também é parte dela) entendo a sabedoria instrínseca aos processos cíclicos.

Talvez o Criador queira nos ensinar, através do processo natural das plantas, que é possível aceitar os ciclos de nossa vida – aceitando as ‘estações’ como partes de um todo maravilhoso que ainda não podemos compreender, apenas vivenciar.

 

Fernanda Macahiba, Novembro de 2007

Voltar à página inicial de Metáforas

Colaboradores | Coordenação | Contactos | © 1997-2015 Letras & Letras