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Crónicas


Fernanda Macahiba: Metáforas




O olho e o olhar

As árvores não permitem ver o bosque, e graças a isto é que o bosque existe. A missão das árvores patentes é fazer latentes as demais, e só quando nos damos perfeita conta de que a passagem visível está ocultando outras paisagens invisíveis, é que nos sentimos dentro de um bosque.

...Pois o profundo necessita de uma superfície atrás da qual esconder-se, precisa da superfície ou aparência para ser o profundo, de algo sobre o que se estenda e que ela intercepte.

José Ortega y Gasset

Consinto a mim mesma, pela primeira vez, autorização para descrever o processo que tenho vivenciado como a artista que pretendo ser. Digo ‘pretendo ser’ pois a arte é uma senhora complexa, exigente e ilimitada. O desejo de sentir o espírito impregnado de  saberes artísticos parece inalcançável, devido às infinitas possibilidades possíveis.

Analisando relatos de grandes mestres percebo que essa insatisfação com a (in) capacidade de representar fielmente o que vai à alma sempre foi um sentimento assaz perturbador. A busca pela verdade pictórica do olhar atemoriza e insufla um sentimento incalculável de impotência.

Conheci senhorita pintura quando contava com quinze anos e apenas há cinco – tenho hoje trinta anos – percebo que o mundo produz uma imagem ilusória de simplicidade. Chega a ser tão ilusória que muitos vivem suas vidas acreditando naquilo que vêem na superfície e se satisfazem com isso. Não percebem que há a possibilidade de aperfeiçoamento da percepção transformadora do olhar e da alma, permitindo o desvendar mágico do 'bosque além das árvores patentes e o saber além dos montes'.

Através da leitura do ensaio de Saramago acerca da cegueira percebi que meus olhos estavam fechados para muitas verdades e sobre alguns aspectos, talvez ainda estejam. Felizmente existe sempre a oportunidade de ver novos modelos. E a percepção é mantenedora e provedora desses ciclos do tornar visível.

Devo minha 'última' nova visão a um dos maiores mestres ainda vivos: Álvaro de Bautista. Engenheiro naval, artista exímio, incompreendido, de procedência enganosamente Uruguaia – nasceu num barco em alto mar, quando seus pais fugiram da Europa em meados do século XX. Esse professor me ensinou, através de uma dolorosa lição, que um aspirante a artista nunca conseguirá produzir e entender uma obra de arte se não dedicar a ela tempo, prática, observação, persistência e paciência. Diz que a distância daqui (apontando para a cabeça) até aqui (apontando as mãos) é muito maior que supomos. 

No ano de 2007, meu mestre completou setenta anos. Em nossa Universidade, ao alcançar essa idade o professor é automaticamente desligado dos afazeres do magistério. Encaro com revolta e extrema insatisfação essa atitude. Creio que a vida, assim como a arte, apenas aperfeiçoa as pessoas com os anos. Fez uma última exposição na Galeria de Arte da Universidade. Generosamente, mostrou sua vida nas paredes, pois um grande mestre não expõe obras, expõe sua alma. E lá está a alma de meu mestre – nos olhos dos meninos pobres de Salvador, na lavadeira no rio, na menina que entrou nas águas calmas com uma camiseta azul, nas rugas dos rostos sofridos dos homens do sertão, na esperança das crianças que brincam com bonecas quebradas, na mulher cibernética que, com  o olhar perdido, observa um peixe dourado num aquário. Sua obra emociona, encanta, relata o mundo intitulado Gente da terra – retratos do povo brasileiro – em telas grandiosamente elaboradas.

Meus primeiros passos em direção à verdade pictórica foram ajudados por mestre Álvaro. O preparo do suporte com cola de coelho e o quadricular do estudo de cores. Repentinamente, lá estava eu, com uma segunda tela em branco, além da composição geométrica num palco, esperando ser compreendida pela alma e delineada pelo carvão.

Era um exercício de aprimoramento do olhar. O professor criou uma composição tridimensional com formas geométricas e um tecido. Os alunos precisavam olhar, desenhar com carvão em uma tela, fixar e pintar, procurando a maior proximidade possível das proporções e cores originais.

Foram seis meses de atividade incessante. Desenhando, refazendo, praguejando. O professor olhava, olhava e nada dizia. Por vezes apontava um possível 'vir a ser'. Ao final do curso fui presenteada com um sofrido 7,5. Ele disse: – A sua esfera não está em cima do cubo. Ela está ‘surrealista’, flutuando acima dele. Recebi uma ‘raspança’, com a frase que eu ouviria muitas vezes durante nossa convivência nesses cinco anos: – A distância entre os braços que seguram o pincel e o cérebro é maior do que imaginamos.

Meu maior desespero era olhar o quadro e não perceber o defeito – eu tinha certeza de que esfera estava desenhada em cima do cubo e não acima dele. Cheguei a pensar em desistir do curso, pois se era incapaz de entender aquela simples composição, eu estava no lugar errado. Releguei ao quadro um canto empoeirado atrás do armário.

O tempo passou e a faculdade, a vida, muitas aulas, as noites mal dormidas, as aulas extras e minha experiência me provaram que realmente as pessoas enxergam o mundo de maneira diversa. Mas há algo em pintura que consegue abranger a alma de grande parte da população. Essa mágica só é alcançada por grandes mestres.

Somente alguém que se dispôs a ser artista entende a dificuldade de sê-lo. É preciso forçar todo o sistema nervoso até a exaustão e o espírito ao limite de toda a sanidade mental para obter resultados de excelência. E, infelizmente, uma faculdade de Artes não produz o artista, apenas insinua o vir a ser, o possível dentro dos limites de cada aluno num Universo ilimitado. Geralmente, encontramos nesse meio universitário, duas categorias de 'artista'. Uma delas é composta por aqueles que são prepotentes como a raposa da fábula de Esopo – por não alcançarem as uvas, sempre declaram que estão verdes. Incapazes de ouvir opiniões, acreditam que nasceram gênios e não precisam do professor.

A outra categoria – na qual me incluo, é a dos inseguros, insatisfeitos com sua (in) habilidade e falta de experiência. Afirmam que, dentro desse imenso universo das cores, tintas, argilas, gesso e suportes é praticamente impossível ser um artista completo.

 Felizmente não desisti da arte e continuei tentando desenhar, com meus traços inseguros, o mundo que eu via e sentia. Fui salva por ela das mais variadas formas, apesar de nunca me satisfazer com o produto final. Creio que o homem é realmente um ser inacabado. Uns mais bem acabados que outros, entretanto, todos em constante transformação.

Há alguns meses, resolvi fazer uma limpeza em casa e o encontrei: a prova de meu maior desgosto pictórico – a composição geométrica. Esse encontro me proporcionou uma viagem no tempo e fechei os olhos por um momento, relembrando toda realidade periférica de minha vida naquela época. Percebi que não dedicava minha alma e tempo como deveria à senhorita pintura. Obviamente recordei o dia da avaliação final e a sentença daquele que considero meu grande mestre. Senti novamente toda frustração, quando soube que minha esfera estava flutuando e não conseguia pousar sobre o cubo. E eu não conseguia ver isso. Resolvi munir minhas mãos de coragem e pendurei o quadro na parede da sala e olhei, olhei, olhei. Com espanto entendi: a esfera estava flutuando! Ele tinha razão.

Comecei a teorizar e tentar entender qual processo treinou meu olhar. Qual o mecanismo estranho mudou minha percepção de mundo? Decidi acreditar que o olho é uma parte mecânica de nosso corpo, mas o olhar, o olhar...esse pertence apenas ao espírito. O olho é instrumento, o espírito é possibilidade de evolução, é canal direto com o belo, o estético, a verdade.

Relembrei uma bela citação de Matisse, que diz 'O espírito faz a mão, a mão faz o espírito. O gesto que não cria, o gesto sem amanhã, provoca e define o estado de consciência. O gesto que cria exerce uma ação contínua sobre a vida interior. A mão arranca o tato de sua passividade receptiva, ela o organiza para a experiência e para a ação. Ela ensina o homem a possuir extensão, o peso, a densidade, o número. Criando um Universo original, deixa em todo ele sua marca. Mede forças com a matéria que transforma, com a forma que transfigura'.

O gesto, quando resultante da ação persistente, ensina o olho a ser olhar. A percepção de mundo exige doses exacerbadas de observação, atenção e paciência. O olhar não parte apenas dos olhos, é associação de todos os sentidos.

Quando comecei a pintar retratos – uns dois anos após o episódio do cubo e da esfera – não conseguia absolutamente entender o rosto humano. Parecia mais abstrato que as mais absurdas abstrações. O nariz então...quanto sofrimento! Sempre pareciam estilizados demais, exageradamente arredondados. Quantos monstros desenhei! Quantas horas de frustração passei! E noites em claro achando que não tinha vocação!

Atualmente acredito que todos têm vocação para a arte, que é representação da vida, por excelência. Entretanto, é preciso dedicar-se, mergulhar nas formas e cores, na observação, na prática, na paciência e no afeto. A evolução do processo pictórico é a evolução da própria vida interior, cada vez mais aperfeiçoada.

Após estudar anatomia  procuro observar as pessoas com o olhar, não com os olhos. O humano é belo em todas as suas imperfeições e diferenças, apesar de possuir os mesmos nervos, ossos e músculos. O que o faz assim? Será sua alma ou o olhar do artista?

Todos os retratos que fiz foram de certa forma, revelações. O que mais me emociona ao ver um retrato terminado é observar o olhar. Como é fácil desenhar os olhos, mas como é difícil entender o olhar, que registra a alma. Um pequeno milímetro sem a pincelada adequada destrói todo o contexto.

Retratei, certa vez, uma pessoa esteticamente bonita, mas com personalidade exageradamente agressiva. Finalizada a pintura, observei seu olhar e surpreendentemente quanta meiguice repousava sobre aquela face. Alguns meses depois conheci a história daquela vida e entendi o porque da agressividade. Captei, sem o saber, um momento de meiguice, o reflexo recebido por aqueles que, por vezes, se dispõem a acalenta-la..

Atualmente, tenho encontrado inúmeras personalidades dignas de serem retratadas. Pessoas que têm substância, que têm espírito, mesmo que escondido sob uma aparência fria e distante. São especiais em sua singularidade e não supõem, sequer, que têm tanta alma. A pintura revela o interior, não esconde a essência. Ao contrário, a revela. No momento que o artista consegue obter isso, consegue obter o segredo da vida.

Minha pintura me ajuda a entender o mundo das pessoas e a perceber o mundo exterior e suas nuances variadas. E, conseqüentemente, consigo entender meu mundo interior, que filtra e acrescenta peso àquilo que registro.

Afirmo que sou afortunada por ter sofrido para conseguir entender que a bola estava realmente flutuando e que há maneiras de fazê-la pousar sobre esse cubo, como a realidade. Mas isso exige tempo, muito tempo.

E por Deus, como é difícil entender e captar a essência de um simples grão de areia! É preciso ser grão de areia sem sê-lo para conseguir entender. Ser o que não se é e sentir, perceber o processo de vida embutido num simples corpo, que de simples nada tem.

Continuo não entendendo qual mecanismo consegue produzir a percepção refinada. Muitos anos são necessários para a descoberta real e de repente, num instante que poderia ser como outro qualquer, a magia acontece e ‘pluft’, somos capazes de perceber realidades mágicas, desvendar os segredos que estão além de nossa visão parcial.

Segundo Henry Miller, 'somos todos culpados de crime, o grande crime de não vivermos uma vida completa. Mas somos todos potencialmente livres. Podemos não pensar no que deixamos de fazer e fazer aquilo que esteja dentro de nosso poder. O que possam ser esses poderes que existem em nós, ninguém ousou verdadeiramente imaginar. Que são infinitos, nos conscientizaremos no dia em que admitirmos nós mesmos que a imaginação é tudo. A imaginação é a voz da ousadia'.

Talvez no futuro eu possa redescobrir novamente a vida, tentando uma aproximação cada vez maior da totalidade da verdade do mundo, através da prática pictórica, desvendando novas realidades através da imaginação guiada pela percepção, seguindo intensamente cada segundo assombroso de vida proporcionado por uma revelação de olhar.

Merleau-Ponty, em uma frase enganosamente simples, disse "Só se vê aquilo que se olha".

Pergunto: Porque precisamos do fluir intenso de anos para conseguir observar um mesmo quadro e entender que a esfera está flutuando?

Serei eternamente grata àquele que generosamente se dispôs a dizer que enxergava além e que despertou em minha alma a vontade ilimitada de abandonar minha cegueira para conseguir enxergar a cada dia um mundo mais verdadeiro, através da dedicação, persistência e fé.

Um professor e artista nunca poderá fazer uma obra por um aluno, tampouco fazê-lo entender o olhar proveniente da vivência, mas sempre será grandioso e digno de gratidão quando souber despertar a inexperiência para o caminho que leva à compreensão dos segredos que estão além dos horizontes visíveis.

Fernanda Macahiba, Janeiro de 2008

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