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Crónicas


Fernanda Macahiba: Metáforas




Distâncias

A principal característica do mundo contemporâneo é a velocidade. A conseqüência dessa adulteração dos instantes em nossa percepção acaba por gerar uma pseudo acentuada aceleração psicológica do tempo, reduzindo as ilustres 24 horas do dia.

Percorrendo o trânsito de grandes cidades e observando o ritmo das pessoas e automóveis, tenho a sensação de pertencer a uma espécie que se multiplica desordenada e incessantemente.

Não há mais tempo para dedicar às longas e intermináveis conversas que se transformavam em verdadeiros contos folclóricos do povo. As crianças não sentem mais que o asfalto sob os pés e as grades nas janelas. As mulheres, bem sucedidas, não permitem ao vento que desmanche seus cabelos, não concedem aos filhos pipocas que não sejam de microondas e não encontram instantes para tomar chuva, tirar os saltos e sentir a grama sob os pés ou ninar as crianças sob as hipnotizantes músicas que ouviam outrora de seus pais.

Entropia, caos, civilização. Há nomes que designam nosso meio de vida moderno e nenhum deles me parece agradável.

Continuo, apesar de condenada pela maioria dos mortais por pensar de maneira retrógrada, fazendo questão de 'perder tempo' amassando massas de pão, misturando farinha aos ovos, batendo na panela cantando músicas aprendidas com meu avô esperando o espocar das pipocas, contando histórias infantis inventadas e improvisadas para minha filha, observando as formigas, joaninhas e taturanas no jardim e tomando chuva nos dias de verão. Coisa de artista, dizem as pessoas. Creio que poderia dizer que são de gente humana.

O mundo padronizado de certa forma inibiu o contato direto com as mágicas executadas pela natureza através de nosso corpo, como se plastificasse a alma da população.

Ao ser inserida numa interminável rotina de trabalho, transporte, estudo, profissão e sonho acadêmico, relembro nos momentos de grande tensão, com saudades, os dias deliciosos da infância nos sítios e a sensação das águas do rio resvalando por meu corpo.

Naturalismos à parte, há de haver significados e sentidos nesse contato homem-natureza.

 Qual o gosto de um ovo de verdade, de galinhas alimentadas com milho e criadas livres? Qual o sabor de um legume sem agrotóxico ou de um suco de frutas sem conservantes? A maioria das pessoas não sabe. Do leite que vem diretamente da vaca e não da caixinha, como pensam a maioria das crianças.

Imagino que deva haver uma forma de distanciamento dessa realidade e imagino nosso planeta visto do silêncio do espaço. A dança da harmonia, sem a pressa característica de nossa realidade contemporânea.

A distância oculta nossa pressa em chegar a algum lugar que não sabemos. Ela omite a realidade sentida pela proximidade.

À distância todas as rotinas se aquietam. À distância um quadro impressionista, repleto de pinceladas que parecem não ter sentido, transforma-se em paisagem. À distância ainda encontra-se silêncio, até mesmo na paisagem urbana que insiste nos ruídos intermináveis. À distância há belas imagens noturnas de luzes imóveis que brilham sem provocar dores de cabeça e luzes móveis que não cegam, apenas acalmam. São as luzes dos outdoors e automóveis.

E o tempo... Esse mago flui e nos distancia do hoje. Permite a leitura do passado num fechar de olhos, o afastamento para a compreensão. O ponto de fuga que concede a visão dos dias e horas, o distanciamento da vida, transformando em pensamentos realidades nostálgicas e experiências em sabedoria, nos encaminhando ao inevitável fim de um ciclo, iniciando a maravilha da transmutação. Folhas caem e permitem aos dias o adubar da terra, após a concessão generosa da sombra e da beleza na primavera e verão. Os frutos servem alimento nos momentos de outono e suas sementes celebram o iniciar de eminentes raízes de novos seres. E o inverno permite a dor do frio que, a sua maneira, também traz belezas.

São metáforas que nos ensinam valores e sentido de vida. Distancias que nos aproximam de verdades universais.

Fernanda Macahiba, Janeiro de 2008

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