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Crónicas


Fernanda Macahiba: Metáforas




Reminiscências de infância

Sento aos pés do Flamboyant. Fecho os olhos. A tarde guarda vestígios do calor do dia, mas a brisa fresca vem chegando aos poucos. Cantam os bem te vis e a melodia que ouço é a de 25 anos atrás. Minhas pernas tocam as enormes raízes e tremo. Sinto a umidade generosa dos pés de um abacateiro e de uma mangueira que há tantos anos não encontro naquele querido quintal.

Deixo de ouvir as vozes das pessoas que cantam num centro espírita que fica do outro lado do muro e rezo para que consiga escutar, apenas por um momento, os toques do sino que ecoam pelas montanhas, anunciando hora a hora a calma daquela cidadezinha atemporal.

Os cheiros do presente se misturam com o passado. Quero esquecer o hoje, o passado próximo e sentir o aroma do fogão a lenha exalando perfume do feijão que cozinha há horas. E sentir o barulhinho do alho fritando em óleo quente. Lembrar do frescor do tomate colhido agora mesmo, na horta da minha bisavó – tomate pequeno, suculento, intenso nas gotículas de água que escorrem do talho recém provocado por uma antiga faca. E cebolas! Ah...cebolas doces, macias, cheirosas, que não fazem chorar.

Os queijos servidos no café da manhã tem textura e lembram leite fresco e os espinafres já foram colhidos e aguardam, junto com o cheiro verde, o caldo do jantar.

Debaixo da minha árvore o silêncio é quebrado apenas pelo mágico estalar das folhas que caem. E meus pensamentos caminham por outras árvores.

Algumas taturanas vermelhas passeiam pelas plantas e aos meus ouvidos a voz de meu pai ecoa, de algum ponto, pedindo cuidado. Pede também que não encoste nas urtigas que estão aqui e ali, brincando de esconde esconde comigo.

Minha lógica infantil não entende porque não retiram essas plantas e bichos perigosos dali. Eu tinha apenas seis anos e não entendia nada de nostalgia.

Daqui a pouco vou escutar um ritmado toc-toc-toc das ferraduras do cavalo do tio Martinho – irmão de minha bisa – contra os sextavados pisos que ladrilham a rua silenciosa e que parece não ter fim.

E de repente, num assombro, sinto o encosto duro do sofá de palhinha contrastando com as carnes macias de um colo idoso que murmura histórias de família.

Na parede daquela sala um retrato em moldura oval exibe um casal de roupas antigas e penteado engraçado.

Um móvel antigo de madeira escura esconde um rádio de tantos anos que miraculosamente consegue captar frequências do século vinte e sussurra música de Guilherme Arantes – coisas de Minas Gerais.

A tubaína, docinha, que parece nunca ser suficiente para saciar a vontade de criança, comprada no bar ao lado.

Final da tarde e ao por do sol olho pela janela do banheiro e encosto meus pés ainda pequenos nos frios azulejos antigos. Do chuveiro, poucas gotas de água quente escorrem pelas costas. Tenho medo de entrar com a cabeça toda na água do chuveiro. Preciso sair logo para que meus primos possam se banhar – apesar da vontade de estar ali para sempre, com aquela esponja vegetal comprida que é tão grande, tão grande, que posso enrolar pelo corpo todo.

Depois procuro uma roupa muito quente para vestir. Faz tanto frio à noite. O interruptor do quarto é engraçado. Nada prático como os que temos em São Paulo, mas sem dúvida, muito mais bonitos. Pendurados por fios, e na extremidade uma espécie de sininho que precisa ser apertado para a luz acender.

Olho para os lados – para ver se ninguém está por perto – e chuto o interruptor, para ver balançando prá lá e prá cá, e as sombras dançam nas paredes.

A cama tem molas que rangem gostosamente quando me deito. E continuam cantando se me viro de um lado para o outro. O vento corre pelos vãos das antigas janelas de madeira fazendo barulhos de fantasma.

Fecho os olhos e sinto o colchão macio feito por meu bisavô – que não conheci. Ele tinha uma fábrica 'caseira' de colchões de capim. Fornecia para toda a cidade. Pode parecer primitivo, mas não era só questão de recolher mato e encher como uma fronha o tecido que foi costurado. Havia todo um processo e técnica artesanal – era preciso saber selecionar a matéria prima, tratá-la e secá-la por meses.

A fachada da casa tinha um arco bonito e uma murada e de lá ficava sentada olhando a paisagem. As vezes olhava pela balaustrada que ficava abaixo desse arco. Era alto para subir sozinha.

E logo ali, na rua de baixo, os lambaris pululavam no rio, esperando o anzol, a minhoca e a frigideira. Eu adorava pescar, mas não tinha coragem de comer os pobres peixes.

Há tanta água nessa Virgínia! Nome de cidade americana.

A antiga usina está desativada – serve ás crianças que se espalham pela água.

Ouço novamente a voz de meu pai, que sentado à mesa da cozinha muitos anos depois, contava que há meio século aquela usina gerava energia para toda cidade – e que às 8 da noite tudo começava a se apagar aos poucos e só se viam os vaga-lumes e os carros antigos para a época que tinham faróis de carbureto.

Era nessa hora que aconteciam as histórias de medo, dos loucos que habitavam a cidade, todas contadas debaixo dos lençóis fofos que Vó Zezé com carinho bordava.

E os biscoitos de polvilho e bolos de fubá que comi apenas 'de ouvido'...

Encanta-me imaginar a cidade toda apagando. Primeiro o amarelar típico das lâmpadas em meia fase e depois a escuridão completa, as velas, o sussurrar dos amantes e o tagarelar – que tenta ser baixo – das crianças. E o silêncio. O único céu que tem todas as estrelas se observado da  janela...

Abro os olhos e em meu corpo os cheiros, cores e vida se apagam.

Fernanda Macahiba, Maio de 2008

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