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Fernanda Macahiba: Metáforas




O galo do vizinho

Há alguns anos fui visitar meu pai em sua casa, numa cidadezinha chamada Lorena, localizada no interior do estado de São Paulo. A cidade, como não poderia deixar de ser, possui características bastante rurais. Nas ruas há uma verdadeira democracia entre cavalos, charretes, bicicletas e carros.

Não há ainda linha de ônibus local e esse motivo obriga as pessoas a adotarem uma bicicleta, fato que popularizou o local, que ficou conhecido como china-town. Aos finais de semana é impossível estacionar o carro no centro da cidade devido às magrelas (nome carinhoso que designa bicicleta) que ocupam toda a guia da calçada. Atravessar as ruas torna-se um verdadeiro suplício!

A casa de meu pai fica numa das ruas transversais da Avenida Peixoto de Castro, a principal da cidade. Há poucos anos nossa rua não tinha asfalto e até hoje a avenida principal é decorada com paralelepípedos que destroem a suspensão de qualquer carro.

Creio que essas características que cito acima são responsáveis pela situação engraçada dessa visita que descrevo. O rural e o urbano convivem ‘quase’ pacificamente.

Cheguei em casa e bati na campainha. Quando meu pai foi me receber à porta estava com olheiras profundas e fiquei bastante preocupada. Perguntei qual era o problema e ele me respondeu que há duas semanas não conseguia dormir.

Antes que me dissesse a causa da insônia, pensei nas piores explicações, menos na verdadeira.

Meu maior medo era que meu pai entrasse em depressão novamente.

Mas ele abriu um sorriso engraçado e cansado e me disse: O vizinho comprou um galo!

Um galo? Sim, ele era a causa da insônia.

O problema, segundo a dramaticidade de meu pai, era que o galo não ia, definitivamente, com a cara dele.

O vizinho não era bem um vizinho, já que entre a casa do bom homem e a nossa havia um terreno.

Mas o galo cantava tão alto que, segundo meu pai, parecia que estava na janela do quarto.

O pior era que o bicho não conseguia regular os horários e cantava nas horas mais impróprias. Era só fechar os olhos e o galo começava o cocoricó interminável.

Primeiro só durante a noite, disse ele, mas quando resolvi tirar uns cochilos aos sábado à tarde para repor as noites insones, a ave resolveu cantar também durante o dia.

Eu fiquei imaginando aquele galo imenso, todo colorido, cheio de manias de ciscar as galinhas. Puxa, um bicho com toda essa potência vocal deveria ter um belo porte.

Meu pai relatou que até a semana anterior não tinha se deparado com o inimigo. Certo dia dessa semana resolveu sair bem cedo – já que não conseguia dormir – para adiantar algumas coisas no consultório - e quando olha na rua deserta encontra o galo, um garnizé de, no máximo, 35 centímetros, parado no meio da rua, cantando feliz.

Meu pai não teve dúvidas! Largou o portão aberto e acelerou o carro para tentar atropelar o pobre bichinho.

A raiva atingia níveis altíssimos!

E não é que o bicho conseguiu escapar!? 

Eu argumentei: - Vai ver esse galo, além de tenor é também corredor!

Meu pai não sabia se ria ou se chorava.

O engraçado é que a solução mais óbvia não havia passado pela cabeça dele – conversar com o vizinho para saber o que acontecia com o galo. Dei essa sugestão, que foi acatada prontamente.

O dono do galo tinha uma oficina mecânica nos fundos da casa e ficou muito sem jeito quando meu pai, quase morto, narrou os terríveis momentos de crise.

Tentou explicar que nas últimas semanas havia comprado algumas galinhas para ‘tirar cria’ com o galinho e o rapaz estava entusiasmado com a idéia!

Nada ficou resolvido, mas na noite seguinte meu pai dormiu como há tempos não dormia. Acordou e nada do canto matutino ou vespertino.

Não contendo a curiosidade, foi novamente à casa do vizinho perguntar o que havia sido feito.

E aquele homem simples respondeu: - Seu doutor (meu pai era dentista), resolvemos fazer uma sopa com o galo para que ele não o incomodasse mais. A criançada adorou, apesar de carne de galo ser um pouco dura. O senhor quer experimentar um pouco? Ainda sobrou.

Meu pai recusou educadamente, contendo aquele sorriso de vingança. Fingiu que sentiu a perda do bichinho e foi ao consultório feliz, para mais um dia de trabalho, sonhando com a breve noite que se aproximava.

Fernanda Macahiba, Junho de 2008

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