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Fernanda Macahiba: Metáforas




O possível e o extraordinário



Observo e sinto minhas forças crescerem,
resplandeço embriagado por um vinho novo.
Sinto coragem de mergulhar no mundo,
de carregar todas as dores e alegrias da terra;
de lutar com a tormenta, de agarrar e torcer,
de apertar a mandíbula dos náufragos e jamais desistir

Goethe - O Fausto

Goethe sempre me fascinou com suas idéias e ideais. O Fausto, uma de suas obras mais conhecidas, traz luz àquela antiga imagem do herói (ou anti-herói?) que vendia a alma em troca de bens materiais. Esse autor caracterizou um Fausto desejoso das experiências intrinsecamente humanas: a curiosidade, a paixão, as alegrias e as infelicidades amargas que permeiam nossa existência. Nessa aventura, certamente um herói, a personagem insere-se num mergulho da realidade e assombra-se (creio eu) ao descobrir que pode liberar energias humanas, que irrompem com força de deuses, transformando, como diria Marx, em forças sobre humanas ou poderes ocultos.

É bastante óbvia a idéia de homens querendo assumir posturas de Deuses: o poder supremo, o conhecimento de todas as coisas. Vivenciamos diariamente situações que, infelizmente, são catalisadoras de nosso profundo entendimento das fraquezas humanas. Mas é totalmente inusitada a idéia de um herói pretendendo ser apenas, humano. E disposto a vender a alma por esse sonho.

E em que consiste ser, apenas, humano? A palavra apenas, na frase anterior, pode ser lida com certa dose de humor negro. Afinal, nós, humanos, sabemos que não é tão simples sê-lo.

Deuses possuem facilidades obtidas através de seus poderes. Simplesmente inserem uma realidade desejada e voilá. Mesmo os deuses gregos, com características humanas, possuem um quê especial na resolução de problemas que é invejável aos olhos dos meros mortais. Mata-se aqui, decide-se ali, sem maiores dores de consciência. Tinha que ser assim, é indiscutível.

Entretanto, os humanos, além de criarem suas realidades com as próprias mãos (e idéias) precisam conviver com o transitar da interpretação - o tênue limiar entre sonho e realidade, significante e significado. E possuem, apesar de alguns negarem até a morte, a senhorita consciência, o eterno grilo falante do desenho do Pinóquio, que incomoda quando decidimos seguir determinados caminhos.

Voltando a Fausto, creio que a maior busca desse herói é por uma consciência. E pretende consegui-la através de experiências humanas. Deixo aqui uma questão para reflexão: terão os deuses o tão incômodo 'peso de consciência'? Sim, porque para possuí-lo é necessária uma boa dose de desequilíbrio. E se os deuses são perfeitos, não o possuem, pois suas leis são axiomas. Há lógica nessa idéia?

O maior problema é que a nossa mera vida humana não é determinada por verdades absolutas e indiscutíveis. Nisso reside nossa maior dádiva e também nossa maior desgraça. É o chamado livre arbítrio, conseqüência dessa estruturação e não causa dela.

Observando esse conjunto concluo (não axiomaticamente, pois estou longe de ser deusa), que há um mecanismo na natureza que pode ser adotado como metáfora em nossa realidade. Somos guiados por aquilo que os biólogos chamam de osmose. Transitamos através de uma membrana permeável que tem duas faces: o possível e o extraordinário. Nem sempre o extraordinário é detentor do bem e do correto e muito menos o possível. São palavras que denotam sensações e não sentimentos morais. Talvez aí resida o fascínio do humano nos deuses. E em meio a essa 'viagem', somos impulsionados pela pressão das forças dos acontecimentos, acrescidas pela chamada consciência, que se manifesta aqui e acolá de acordo com a vontade (não sei se nossa ou dos deuses).

Há uma palavra muito em voga nos tempos contemporâneos, humanização. A contemporaneidade, 'intitulada' pelas nossas avós de fim dos tempos, propõe uma fragmentação da identidade, com aspectos globalizantes e efêmeros. Não há espaço para âncoras, locais de pertença, construção de saberes eternos. Mas porque há nos seres humanos o desejo sufocante de obter, a qualquer custo, a atemporalidade que eterniza e é cerne de vida! Sentimentos humanos, toques, carícias, respeito, imagens que transcedem o tempo e sensibilizam... Detalhes fundamentais a um ser humano pleno de qualidades e defeitos.

Existe um processo eficaz de humanização em nossos tempos? Não entendo essa tendência que primeiro robotiza, enfaixa e enquadra em determinados padrões sociais e depois tira as amarras, na tentativa de sensibilizar. Não seria mais fácil não robotizar? Estamos criando seres perdidos! Verdadeiras baratas tontas num universo de poder.

O que Goethe acharia disso? Penso que até mesmo Fausto fugiria desse mundo contemporâneo, repleto de aspirantes a deuses e ilusões.

Há realidades virtuais e realidades....reais?

Estamos caminhando na direção dos deuses e no pior sentido que essa palavra pode assumir! Buscamos o tesouro axiomático e absoluto da vida e felizmente (infelizmente, diriam alguns) a vida não é um conjunto de axiomas. Ela é flexível.

A parte de toda essa parafernália tento ser artista, brincando com a osmose, que permite o trânsito entre o possível e o extraordinário, que libera os poderes ocultos de Marx através de energias humanas.

E o que é possível? É a história da carochinha que todos contam e estão expressas nos códigos culturais.

E o que é extraordinário? É romper as amarras e viver contos fabulosos e não rotinas sufocantes.

Tanto o possível quanto o extraordinário são agentes importantes em nossas vidas.

A membrana quase que imperceptível entre esses dois conceitos é regida pela pressão dos acontecimentos.

A morte, a certeza do fim, a velhice, as desgraças alheias são, certamente, lições que estremecem seres alheios à realidade e à realidade dos sonhos (sonhos também são parte da realidade) e os impele a ação, direcionando-os no caminho do extraordinário, das sensações. Como diria Fausto : "Aquele sino, o doce perfume daquelas tílias, me envolvem como uma igreja ou como uma tumba".

É preciso equilibrar-se no desequilíbrio, optar estar na corda bamba sem sentir o medo de cair, apenas a delícia de estar nas alturas.

Certamente essa era a vontade do Fausto de Goethe e não o comodismo ciberneticamente almofadado dos dias iguais, sem cheiro, toques, sabor ou humanidade, regidos pelo eterno ranger dos novamentes e não pela gostosura dos criativos de repentes.

A efemeridade nos faz desejar o eterno e o eterno faz com que os deuses e heróis desejem o efêmero. Reside aí a complexidade da chamada insatisfação.

Fernanda Macahiba, Outubro de 2008

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