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Crónicas


Fernanda Macahiba: Metáforas




Pobre diabo



"Conhecem o Diabo? Não serei eu quem lhes conte a vida dele. E todavia, sei de cor a sua legenda trágica, luminosa, celeste, grotesca e suave. O Diabo é a figura mais dramática da História da Alma. Foi ele quem inventou os enfeites que enlanguescem a alma, e as armas que ensangüentam o corpo. E todavia, em certos momentos da história, o Diabo é o representante imenso do direito humano. Quer a liberdade, a fecundidade, a força, a lei. É então uma espécie de Pã sinistro, onde rugem as fundas rebeliões da natureza."

Eça de Queirós, Prosas Bárbaras

Há criatura mais 'culpada' em todo universo que o Diabo?

Quando percebe um ato não muito 'abençoável', boa parte da população recorre a esse amigo para assumir suas falhas. O termo Pobre Diabo nunca foi tão oportuno, se refletirmos acerca desse contexto.

Foi culpa do Diabo, ouço dizer. Ele me atentou! Eu não queria errar!

Certamente os ouvidos de Deus devem escutar o maior número de pedidos desse nosso mundo, mas não há ser que assuma maior culpa alheia que Satanás. E não será esse um ato nobre da parte desse infeliz? Há maior castigo que ser culpado por algo que não se fez?

Não querendo ser - literalmente - a advogada do diabo, digo que esse anjo caído deve ter créditos suficientes para voltar ao céu, desfrutando de todas as comodidades oferecidas pelo paraíso, desde as portas guardadas por São Pedro até os corais de anjos celestiais. Heresias a parte, o ditado que diz "Há males que vêm para o bem" é totalmente aplicável a nossa narrativa (do ponto de vista dos humanos, óbvio).

Tenho comigo a certeza de que nosso infeliz ainda não voltou aos céus pois não houve cidadão capaz de se inscrever no concurso oficial, que contempla com a cadeira de mártir, o primeiro colocado. Cadeira essa ocupada por uma única 'pessoa' desde os primórdios da criação.

Intimamente me divirto ao escrever esse relato, relembrando a época que era aspirante à freira e rezava mil padre-nossos para que fosse protegida contra as tentações demoníacas. Eu era portadora de um medo terrível desse ser vermelho, com rabo pontiagudo, chifres e tridente com flechas. Temia ainda mais a versão do inferno pregado por minha avó materna. Ela dizia, com ares de Nostradamus: - o fogo do inferno queima mais que calda de açúcar.

Acaso um de vocês já deixou uma gota dessa calda quente cair nas mãos? É terrível! Imaginava meu corpo queimando por mil anos nesse líquido viscoso - que era o tempo dedicado aos pecadores para purgar seus erros - e procurava ser a pessoa mais perfeita possível.

Quanto tempo perdido! Que alegria há em ser aquilo que não se é? Em tentar alcançar o inalcançável?

Absolvi o tinhoso e confesso que sinto certa raiva de hipócritas que sucumbem em erros crassos e jogam a culpa numa criatura imaginária.

Entreguei a Deus a digníssima função da perfeição e roubei do Diabo as culpas que não são dele. Assumi todos os meus erros - que serão erros? Deleguei minha profissão de santa para ser 'apenas' humana. E há maneira de ser mais humana do que errar e acertar dentro dos limites de nossa verdade?

Acaso alguém que nunca errou saberia entender e perdoar a dor de um erro? Alguém que nunca caiu saberia valorizar a vitória de um levantar? Creio que não.

Facilmente delegamos condutas erradas, mas somos capazes de delegar sucessos? Somos capazes de compartilhar verdades ou assumir transgressões alheias para minimizar a cruz de alguém? Seria essa uma atitude ética? Seria um bem? Seria um mal? Teria validade?

Nomeio demônio todas as indecisões, atos que não podemos mudar, atitudes e pensamentos alheios causadores de sofrimentos inimagináveis, rotinas enlouquecedoras e falta de sentido de vida - todos inventados por nossa realidade e não por um anjo caído portador de todas as negligências do mundo.

Há muitos pobres de alma, advogados de causas perdidas e inválidas, culpados. Mas o pobre Diabo...ah...o pobre diabo, esse se tornou um ícone contraditório em nosso inescrupuloso mundo contemporâneo.

Fernanda Macahiba, Fevereiro de 2009

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