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Crónicas


Fernanda Macahiba: Metáforas




José



A arte, cedo ou tarde, sempre aborda seus admiradores sussurrando em seus ouvidos a questão eterna: qual a minha função? Ernst Fischer, em A necessidade da arte, vislumbra um panorama que vai além de um simples conhecer e transformar o mundo. Corajosamente retoma, com uma pequena palavra, literalmente mágica, algo que deixa desconfortável qualquer adulto: magia. Sim, a arte imana algo mágico que está além das palavras e do conhecimento estrategista dos técnicos – paleta de cores, composição, contexto histórico-social, enfim, toda a parafernália que supostamente explicaria o poder e a função da arte, proporcionando aos artistas um certo alívio do funcional e necessário trabalho.

            Tive uma rara oportunidade – 28 vagas anuais do curso de Artes, disputadas por centenas de pessoas de aprimorar meu olhar ao ingressar numa das melhores Universidades de meu país, a Unicamp.

Recordo com saudades as longas e adoráveis conversas em sala de aula e das insubstituíveis tertúlias, regadas a café e filosofia, que tive com professores e colegas, que já haviam concretizado o encontro sagrado com obras de arte que residem em outros países.

Lembro-me particular e carinhosamente de um professor espanhol que foi meu mestre e que talvez tenha exercido sobre o aprimoramento de meu intelecto e talento mais influência que quaisquer outros meios ou docentes, preparando meu olhar para que algum dia pudesse enxergar aquilo que se desvendaria quando chegasse a minha oportunidade.

Essa ocasião aconteceu nesse Setembro de 2009, numa viagem a Portugal, proporcionada pelo aceite de uma investigação que realizo na pós-graduação que atualmente estou qualificando na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, com posterior fuga para a Espanha, para visitar o Prado e o Rainha Sofia durante minha estadia na Europa.

Tinha consciência de que os museus europeus são incomparáveis, pela historicidade local, e não há substitutos, mesmo quando o dinheiro do país mais rico do mundo tenta criar um Museu de Arte Moderna de Nova York descaracterizado em sua origem e esse assunto era também tema discutido em nossos colóquios durante o curso de graduação e motivo de polêmica.

Creio que seja notório, não apenas para os estudantes e artistas brasileiros, que existe um problema instransponível no que concerne às obras de arte. Por maior que seja o acesso a livros e informações, não há como preencher as lacunas no que tange às particularidades de cada cultura e da sensação experimentada pela alma quando se é exposto ao original, verdadeiro, único, insubstituível e singular ente que compõe o fantástico universo da arte.

O acervo disponível, por mais rico que seja, nunca será completo. E o que um artista estuda nas desbotadas e diminutas páginas dos livros nunca será capaz de alcançar a dimensão sinergética que a obra per se possui. É preciso garimpar preciosidades mundo afora, pois não é possível obter o que nomeio ente, que é parte da cultura e a marca da originalidade de cada pais, fora do lugar onde isto existe.

            Como artista, sonhava conhecer a Europa bem como os lugares, monumentos, realidades físicas formadas milenarmente na ampulheta do tempo, perpassadas pela cultura. Enfim, o produto e a origem na sua versão original e o que disto ficou guardado nos museus, esses receptáculos de preciosidades que abrigam o que de melhor e mais valioso a arte consegue produzir e que contam, pelo viés da concretude do material, a história do humano: suas comédias, tragédias, cumplicidade estética ou sensualidade.

São acontecimentos pontuais que foram registrados e formam esse tênue fio que chamamos vida e que paradoxalmente, de forma oposta a que está nos museus, desaparece ao mesmo tempo que surge, fugaz, impossível de conter, reter ou segurar, naquela frase memorável que deu origem ao livro de Marshall Berman: Tudo que é sólido desmancha no ar.

            O sonho humano de eternizar as coisas se concretiza dentro de cada uma dessas caixinhas de jóias, construídas especialmente para abrigar relatos de homens que, em sua maioria, não mais existem.

            Quando observo uma obra, sempre questiono intimamente o que o artista estava sentindo quando a fez. Se alegria, medo, fome – fome é algo recorrente, quando  penso  nos muitos que deixavam de comprar comida para conseguir tintas e telas. E no rigoroso inverno, que os obrigava a queimar os móveis para aquecerem-se.

Quanto sofrimento foi necessário para que as paredes de nossos museus pudessem ter o privilégio de abrigar essas obras e para que os suportes pictóricos pudessem saturar-se com a magia que sensibiliza?

Van Gogh e sua dolorida consciência de que enlouquecia vendo os anos passarem por suas cores. Renoir e sua cegueira. Marc, com tantos contrastes cores e uma morte estupidamente precoce. Goya e a surdez que fez com que o sono da razão produzisse monstros, e tantos outros.

Depois, os que se realizaram em vida. Picasso e todas aquelas mulheres que o inspiraram. Calder com alma de menino que amava o circo. Portinari e sua obra mundialmente consagrada.

O que faz com que as pessoas não consigam se mover e cheguem às lágrimas ao ver Guernica nas paredes do Rainha Sofia? Que meditem e orem silenciosamente frente à Anunciação de Fra Angelico no Prado? Ou ainda estagnem diante dos manuscritos iluminados da Fundação Calouste Gulbenkian? Sintam solidão ao observar algumas obras de Miró ou alegria ao encontrar um Matisse?

Qual a dimensão desse poder, do qual a arte é detentora, capaz de modificar um estado de alma? Seria a vida condensada em matéria?

Estive com grandes artistas e sempre pergunto a eles acerca da função da arte e é engraçado vê-los recitando um número limitado de fórmulas prontas encontradas nos melhores livros de história da arte. Nunca ouvi deles o que Fischer permitiu que eu descobrisse em seu livro: magia inerente e imanente. Simples assim. Complexo assim.   

Poderia ficar horas escrevendo, se ampliasse minha fala para a arte da literatura, música e teatro.

Restringi minhas visitas, nessa viagem, às artes visuais, minha área de atuação. Meus olhos não conseguiam acompanhar a quantidade do ser visto e minha alma muitas vezes fechou os olhos e respirou fundo tentando reter tudo aquilo que eu conhecia apenas das páginas diminutas dos livros.

Extasiada após 17 dias entrando em recintos europeus, que até então pareciam inalcançáveis, em êxtase no percurso da beleza à tragédia, deparo-me com a cena mais comovente de todas. Inesperadamente, externa a essas caixas que abrigam sentimentos.

Em meu último dia de estadia em Lisboa, visitei o Museu de Arte Antiga. Desci na estação Cais de Sodré e perguntei às pessoas onde poderia encontrar minha última caixa de jóias. Seguindo indicações e andando alguns minutos a pé, com aquela sensação de nostalgia antecipada, observei com novos olhos todos os detalhes das ruas e fachadas das casas antigas, as odiosas pichações, o mar, os mercados antigos e as pessoas que apressadas seguiam sua rotina, sem suspeitarem dos sentimentos que embalavam meu coração.

Estava muito calor. Encontrei uma praça e ao longe vi um senhor em seus 80 anos de experiência com um saco enorme contendo uma mistura de pão e grãos, alimentando as pombas na praça.

Como toda boa turista intrometida, não resisti e de longe, com o zoom da máquina ativado e os braços travados para não deixar a foto sair tremida, cliquei. Uma, duas, três, dez, vinte vezes. Com aquela sensação conhecida por sexto sentido, que sempre temos quando alguém nos olha de longe, o senhor virou-se e fez cara de poucos amigos. Mas a poética era tão grande e meu desespero em cristalizar a vida naquele momento tão intensa, que resolvi me aproximar e explicar que era professora de artes.

Pedi que me deixasse fotografá-lo, que ele era uma pintura que pedia para existir. Os traços de seu rosto suavizaram. Obtive a autorização e até ganhei algumas poses. Conversando, descobri que aquele senhor vai todos os dias até aquela praça para alimentar as pombas. A magia e a serenidade do momento me fizeram sentir que voltava a ser criança. Meus olhos deviam estar brilhando, vidrados, como quando os pequenos querem desesperadamente um doce que está do outro lado da vitrine de vidro. Ele entendeu isso do alto de sua sabedoria e me pediu para abrir as mãos, as encheu com aquela mistura e estendi espalhafatosamente em direção às pombas, que saíram voando. Nunca me senti tão fracassada, decepcionada, triste. E ele, carinhosamente, orientou: menina, tem que ir com paciência, elas não a conhecem. Está vendo aquela ali? É a mais mansinha. Ela vai deixá-la alimentar.

A meus olhos, todas aquelas aves eram iguais, mas ele conhecia cada uma após anos de convívio. Eu pensava com inveja como deve ser aconchegante saber que, todos os dias, em um local determinado, haverá carinho e alimento.

Fiz o que indicou e realmente a pombinha veio até mim, mas não quis subir na minha mão ou ombro, como fazia com ele.

Havia uma outra, mais escura, com um machucado muito grande no peito, parecia um tumor. Para ela ele reservava os melhores grãos.

A revoada ao seu redor era como vento a brincar com as folhas das árvores.

Não sei precisar quanto tempo fiquei ali com aquele senhor, alimentando as pombas e me sentindo a pessoa mais feliz do mundo por conseguir a confiança de um daqueles bichinhos. O cuidado, o carinho e o respeito eram palpáveis na atitude daquele homem, tão frágil com a chegada avançada dos anos.

Perguntei a ele:

– Qual o seu nome?

– José.

Simples assim. O nome de meu avô paterno, que era descendente de portugueses. Nunca soube o sobrenome daquele homem, que bem poderia ser um menino. Do meu avô sei que era Andrade e que foi uma das pessoas mais humildes e amorosas que conheci. Quando o vôo da morte veio buscar, ele estava deitado no meu colo, quase adormecido, em paz.

Fragilidade e força. Era o que havia ali e o que vivi tantas vezes. E em minha alma de artista a necessidade de guardar numa caixinha aquele instante mágico, que certamente desapareceria, se desmancharia em poucos anos.

Quantas vezes pronunciei em aulas a palavra eternizar de maneira profana? Inúmeras. Com ares de professora, estufei o peito e declarei que o artista verdadeiro quer manter viva a lembrança que lhe é cara, que produz afeto, vínculo. Não suspeitava da intensidade dessa força, que me atingiu e enlaçou naquela praça. Senti o desespero que move o artista a querer concretizar para sempre o instante vivido. E a sensação de impotência por saber que nada é tão perfeito quanto a vida.

De repente me dei conta de que precisava encontrar o Museu de Arte Antiga.

Quando perguntei ao senhor sobre a localização, espantei-me: – Deve ser aqui pertinho, muitas pessoas já disseram que tem muitas coisas bonitas lá, mas ainda não fui ver. Me admira um senhor de 80 anos pronunciar a palavra ainda, quando eu, com meus 30, acho que não terei tempo para ver e fazer tudo que preciso. Completou:

– As pombas me entretêm mais.

Não resisti e disse:

– Tenho certeza de que nenhuma obra rara que está no Museu se compara à beleza dessa cena que o senhor cria todos os dias, aqui nessa praça.

E dizia isso de coração. Ele sorriu timidamente.

Mesmo sendo privilegiada por estar no Prado, no Rainha Sofia, na Gulbenkian ou no Museu Arqueológico, considero que o maior vislumbre que tive foi ali, num dia ensolarado, alimentando pombas com um senhor que pedia para viver um dia, numa obra de arte que seria pendurada numa parede de Museu.

E compreendi, finalmente, o que meus queridos professores e amigos dos nostálgicos tempos de graduação afirmavam, além das discussões eternas sobre a impossibilidade de ter uma reprodução exata do original e que Oscar Wilde descreve maravilhosamente e de forma paradoxal, gênio que era, afirmando as coisas pela negação:

A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida. 

E aquele José, na sua simplicidade aparente e na sua complexidade impossível de abranger, sem ter consciência alguma, produziu nos meus sentidos a certeza de que era maior, melhor e, sobretudo, mais belo que todas as preciosidades criadas pelas mãos do homem e confinadas dentro dos grandiosos museus do mundo.

À poética da vida e a delícia de existir, dedico essas linhas, provocadas por alguns momentos mágicos raros e preciosos como esse.                         

Fernanda Macahiba, Novembro de 2009

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