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Crónicas


Fernanda Macahiba: Metáforas




Bibliotecas: espaço de sonhar, amar e conhecer



Quando tinha 13 anos, um dia uma prima chamou-me a um canto da escola salesiana e disse: - Está vendo aquele menino? Ele disse que te acha linda!

Até então minha única e exclusiva preocupação era ser freira. Mas, como diz a dona do café do filme O fabuloso destino de Amelie Poulain, para ter um romance basta escolher um casal entre os fregueses e cozinhar em fogo lento, fazendo alguns apontamentos aqui e acolá.

E assim foi. Até então eu nunca tinha conjecturado sequer namorar. Mas de repente, tudo passou a fazer sentido e por meses eu, na hora do intervalo, ficava à espreita numa roda de amigas, observando à distância o dito menino, que estava numa outra roda de amigos. Se ele, por um momento, olhasse para onde eu estava, meu dia era de felicidade eterna! Se tal não acontecia, eu viveria um inferno terrível de espera, até o dia seguinte.

Em questão de semanas eu estava consciente de que havia encontrado o grande amor da minha vida! Ouvia os sinos da igreja repicando Até desenhara meu vestido de noiva! Ele era um ano mais velho do que eu.

Comecei a escrever poemas, diários, aguardando o tão esperado beijo. Eu fechava os olhos e imaginava as mais cavalheirescas cenas de dramalhões mexicanos, nas quais, obviamente, eu figurava como a maior protagonista princesa amada de todos os tempos.

Descobri que ele era um aluno regular. E eu, Maria Caxias samaritana, desenvolvi um sentimento que ia da pena ao querer ajudar. No entanto, ele estava um ano na minha frente e eu sequer poderia saber a matéria que estudava.

Depois descobri que ele morava com a mãe e também o endereço. Confesso, com muita vergonha, que mandava cartas de amor melosas que muitas vezes eram lida pela genitora do menino. Ela achava graça naquilo e até me chamava de nora.

Incrível como a adolescência nos tolda com uma espécie de ideologia maluca, que não permite o vislumbre da realidade. Nada de praticidade! Qualquer um saberia, após meses de olhares e tentativas, que, no caso de não haver resposta, é preciso ter coragem para aceitar a verdade: ele não a vê como a princesa dos contos de fadas.

Mas ele era cruel, ah se era! Incentivava com olhares e não agia nunca. Beijava todas as outras da escola e eu, na espera, com a esperança de que, depois que me beijasse, ele não quisesse mais ninguém.

Tudo culminou na biblioteca. Estudávamos pela manhã e no período da tarde, como eu morava perto da escola, me internava na biblioteca. A escola salesiana tinha duas delas. A infantil, que possuía estantes na altura das crianças, almofadas para leitura e permitia o contato com os livros. E a adulta, que não permitia acesso direto aos livros e tinha estantes de aço e batentes de madeira maciça nas portas.

Aos treze anos não me sentia mais uma criancinha e frequentava a biblioteca de gente grande que, segundo as freiras, era a maior do Vale do Paraíba. Havia um salão enorme dividido por um balcão. De um lado, a sala de estudos e de outro as estantes que tinham por guardiãs senhoras bibliotecárias muito cientes de seus deveres.

Se por um lado acredito que o leitor precisa ter contato direto com os livros, descobrindo eventualmente um título inesperado pelo percurso entre estantes, também afirmo que o fato de nós, adolescentes, termos pelo livro um respeito admirável, era devido não apenas à conscientização que a escola propunha, mas pelo fato desses objetos do saber ficarem restritos e só poderem ser emprestados em pequenas quantidades, mediante apresentação de número de tombo e carteirinha escolar, como jóias preciosas.

Hoje percebo também que as freiras faziam uma seleção dos livros. Alguns eram proibidos. Mesmo que eu encontrasse o registro no fichário que ficava no antigo arquivo de aço, se a bibliotecária não o achava adequado, nada feito. Então pedíamos aos pais que o retirassem.

Algumas vezes consegui subornar a bibliotecária com a minha paixão e ela me deixava passear pelas prateleiras, escondido dos olhares das supervisoras. E então, enquanto atendia no balcão, eu tirava depressa do bolso os títulos proibidos e corria procurar na estante. Foi assim que achei o nome de minha filha Ninianne, numa primeira edição do herege As Brumas de Avalon. Esse nome ficou em minha memória e decidi oficializar. Tenho em casa, agora, uma réplica da esposa do mago Merlin, graças à distração da bibliotecária.

Bem, voltando ao caso do meu príncipe, eu passava praticamente todas as tardes na biblioteca, que tinha mesas redondas enormes, verdadeiras távolas redondas (que agora, adulta, duvido se são assim tão grandes). E, para minha surpresa, um dia, quem aparece? Ele! Com amigos e estudando. Senti muito orgulho daquele que era considerado um aluno mediano. Lembro que, em meu estado de excitação, pegava na última prateleira do lado direito, volumes da Enciclopédia Barsa e lia as páginas como um mantra. Lia, relia aqueles grossos volumes abertos, enquanto, por cima do livro, observava, como numa trincheira, o lado oposto da sala.

Lembro de, por vezes, ir buscar no arquivo de aço (que falta fazem esses arquivos nessa era do computador!) alguma ficha e a deixava cair perto de onde ele estava, propositadamente. De olhos baixos, pedia desculpas. Cavalheiro que era (ou fingia ser), me atormentava com a ficha na mão, como quem balança um osso para cachorro magro.

Foram meses de paquera na biblioteca. Devo ter lido a Barsa, que estava perto de minha mesa de canto preferida, umas três vezes, na íntegra. Também trocávamos bilhetinhos. Minhas amigas observavam se ele, alguma vez, dirigia o olhar para mim. Quando acontecia, me cutucavam por debaixo da mesa, para que eu também olhasse e nos perdíamos em risinhos. Do balcão, a bibliotecária, com um mal educado “psiuuu” e o dedo indicador na frente da boca, exigia silêncio. Então alinhávamos as costas como as ladies inglesas na hora do chá e metíamos os olhos nas páginas do livro.

Também, quando fazíamos pesquisas, havia encontros. As mais ousadas iam até a mesa dos meninos perguntarem algo que não sabiam. Nunca tive coragem de fazer isso. Ficava entrincheirada, curtindo um amor semicorrespondido como se curte aos poucos o couro de um animal.

E lia, lia como uma devoradora ávida, todos os romances nos quais eu me transformava na amada única daquele príncipe inalcançável da realidade.

Se a história teve um final feliz? Nem por isso. O leitor acaso lembra-se da prima que, num passado não muito distante, veio me dizer que um certo menino havia me achado linda? Num dia de festa, na casa de uma amiga, estive proibida pelos meus pais de ir, pois uma tia nos visitava. E então, xeque mate, a citada prima decidiu provar o néctar dos deuses e passou a noite aos beijos com meu príncipe. No dia seguinte, me contou como foi.

Continuei indo todas as tardes na biblioteca. Agora eram alvo do meu interesse os romances trágicos. Shakespeare era meu ídolo maior. Até que outro amor apareceu e mudei de estante, temáticas e biblioteca. Novamente os contos de fadas infantis eram minhas leituras favoritas. E me desculpe Esopo e sua raposa e uvas, mas a biblioteca infantil sempre me pareceu a mais confortável e lá eu podia ser uma verdadeira princesa.

Fernanda Macahiba, Maio de 2013

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