Letras & Letras

Crónicas


Fernanda Macahiba: Metáforas




Comunhão estética



E a minha vida é toda uma oração e uma missa,

E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Alberto Caeiro

Habitualmente, quando acesso sites referentes à educação, encontro depoimentos de profissionais da área do ensino que apontam as possíveis causas do fracasso escolar, tanto no âmbito do saber quanto no moral. Uns tantos acusam a falência da estrutura familiar, outros o currículo escolar ultrapassado, considerando que a Internet e outras maravilhas tecnológicas são muito mais atrativas do que um quadro negro, carteiras e giz.

No entanto, parece-me que deixam de perceber um fator importante, que pode ser a resposta, ou ao menos um indicativo, para a compreensão desse estado de caos.

Assistindo uma entrevista com Joseph Campbell, que apresenta uma lucidez espantosa quando fala da importância dos rituais na vida do humano, estabelecendo conexões das diversas épocas com a contemporaneidade, é impossível deixar de analisar até que ponto o mundo virtual é benéfico ou não para nossas crianças e para nós.

Se por um lado é possível ter acesso às informações e conhecer imagens de diferentes povos, locais e peculiaridades, por outro é triste pensar que possivelmente a maioria das pessoas só conhecerá Paris, uma vaca ou um amigo sem viver uma experiência sensorial.

A experiência ritualística, apontada por Campbell como fundamental e em vias de extinção, exige a interação dos sentidos.

 Fernando Pessoa, um dos mais geniais poetas de todos os tempos, é também um mestre em poetizar experiências sensoriais. Na voz de Alberto Caeiro, supracitado, ele faz uso de uma palavra que percorre séculos e emerge no século XXI com significação plena: comunhão.

 Facilmente associada ao ritual católico do corpo e sangue de Cristo, no momento da eucaristia, essa palavra deveria servir às pessoas como pilar vivencial.

Diferente da expressão solidariedade, que preconiza a condição da repartição de responsabilidades ou ainda da ajuda a alguém, a comunhão é um emergir, confundir-se com o outro. É fazer amor com as diversas realidades. É tocar, cheirar, ver, degustar e ouvir. E, unindo todos os sentidos, viver uma experiência estética.

Voltemos à vaca acima citada. Que diferença apresenta uma criança que apenas conhece uma vaca através de uma imagem e a alegria do pequeno quando comunga com ela. O mugido, o cheiro, o leite, o olhar pacífico do bovino, são situações que apenas o corpo presente propicia. Por esse motivo, pessoas sérias que promovem cursos à distância, dizem serem imprescindíveis aulas presenciais. Sabem que nada substitui o interlúdio entre criaturas e matéria. A imagem da vaca não substitui a vaca!

Piaget, em seu livro “A representação do mundo na criança” afirma que as crianças do campo conseguem perceber antes dos pequenos da cidade a origem natural dos fenômenos. Explico: na pesquisa realizada por ele acerca da formação das nuvens, obteve como resposta de uma maioria, de determinada faixa etária, que as nuvens se formam da fumaça que sai das chaminés das casas. É comum obter tais respostas, considerando as características do processo de desenvolvimento infantil. No entanto, esse pesquisador percebeu que o contato direto com os fenômenos proporciona a construção de uma noção maior pela qual tais fenômenos acontecem.

Se na solidão de um escritório é possível fazer um curso de inglês ou de Direito pela Internet, é impossível tomar um café através de um monitor ou ter uma conversa aromática que exige dos sentidos. O corpo do outro, o cheiro do café, o sons do local, o sorriso próximo.

A contemporaneidade tem excluído o ato de comungar da vida das pessoas. Então surgem eles, os artistas, como sempre salvadores de almas! Desesperados por criarem situações que proporcionem a comunhão. Resgatam as danças circulares dos povos antigos e trazem para a sala de aula, também evocam as conversas em roda dos longínquos contadores de história (e ainda acham que o conceito da roda de conversas é muito contemporâneo), fazem surgir obras que permitem o contato corporal do observador e criam poemas que, ao serem lidos, movimentam o interior não apenas imaterial, mas biológico do leitor. Quem nunca sentiu lágrimas nos olhos durante uma leitura? Ou ainda uma miríade erótica nas vísceras ao ler um romance mais ousado?

A arte oferece a comunhão com o mundo.

Mas nas escolas é preciso ir além do viver a arte. É preciso fazer arte. Comungar com os materiais, suas propriedades. Fazer com que reflitam sensações humanas. Não basta trabalhar o barro, é preciso que o barro se transforme naquele que o manuseia. Não basta que as cores sejam justapostas, é preciso que elas gritem o sentimento do humano que as utilizou.

Comungar é refletir, é sentir parte de si a coisa comungada. Tornar-se um para que o mundo reconheça nessa união uma beleza no que antes parecia vulgar.

Os grandes artistas comungaram com a matéria. Fizeram dela significado elevado ao mais alto grau possível, a ponto de sensibilizar uma maioria.

No entanto, aqueles que passam o tempo longe da comunhão perdem a sensibilidade para a compreensão de toda significação oferecida pelo mundo. É uma espiral ascendente: só consegue comungar e elevar tal nível de interação aquele que comunga.

É preciso acreditar na comunhão com a arte como a comunhão com a própria natureza. Por isso sou favorável à volta dos trabalhos manuais nas escolas. Quem trabalha com linhas comunga com a aranha, fazedora de teias. Quem promove a modelagem com argila comunga com a ideia do criador, visto que a argila tem as mesmas propriedades que nosso corpo (segundo fiquei sabendo essa semana, numa conversa com a aluna das Artes, Giovana Delagracia) e, de acordo com algumas mitologias e a própria Bíblia, o homem foi feito a partir do barro. Figuras de linguagem à parte, a verdade é que a argila sua, como nós, humanos, até adquirir sua forma final. Ao menos ela não se degrada, como as pessoas, no fim da vida. Ao contrário, ela é eternizada pela beleza.

Estive num Seminário há algumas semanas e ouvi um dos palestrantes dizer que somos seres imperfeitos capazes de fazer coisas perfeitas. Creio que somos capazes dessa perfeição justamente por alçarmos voo em comunhão com a natureza e atribuirmos formas significativas ao que criamos.

Manoel de Barros, grande porta, é sábio quando afirma em “Manoel por Manoel”, numa reflexão acerca de si mesmo: “Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas.”

 É nas crianças que encontramos a maior comunhão possível com o mundo. Nós, adultos, na maioria das vezes embotamos os sentidos e deixamos de acreditar que os rituais fazem sentido. Que a lógica e a funcionalidade das atitudes valem mais do que um vislumbre de beleza compartilhada.

Para que eu não perca minhas habilidades ‘crianceiras’ realizo metodicamente um ritual saudável com a natureza. Tenho quatro aranhas que decidiram fazer teia e morar em minha varanda e quintal. Todas as tardes, quando minha filha chega da escola, caçamos formigas saúvas e jogamos na teia para ver as aranhas embrulhá-las num fio e alçá-las para cima, aguardando o horário do jantar. São quase damas inglesas com seus guardanapos de rendas.

Se o destino da formiga é cruel, com esse ritual tenho compartilhado com a pequena uma experiência ritualística. E Deus há de perdoar.

Ontem à noite, quando me peguei nostálgica, busquei em meus materiais de costura as agulhas de crochet e fiz uma rede intrincada de barbantes. Esperei na esperança de que uma menininha e sua mãe aparecessem com uma suculenta formiga para minha teia. Ri de mim mesma por conta desse pensamento disparatado. De certa forma, naquele momento me transformei em aranha. Não era mais humana. E comunguei com o ciclo da vida.

Fernanda Macahiba, Maio de 2013

Voltar à página inicial de Metáforas

Colaboradores | Coordenação | Contactos | © 1997-2015 Letras & Letras