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Fernanda Macahiba: Metáforas




Práxis e Poiesis em sala de aula: o poder humanizador da arte



Vivemos numa democracia! Esse é o slogan apregoado aos quatro ventos por todos que ainda não descobriram que “na prática, a teoria é outra”. Explico: participei, a alguns meses, de uma palestra obrigatória para bolsistas da pós-graduação da Unicamp. Recebi por email uma convocatória com uma velada ameaça de que o não comparecimento em determinada porcentagem de palestras acarretaria a suspensão de meu certificado como PED (Programa de Estágio Docente), imprescindível para a obtenção do título de doutor. Também fui informada de que a presença no evento seria comprovada mediante a apresentação do RA universitário. Intimidações a parte confesso que, de bom grado, participaria desse e de muitos outros eventos por estar consciente de que é preciso fazer parte da comunidade acadêmica e que todo conhecimento que porventura possa adquirir será um benefício para meu futuro.

Durante a palestra, cujo orador foi o presidente da CAPES, instituição de renome e responsável pelo subsídio de inúmeras pesquisas no país, esperava, com ansiedade, ver em alguns dos slides expostos algum incentivo à arte, cultura e humanidades em geral.  Mas os minutos passaram e entre dados estatísticos de milhões de reais e incentivos à tecnologia e saúde, fiquei a esperar, esperar e esperar. Ao final da palestra alguns alunos da filosofia questionaram a ausência de projetos dedicados à esfera das humanidades. O presidente respondeu que sim, há incentivo, mas que em uma reunião com nossa presidente (e me recuso a dizer presidenta por imposição) ficou decidido que o Brasil precisa mesmo é de tecnologia e saúde.

Concluo: o Brasil precisa de pessoas que reproduzam e tenham capacidade para criar tecnologias e que cuidem do corpo, para que esteja saudável para mais trabalho. A alma? Que Deus a tenha! Verdadeiras marionetes movimentadas pelo sistema. Pessoas que não pensem, mas sim que obedeçam.

Enquanto os slides passavam e saltavam na tela índices com tantos zeros que nunca imaginei possíveis em valores monetários, eu, bolsista, pensei em minha realidade docente e em experiências valorosas e gratificantes que a arte e a literatura evocaram em ambientes inóspitos do espírito.

Lecionando em uma escola da prefeitura, na qual grande porcentagem dos alunos estava em liberdade assistida e outra porcentagem sofria violências domésticas, tomei conhecimento de uma realidade nunca antes suspeita e que precisa ser evidenciada. Ali estão os verdadeiros pilares da sociedade. Pessoas que suportam todo o peso das injustiças, que são violentadas diariamente por um sistema que, se por um lado valoriza o dinheiro, por outro não permite que a maioria faça uso dessa suposta maravilha.

Naquele ambiente conheci histórias que deixariam Hithcock assustado como um covarde da pior espécie. Apenas a título de exemplificação: como pode uma adolescente sem família ter o corpo queimado num abrigo, apenas por maldade humana? Como pode uma mulher ser presa em cativeiro por estrangeiros italianos que a faziam prostituir-se em troca de dinheiro e quando engravidava vendiam as crianças, sabe-se lá com que finalidade, antes que ela pudesse tocá-las,? Como pode um menino apanhar apenas por ser negro e, por isso, ser suspeito de traficar drogas? Como pode um ex-dependente químico querer deixar o tráfico e não conseguir emprego sequer de lixeiro? E a questão final: Como podem sobreviver com dignidade pessoas que tiveram essas experiências? Confesso que por muito menos eu teria sucumbido numa casa de loucos!

E essas pessoas estão vivendo e tentando buscar o conhecimento na escola. Muitos não sabem ler aos 17, 28, 60 anos!

Mas é verdade que do lodo brotam lírios. E se a sociedade relega ao charco esses meninos, meninas, homens e mulheres, é também verdade que a educação, por meio da arte e da literatura, pode fazer florir os lírios em almas machucadas.

Lembro-me de um adolescente com carinho. J., 17 anos. Todas as aulas a mesma rotina. Ele chegava e me enfrentava, sentando na última carteira, ouvindo música no celular com fones de ouvido e boné abaixado.

Decidi realizar algumas aulas num atelier improvisado no almoxarifado. E ali fiquei sabendo a história daquele menino. Passagem pela polícia, tráfico de drogas, homicídio, dependência química. Falava de matar outra pessoa como quem relata uma ida ao banco ou padaria. Assustada, perguntava se ele não tinha remorsos. Dizia que não. Que matar uma pessoa era bem fácil, basta não olhar no rosto. E que policiais eram homens maus, que mereciam a morte. Também afirmava que o destino dele era um saco de lixo preto, como defunto, num beco qualquer pela cidade.

Eu tentava de todas as maneiras disfarçar meu assombro, mas ele percebia e ria de mim. Confesso que me sentia mal por ter uma vida mais afortunada (muito mais afortunada) que a dele, que morava com um irmão e a avó idosa num cômodo sem banheiro, água, energia elétrica e sem as mínimas condições para que uma pessoa possa viver com dignidade.

Um dia, enquanto fazíamos Parangolés, uma proposta de intercâmbio cultural entre países, ele chegou atrasado, pegou dois frascos de tinta, um na cor preta e outro na cor vermelha e, olhando fixamente em meus olhos, derramou todo o conteúdo sobre o tecido que estava sobre a mesa. Pegou o pincel e com pinceladas raivosas de gestos fortes misturou as cores. As tintas escorreram pela mesa e foram ao chão. Eu já imaginava o que ouviria da diretora da escola e aventava a possibilidade de toda a turma entrar naquela ‘brincadeira’ e minha aula terminar de uma maneira nada satisfatória. No entanto, decidi ajudá-lo com a ‘performance’ e com outro pincel comecei a fazer os mesmos movimentos, sem desviar os olhos dos dele. O adolescente ria e dizia para a turma que eu era louca. Por sorte, os outros alunos continuaram a atividade sem maiores problemas.

A aula terminou e eu fiquei sozinha limpando o chão da sala. Após alguns minutos vejo J. na porta, observando a limpeza que eu fazia. Sem dizer nada, pegou um pano e ajoelhado no chão, me ajudou a limpar tudo. Depois me contou que, naquela manhã, a polícia invadira o barraco onde morava e batera na avó e no irmão dele. E que se não fosse eu ter permitido que ele fizesse aquela pintura, provavelmente teria batido em alguém na escola. Questionei como ele se sentia naquele momento. Ele me disse: - Estou calmo. Nunca pensei que a pintura pudesse me ajudar assim. A raiva passou.

Conversei com ele sobre a chegada do mês de dezembro, da data de Natal. Ele havia confessado que nunca recebera um presente em toda a vida. Nada comentei, mas, novamente, me surpreendi.

Finalmente chegara o dia da formatura. Fui convidada para ser paraninfa da turma.

Em casa, tentava encontrar o que dizer àqueles meninos que tanto da vida conheciam mais do que eu. Olhei em minhas estantes e escolhi “O pequeno príncipe”, leitura que faço anualmente como um ritual, que me devolve a esperança.

J. chegou de sapatos sociais emprestados e sem meias. Perguntou se parecia ridículo e disse que ele estava lindo, seguindo a moda de Hollywood. Ele riu. Também o terno era emprestado de um pastor da igreja.

Escolhi o trecho do encontro do principezinho com a raposa. Sentia a garganta fechar quando comecei a ler para os meninos, que estavam no palco, sentados nas cadeiras. Tinha orgulho de cada um deles.

Saint-Exupèry fez-se vivo! E os campos dourados que fariam lembrar os cabelos do príncipe, o “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” e tantos outros excertos poéticos dessa obra trouxeram lágrimas aos meus olhos.

Ao final da leitura, para minha surpresa, J. se levantou e entre o grito e as lágrimas dizia: – Eu te amo, dona (dona é a maneira pela qual chamam as professoras). Pegou-me no colo e rodopiou comigo no palco, na frente dos familiares que assistiam a cerimônia. Outros alunos juntaram-se no abraço coletivo e foi uma alegria!

Lembro agora de uma provocação de um professor da minha banca de mestrado. Ele questionou se eu achava mesmo que a literatura podia mudar as pessoas, salvar o mundo. Hoje posso dizer que sim. A literatura conseguiu promover afetividade e tocar uma alma que antes nunca tivera poesia. Um adolescente que tirou vida de pessoas sem sentir remorsos derramou lágrimas ao ouvir “O pequeno Príncipe.”

Conheci a avó de J, no alto de seus dignos 85 anos, uma senhora orgulhosa da conquista do neto. Também fui responsável por entregar a eles um presente de natal, comprado pelos professores da escola.

Se essa história teve final feliz? Infelizmente não. Eu tinha muita esperança de que J. continuasse os estudos e ingressasse numa faculdade. Incentivei-o a tentar. Mas para ele e tantos outros dessa mesma escola, o ensino superior é um sonho impossível. J. conseguiu um emprego numa academia de ginástica, por ser um menino muito alto, forte e com presença. A última vez em que o vi, no ano passado, me abraçou e contou como estava sua vida.

Depois de todas essas conjecturas volto para o cenário surreal do Centro de Convenções da Unicamp e dos engravatados falando em cifras, os estudantes protestando por aumento de bolsas auxílio, o ar condicionado criando um ambiente confortável e os alunos de pós-graduação ouvindo, uns atentos, outros nem tanto, o desenrolar dos fatos. E, sem remorso, confesso que naquele momento minha única preocupação era saber onde estava J. e se a alma daquele menino, tocada por uma experiência artístico-literária, aprendera a ver belezas no impossível.

Fernanda Macahiba, Maio de 2013

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