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Crónicas


Fernanda Macahiba: Metáforas




Tributo às Hamandríades



Dizem que o que todos procuramos é um sentido para a vida. Não penso que seja assim. Penso que o que estamos procurando é uma experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior do nosso ser e da nossa realidade mais íntimos, de modo que realmente sintamos o enlevo de estar vivos.

Joseph Cambpell in O Poder do Mito

Uma das maiores experiências que um recém-chegado pode fruir no campus universitário da Unicamp é realizar um passeio sem trajetória definida, observando a composição da vegetação local. Em muitas universidades estrangeiras, perambular desta forma pode ser pouco surpreendente, visto que existe uma série de planejamentos para a distribuição da flora. Mas aqui, tal como nas ruelas medievais do velho mundo, excursionar sem destino é um convite ao inusitado.

Após doze anos na universidade, sempre que posso empenho meus passos pelos caminhos e descaminhos (que são criados no gramado pelos ‘andantes’, não previstos no planejamento formal dos profissionais da área de urbanismo) relembrando nostalgicamente as histórias que ouvi de pessoas queridas, que se misturam com o farfalhar das folhas que, ao menor vento, brincam com as correntes, criando linhas abstratas no ar.

Assim, ouço a voz de uma senhora da terceira idade de Barão Geraldo, narrando que trabalhava em uma plantação de cana, que deu lugar à gestação e nascimento de uma grande universidade. Depois, recordo o falecido mestre Álvaro de Bautista descrevendo suas incursões com alunos e professores pelo campus, semeando aleatoriamente as mais diversas espécies de árvores. E também afirmava que em frente ao Instituto de Artes há uma árvore que foi plantada por ele cujas folhas, segundo os indianos, ao serem fervidas, aliviam dores musculares.

Impressionante imaginar as mudanças ocorridas desde que foi plantada a semente de nossa jovem Unicamp. Poucos, penso eu, perfazem os caminhos não apenas físicos, mas históricos e espirituais do que hoje é um complexo que abriga, como árvores, um sem número de estudantes, docentes e pessoas da comunidade.

Unicamp...sombra acolhedora dos sonhos de tantos que buscam um caminho profissional e encontram também rizomas afetivos durante a estadia acadêmica.

A diversidade de nossas árvores corrobora com nossos cursos. E assim como sabemos da interdependência ambiental das espécies, nossa universidade permite o transitar entre áreas, um presente não encontrado nas instituições particulares, que amplia horizontes e conhecimentos. Podemos dizer que, se os alunos desejarem, temos todas as condições de gerar um ecossistema acadêmico equilibrado.

Mas além de todas essas reflexões, recordo das inúmeras simbologias assumidas pelas árvores: a persistência, representada pela força exigida desde a semente até o broto e a superação de incêndios e podas; a sombra, que nos dias de calor acolhe e protege; a árvore da vida e da morte, das Sagradas Escrituras, entre outras. Também remonto aos pagãos que criam habitar um espírito em cada árvore, a Hamandríade. Aquele que já leu As Crônicas de Nárnia, ao passear pelo campus, é incitado a crer na vida que arboriza os espaços cênicos naturais e se não for céptico demais, há de, por instantes, ouvir a voz dos espíritos das árvores.

Nascida no Instituto de Artes, em meio aos burburinhos dos instrumentos e cantos que coexistem com as árvores, não raro designei como a voz das Hamandríades o lirismo das alunas de canto. E no vão entre o edifício que abriga as salas de aula e a biblioteca e pós-graduação, grandes amigas silenciosas presenciavam o ir e vir dos alunos e mestres que, ao construírem a si mesmos, despedem-se, de tempos em tempos, de uma fase da vida para alçarem novas estações.

As árvores, de certa forma, dimensionam o falsamente eterno. É como se cuidassem de uma fração humana que aconteceu naquele ambiente. São guardiãs da nossa história, que pode um dia ser contada aos nossos descendentes, sob a sombra ampliada de seus galhos, independente do tempo que passou.

Em minhas conjecturas relembro também de uma palestra proferida pelo professor Luís Barco, na qual expôs que, durante uma visita a uma Faculdade de Medicina em país estrangeiro, foi levado por um dos anciãos do saber até uma floresta. Lá, ele observou que cada árvore tinha uma plaqueta com o nome de uma pessoa. E o professor de renome explicou que no primeiro dia de aula, alunos e docentes iam até aquele espaço plantar uma árvore, que era cuidada por todos. E sempre que possível o ‘dono da árvore’ voltava para visitar sua amiga. Então, ao pé de um dos maiores exemplares, com orgulho, disse:

– Esta é a minha árvore. E sempre trago meus netos para vê-las.

Não posso imaginar maneira mais simbólica e estética para dar sentido à existência daqueles que vão cuidar de outras vidas. Penso que seria ótimo se incluíssemos prática similar na Unicamp. Ao invés de placas mortas com nomes das turmas, placas ao lado das árvores, plantadas por seres humanos, em um sentido lato do termo.

Vivemos uma era de morte dos sentidos, na qual a lógica cientificista predomina sobre todas as outras áreas. Lendo Ernesto Sabato fico emocionada quando encontro a afirmação de que a verdadeira educação deve estabelecer relações apaixonantes com o objeto do saber. Estar apaixonado é pré-requisito para o entendimento profundo de todas as coisas.

E então, nesses tempos, eis que (res)surge o artista. Marginalizado, este profeta do futuro continua seguindo, significando e criando, apesar de, apesar de e apesar de. Como seria frutífero se pudessem garantir que, no final dos tempos, tudo há de ser fruição, paixão, harmonia e arte...

E há melhor maneira de um criador apaixonar-se do que estando em contato direto com a natureza, magister criadora?

Relembro nosso querido Rubem Alves que, em prefácio de “Fundamentos Estéticos da Educação”, do querido professor João Francisco Duarte Júnior, diz, referindo-se ao autor: “E aqui está alguém que sugere que a educação seja pensada a partir da beleza – o que equivale afirmar que o poeta e o músico são mais importantes que o banqueiro e o fabricante de armas.”

E já dizia o poeta Manoel de Barros que a importância das coisas deve ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.

Qual a importância de todas as coisas para as pessoas? O que ainda encanta? Muitos são os trânsitos de imaginação em busca de respostas.

Voltando aos meus passeios pelo campus, soube, com pesar, que as árvores que guardavam o vão entre os prédios do Instituto de Artes iriam ser cortadas. Após uma tempestade na qual demonstraram ter raízes superficiais, balançando perigosamente, foram diagnosticadas como ameaçadoras. Sim, toda raiz superficial pode ameaçar vidas, sejam no mundo físico ou subjetivo.

Essas senhoras que tiveram sua sentença decretada testemunharam meu percurso acadêmico. Minhas dores e alegrias. Muitas vezes deitei nos bancos a observar as folhas se movendo, o céu límpido através delas, o pensamento criativo que antecede a prática em pulsão, buscando soluções plásticas para as obras do porvir.

Tais anciãs generosas abrigaram, debaixo de seus galhos, mosaicos criados pelo professor aposentado Geraldo Porto Filho, que está vivendo outra estação. Fizeram sombra nos dias de calor para que os alunos da música ensaiassem, criando um cenário sacro em um ambiente aparentemente simples e cinzento.

Infelizmente não havia meios de mantê-las naquele local que, durante anos, estiveram solenes e aparentemente sólidas, acompanhando as vidas que agora ameaçavam. São os dilemas sem solução, as dores inevitáveis.

Foram tombadas, uma a uma. Imaginei as Hamandríades agonizando enquanto, impotentes, assistiam a invasão das motosserras, as grandes rangedoras implacáveis.

No mundo poucas situações entristecem tanto quanto o dilacerar de uma árvore por mãos humanas. A solidão e a morte dos espíritos que habitavam aquele espaço gerou um ambiente fúnebre e silencioso, após turbulenta violência. Não mais o silêncio acolhedor, mas a falsa calma da devastação.

Evitei passar por aquele caminho por dias. No entanto, ignorar não mudaria o estado de coisas. Enfrentei minha dor e com pesar, sentei em um dos bancos cujas mesas de mosaico agora são castigadas por um sol inclemente. Nenhuma sombra. Os restos dos troncos jazem, ainda com raízes, fincados no solo. Dor. Pergunto a mim mesma se ainda há de brotar ali um pequenino galho verde, quem sabe. As árvores são conhecidas pela sua persistência e vontade de viver. Lembro-me daquelas que não conheço, da Faculdade de Medicina da narrativa do professor Luis Barco, cuidadas com tanto amor pelas pessoas que as plantaram.

E então observo que nos vestígios do tronco maior foram acesas velas que, agora apagadas, deixaram como lágrimas, rastos de protesto dos artistas que, como eu, também amaram aqueles seres. Fecho os olhos por um momento, tentando buscar o equilíbrio emocional necessário para seguir. E no silêncio desolador ouço uma nota de violino pairando no ar. Talvez minha imaginação?

Mas as notas se multiplicam e doloridas, invadem o espaço árido da ausência. Abro os olhos e, a minha frente, um violinista também chora, enquanto toca, postado ao lado do tronco onde as velas foram acesas.

Não sei quem era o artista, mas comungamos um sentimento poético de orfandade, tristeza, solidão e beleza.

E volto à epígrafe desta crônica. Campbell diz que não buscamos um sentido para a vida e sim experiências que evoquem em nós a sensação de estarmos vivos. Talvez possa parecer paradoxal à maioria, mas nunca a morte e a solidão me fizeram sentir tão viva e acompanhada. O motivo? Talvez os meandros da arte, as experiências únicas proporcionadas por grandes almas sensíveis que fazem da dor, beleza e da solidão, companhia aos que sofrem.

Lembrarei como uma grata experiência, deste instante doloroso, a companhia silenciosa de um violino ferido por mãos experientes e do artista anônimo que prestou, com sua música e lágrimas, seu tributo aos espíritos das Hamandríades que habitavam aquelas árvores.

Fernanda Macahiba, Agosto de 2014

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