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Fernanda Macahiba: Metáforas




(De) composições artísticas



Se, durante séculos, o ato de conceituar habitava o ramo das ciências ou da filosofia, enquanto à arte cabia o papel de disponibilizar o acesso às realidades outras, que resultam de conhecimentos tácitos, educando os sentidos; hoje prepondera, em muitas obras, uma ode ao mau gosto e violência gratuita. É certo que, em tempos contemporâneos, a arte repousa sobre a égide do conceito.

No império do desenvolvimento tecnológico, agonizam as relações humanas e com elas a percepção de valores, de mundos possíveis e do outro. É nítida a desvalorização da poesia em prol da brutalidade rústica da anestesia dos sentidos.

Saramago afirma, no documentário “Janela da Alma”, que nossa época se prestou a concretizar o modelo teórico da Caverna de Platão. Segundo ele, nunca tal proporção de pessoas esteve imersa em uma virtualidade, crendo ser ela a realidade completa da existência.

Nessa perspectiva de pseudo-realidade, na qual as pessoas podem ser tudo, inclusive e principalmente o que não são, também a arte se deu ao luxo de ser o que nunca foi. “A arte imita a vida” (Oscar Wilde) ou a vida imita a arte?

Baluarte de um processo degradante, as obras, como não poderia deixar de ser, refletem, como acontece no decorrer da história da humanidade, as características da sociedade em determinado período.

Redes sociais regurgitam e multiplicam fake news, perfis e imagens manipuladas, no que eu chamaria de “A era da mentira”, que endossa uma doença coletiva de hordas que creem ser a morada da felicidade num universo falso.

Curioso observar que em nossos dias de fraturas sociais, muitos apontam como antídoto de todos os males a experiência significativa que, como mágica, traria à vida o brilho perdido na seara da falta de sentidos existenciais.

Nunca tivemos tantas doenças da alma, amparadas pelo mercado farmacológico neocapitalista, que movimenta bilhões anualmente, bem como psicólogos e psiquiatras rendidos às terapias alopáticas com seus pacientes, comungando e ratificando a teoria de que tais tratamentos possibilitam uma vida sem dores e um reforço emocional.

Reforço esse que se faz mais do que necessário considerando, entre outras coisas, certas “experiências artísticas” que nos são oferecidas em doses nada homeopáticas em museus, espaços culturais e galerias.

Se, com propriedade, na primeira metade do século XX, artistas adotaram uma postura de denúncia, me parece que alguns, a certa altura, esgarçaram os limites do bom senso.

Após o mictório de Duchamp, os prolongamentos nocivos foram sentidos amplamente. “A fonte”, título delegado à obra, me faz pensar na diferença estabelecida com outras fontes que realmente proporcionam o que considero experiência estética, como a “Fontana de Trevi”, de Nicola Salvi, por exemplo.

Se em 1917 o rumo da arte foi modificado, como dizem alguns, por um urinol, pergunto que palavra utilizar para determinar qual tipo de mudança ocorreu.

Não tardou a adoção da ideia de que tudo pode ser arte, se estiver em lugares específicos ou receber um padrinho influente considerado “crítico da área.”

Triste concepção! Pulularam e ainda pululam artistas influenciados pela ideia funesta. Já em 1929, pouco depois da degradante ideia de Duchamp, Manzoni expôs suas latas de excremento rotuladas. As obras sequer foram abertas. Uma hipótese é que estejam vazias de matérias mas, segundo os defensores de Manzoni, a“bunda”m em conceito. Me espanta ainda não ter aparecido algum pesquisador propondo uma espécie de raio-x para verificar se há vácuo ou matéria defecada no recipiente. Vendidas a 275 mil euros, o dinheiro não possibilitou o desfrute do artista, que faleceu aos 29 anos.

De lá para cá muitas são as situações que seriam cômicas, não fossem trágicas, tais como a vassoura esquecida pela funcionária da limpeza em uma Bienal, rodeada por experts em arte contemporânea, que filosofavam sobre a metafísica da obra de arte, bem como o ato aviltante de um “artista”, cuja obra era um cão preso que não recebia alimento e retratava a efemeridade da vida. Com todo respeito, deveriam acorrentar o autor da obra.

No conjunto, creio que tais elementos artísticos são um atentado contra a vida, em seus aspectos mais sagrados.

Não imagino Fra Angelico, Da Vinci ou Michelangelo incluindo latas de excremento em uma Anunciação, cães moribundos agarrados à Mona Lisa ou mictórios na Capela Sistina. Terá Manzoni esquecido da tradição de seus antepassados italianos? Ou procurava inovar sem medir consequências?

Para fruir as tais obras, se faz necessário um esforço que supera a metafísica, regado a uma boa dose de medicamentos e amputação de quaisquer valores morais, espirituais ou estéticos. Notadamente observamos um convite à mutilação dos sentidos, tamanha a perfídia diante da existência.

Relembro, consternada, uma artista cuja performance consistia em deitar em vidros e cortar o corpo com lâminas, num Museu de Arte Contemporânea visitado por escolas de crianças e jovens. O que se pretende ensinar ao público? Qual mensagem uma “obra” desse cunho tem a oferecer? Se eu fosse a professora, chamaria a polícia!

Talvez a merda de Manzoni corrobore para designar o valor desse tipo de arte: o gosto pelos dejetos, pela decomposição, feiura e sangue. Inegável que tais exposições rendem grandes comentários dos doutos, que descrevem filosofias em notas de rodapé, a fim de convencer os desavisados que estão diante de uma verdadeira obra de arte.

Não creio que para tal experiência seja preciso ir a um museu. Basta fazer um exame laboratorial e ter habilidade mínima para criar um rótulo para o recipiente dos excrementos. Com a multiplicidade de aplicativos de design, muitos oferecidos gratuitamente, todos podem batizar sua merda com rótulos impressos em casa, ao “gosto do freguês.” Imagine um clínico, ao perceber a variedade de designs na etiqueta!

Não me espantaria se dia ou outro me deparasse com um projeto de arte cuja professora expôs os dejetos dos seus alunos, rotulados, para que os pais visitem. Como se os genitores já não conhecessem em aparência e sensações tais “obras.”

Há apenas uma coerência ao chamar de obras os excrementos. Em alguns países lusófonos, o verbo obrar também designa defecar. Entretanto, nunca li tal relação em um livro renomado de História da Arte ou o que valha. Estarei criando uma nota de rodapé?

A psicanálise sugere que pessoas obsessivo-compulsivas regridem para o chamado estágio anal de desenvolvimento. Tal estágio faz parte de um processo chamado psicossexual, desenvolvido ao longo da infância, em busca de prazer. Entretanto, Freud observou uma natureza sádica em tais impulsos anais. Será o caso de Duchamp ou Manzoni?

Se na Idade Média tivemos defecações coletivas a céu aberto por falta de saneamento, dizimando, literalmente, multidões, hoje prepondera, em muitos casos, a exposição conceitual ao lado do dejeto, cuja ação degradante se dá na alma, sacrificando o que há de mais importante no homem: sua condição de dignidade diante da existência e da arte.

Preocupante observar que latas de merda rotuladas são elevadas a uma condição de contemplação e culto, em espaços destinados a experiências estéticas e significativas. Espaços muitas vezes mantidos com dinheiro público. 

Em breve sugerirá uma estação de tratamento de esgotos.  O que, metaforicamente, não seria mau.

Durante muito tempo, a arte foi mediadora entre o homem e a experiência com o sublime, o sagrado.

Impossível não ser transportado para outra realidade, num transe dos sentidos, ao observar a "Anunciação" de Fra Angelico, cujo guardião é o Museu do Prado. O ouro e a têmpera refletem um ideal de beleza e leveza, além de um momento histórico que se faz em maravilhamento e luz pelas mãos do artista.

Também a dor expressa por Goya em suas gravuras ou o passar do tempo nos autorretratos de Rembrandt despertam a certeza da fragilidade e da condição humana, em uma esfera de realidade transmutada belamente pelo ponto de vista do artista.

O silêncio se faz na contemplação de tais obras, que não parecem criadas por mãos humanas. A habilidade, dedicação, empenho, alma e técnicas impressas pelo artista são incontestes.

Questiono:

– Que espécie de transe alguém pode ter diante de um mictório ou uma lata rotulada como merda de artista? Não nego que há silêncio diante de tal exposição. Mas de outra natureza.

Provavelmente, o único esforço que eventualmente Manzoni precisaria fazer para conceber tais obras seria no ato “performático” de uma prisão de ventre.

Nem mesmo a escatologia poderia avaliar um desfecho tão drástico no âmbito das artes. Será o fim do mundo? Serão os artistas profetas?

O mundo acabará em merda ao invés de fogo ou água?

Em tempos de excrementos se faz necessário esquartejar a palavra, em busca de caminhos outros. Que o prefixo ex- cumpra seu papel. Ex-cremento. Ex-, cuja definição remete à separação, afastamento, extração de algo que foi e já não é!

A concretização deste desejo poderia permitir, quem sabe, o início de um processo de transformação neste cenário esquizo-coletivo que se apresenta sob um rótulo de arte.

Fernanda Macahiba, março de 2019

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