Letras & Letras

Crónicas


João de Mancelos: Memória dos Dias Eléctricos



Escrever é pensar em voz alta

Escrever é pensar em voz alta. É este o apanágio do animal scriptionis, vulgo, Escritor – a mais bizarra criatura dentre a fauna artística.

Cidadão do Mundo, damos-lhe perpétua licença para cativar essa realidade que esculpe a esferográfica, cinzel e fantasia. E cada seu verso & verbo afogueados são uma conspiração de letras. Páginas e páginas esbofeteadas na máquina de escrever, à custa de bons puxões de orelhas na inspiração.

Assim, porque nada do que é humano lhe é alheio, vai sofrendo de scriptofobia, a doença incurável que lhe mata o tempo e lhe dá viver.

O mal é contagioso e galopante: obriga-o a tatuar rascunhos, emendas, erratas, papelinhos e papelada. Fantasias e filhos tão materiais e metafísicos, que o Escritor chega a ter ciúmes da tinta de esferográfica.

Talvez por isso seja ele uma criatura lunática ou saturnina – raras vezes terráquea. O mais socrático dos passageiros de autocarro, todo ele um caderno de notas, desde os óculos à ponta dos dedos.

Lexias, dislexias, lexemas & outros-que-tais, arrebatados ao jardins da Palavra. O arquitecto da esferográfica rabisca letras e lirismos, vergasta as sílabas ao sol, irrita-se, vocifera – raras vezes aprecia a empreitada. Ou não estivesse o Escritor sempre em construção.

Em ocasiões de neónico sucesso, ao escrever histórias, faz a História. Outras, lamuria-se da inspiração ter faltado ao encontro marcado.

Ama, comove, é infiel às horas de despertar ou acordar. Critica, acidamente. Uns chamam-lhe tratadista. Outros, tratante. Mas o Escritor ri-se, baixinho, esfrega as mãos, qual mosca satisfeita e lá vai rabiscando.

Ao envelhecer, torna-se sorumbático, e deixa crescer patilhas – não necessariamente por esta ordem.

Porém, como é a nossa voz pluralizante, é difícil não gostar dele. Talvez por nos desafiar a um duelo de sonho ou de mortal aborrecimento, em cada livro. Ou por se pespegar às nossas existências como pastilha elástica ao sapato. E lá estar, à espera do Leitor, cicerone de invenção na esquina de cada página, no bairro de cada livro.

Sempre ali, sempre nosso.

Até ao dia sonhado por Saramago, em que deixará de haver Poesia – porque todos seremos poetas.

Até lá, só nos resta ler as obras. Sempre fantasiei os livros como sujeitos. Alguns, altos e magros, ao modo dos atlas. Outros, mais baixos e na categoria dos pesos-pesados – os dicionários. Vivem reunidos nas proletárias famílias das enciclopédias de múltiplos volumes ou na solidão de um romance de um tomo apenas.

No condomínio das estantes, que sossegadamente habitam, o tempo reduz-se à imutabilidade, e os livros têm vagar para as suas conversas intertextuais.

Se o Leitor encostar a orelha à prateleira, ouvi-los-á dialogar sobre os mais hemisféricos lugares, falar de estórias simples ou bizarras, de heróis sem morte, de esquecidas eras e futuras clepsidras – desde os dinossáurios à superfície lunar.

Como a gente, têm manias e feitios (A4, A3, de bolso...). As mais insuportáveis são as edições originais. Dizia Plínio que «os espíritos imortais falam nas bibliotecas». Talvez por isso mesmo, não raras vezes, os livros insinuam a importância de seus pais. Abrem, então, despudoradamente a gabardina e mostram uma dedicatória autografada.

Vestem-se de capas e contra-capas, alguns bem cartonados, outros embolorados pelos decénios. Os mais antigos exibem sobretudos de couro e caracteres dourados. Os neófitos preferem o brilho jovial das suas capas plásticas e lustrosas.

Fora a questão da indumentária, em comum, só têm dois pesadelos: que as traças os devorem, e que os seus bilhetes de identidade – as fichas bibliográficas – se extraviem.

Ombro a ombro, ou capa a capa, mau grado a diferença de linguajares, autores e épocas, convivem pacificamente. O meu Drácula habita lombadas meias com o Huckleberry Finn. O 2001 – Odisseia no Espaço, com o irmão, o 2010 – A Segunda Odisseia. O Tarzan, com O Filho de Tarzan. E – calcule-se! – o Tigre da Malásia, com O Guardador de Rebanhos.

Petrarca clamava que as letras «encantam até à medula, falam e ficam unidas a nós por uma familiaridade viva e harmoniosa».

E todos, todos nos servem lições, os livros, livros. Alma de tinta, brancura de corpo, ao prazer do teu olhar.

João de Mancelos, 1994

Voltar à página inicial das Memória dos Dias Eléctricos

Colaboradores | Coordenação | Contactos | © 1997-2015 Letras & Letras