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João de Mancelos: Memória dos Dias Eléctricos



Tamagotchi: o amor «ex machina»

Que têm em comum um executivo japonês que chega pontualmente tarde ao emprego, uma criança de oito anos que se suicida e um adulto com um ataque de histeria no autocarro? A resposta é directa: todos eles possuem um Tamagotchi, o bichinho de estimação electrónico que logrou ultrapassar, em popularidade, todas as outras criações da galeria de brinquedos «made in Taiwan».

De facto, nem o Dragon Ball, nem os Power Rangers, nem quaisquer outros heróis musculosos de plástico, com que as crianças do milénio se entretêm, conseguiram fazer frente a uma frágil galinha virtual: o Tamagotchi. Talvez porque esta criatura seja capaz imitar as mais elementares necessidades humanas: produz um som «bip» quando tem fome ou faz xixi, porta-se mal, não prescinde de guloseimas, vive durante cerca de um mês, dorme e morre. Acima de tudo, recompensa com corações de afecto o seu possuidor quando este se dá ao trabalho de carregar, inúmeras vezes ao dia, nos três botões que o alimentam, limpam, vacinam, disciplinam, adormecem...

A afeição dono/criatura pode ser tão mútua que homens de negócios interrompem reuniões para acalmar esta galinha vinda do espaço, e as crianças desfazem-se em lágrimas ou tentam o suicídio quando o bicharoco electrónico morre (eufemisticamente, os seus criadores dizem que «voa para outro planeta», a versão asiática do nosso «ir desta para melhor). Felizmente, já existem na Internet cemitérios para os Tamagotchi (em japonês, os substantivos não apresentam plural), onde os seus proprietários os podem enterrar com epitáfios tão sensíveis como «Bye, bye, Tama!» ou «o raio das pilhas acabaram» – a recordar-nos que o Tamagotchi tem, afinal, um coração eléctrico. Também felizmente, no Japão, há psicólogos treinados para combater os traumas dos possuidores de palmo e meio que viram os seus companheiros digitais morrer, ou por outro, dar à asa.

E aqui começa a polémica entre os pró-Tamagotchi e aqueles que não querem nem por nada que os seus filhos tenham tal coisa por amigo: será esta galinha politicamente correcta?

Os engenheiros da empresa de brinquedos Bandai – para os quais o Tamagotchi foi literalmente a galinha dos ovos de ouro – argumentam que esta mascote ensina às crianças o sentido da responsabilidade. É que, se o possuidor a alimentar em excesso ou sovinamente, a galinhola adoece ou morre; se não a vacinar, «idem»; se não a disciplinar, assume uma forma física repelente e faz «bip, bip» que se farta. Acima de tudo – dizem –, apresenta nítidas vantagens em relação a qualquer Bobby ou Tareco de carne e osso: cabe nos minúsculos apartamentos de Tóquio, onde treze milhões de japoneses se acotovelam – e claro, é um símbolo de «status» e de moda. Com efeito, a tamagotchimania mexe com as pessoas: leva os habitantes de Singapura a fazer bicha durante doze horas, debaixo do Sol escaldante; os consumidores espanhóis a correrem pela grande superfície fora à caça do último dos Tamagotchi; os meninos americanos a fazerem perrice, porque a mãe lhes trouxe uma das muitas imitações, em vez do brinquedinho original .

Os opositores contra-atacam com argumentos de peso: há gente que se suicida, há crianças viciadas, há adultos que modificaram desfavoravelmente a sua rotina diária – e tudo por causa de um animal de plástico, «chips» e electricidade. «O afecto tem de ser consolidado entre seres vivos», concordam os psicólogos, «ou então é uma fraude»; «o Tamagotchi distrai e aliena», juntam os professores primários das Filipinas; «impede o desenvolvimento mental correcto das crianças», defende a legisladora Selina Liang; tem de ser banido, defende o senador Juan Flavier, ao verificar que a sua netinha o impediu de tocar no Tamagotchi, com medo de que este «morresse».

«Tretas!» – denunciam os vendedores – «o Tamagotchi é inofensivo.» E, acrescento eu, catorze milhões destas máquinas vendidas num só dia calam muitas consciências. Entretanto, os engenhocas cibernéticos propõem já uma série de alterações com vista a «humanizar» a galinha, numa próxima geração de sucesso comercial: sensores de calor, para que possa transpirar; detectores de som, para que reaja a estímulos; e pilhas mais poderosas, para que conquiste horas à mortalidade e sorrisos mais duradouros aos seus devotos possuidores.

Será esta a diabólica máquina que a escritora Angela Carter profetizava? Mais uma acha para o fim do consenso racional? Ou apenas, à maneira de Álvaro de Campos, uma «revelação metálica e dinâmica», sinal dos tempos e da solidão partilhada neste fim de milénio?

João de Mancelos, 1997

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