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Crónicas


João de Mancelos: Memória dos Dias Eléctricos



O escritor regional: nos subúrbios da periferia

Conta-se que o escritor regional norte-americano Ralph Emerson, incapaz de escoar as suas obras, guardava em casa o «stock» excedente. E com uma certa graça comentava: «Sou o feliz possuidor de uma enorme biblioteca constituída por centenas de livros – metade dos quais são meus».

Passada uma centena de anos, e atravessando o Atlântico para a nossa realidade, verifica-se que os problemas do escritor regional pouco mudaram. Vivemos na literatura periférica, habitamo-la nas suas dificuldades, projectos e compensações. Por outro lado, tal como então, permanece a dificuldade de definir este tipo de autor.

Será aquele que faz matéria e poesia das terras e gentes de uma zona etnográfica, à maneira de Miguel Torga, vedor das correntes mais profundas da autenticidade popular? Será aquele que ao colher este pequeno torrão de uma paisagem que lhe é umbilical, se torna, por sinédoque, universal? Se assim for, então Seamus Heaney, ou William Faulkner são escritores regionais, mas também prémios Nobel – e as nossas queixas de falta de reconhecimento no cânone literário universal não têm razão de ser.

Porém, não será igualmente regional o escritor que habita na província, embora não escreva acerca da sua comunidade, buscando noutras culturas e medidas a trama para tecer os seus textos, e sofrendo, tantas vezes, a indiferença das editoras de Lisboa?

Ou será que só é regional o escritor que vive na sua zona e escreve acerca dela? E nesse caso, que fazer de Aquilino Ribeiro, que tantas vezes se ausentou de Carregal da Tabosa, por longos períodos, para Lamego, Viseu, Beja, Lisboa, e até chegou a viver em Paris e Baiona?

E um escritor provinciano de ficção científica, que se deleita com a enormidade de universos inconstrangidos, futuros e lugares que ainda não se inventaram? E um autor para o qual o ser humano não se tinge de região ou cor alguma, porque é ecuménico – e assim flutua acima de pátrias e línguas? É regional, ou não?

Neste amplexo em que tudo e todos parecem caber, sem se acotovelar, haverá razões para nos chamarmos periféricos? É esta a questão fulcral.

Apesar de tudo, encontro uma série de denominadores comuns aos vários tipos de escritores regionais. É que, como artistas, partilhamos problemas comuns, coisas de difícil deglutição. Sentimo-nos enxotados dos círculos criativos da capital, onde tudo, afinal, parece acontecer. Um eventual ingresso nesses circuitos literários é dificultado por cabalas, «lobbies» e capelinhas que às vezes têm a medida de catedrais.

A crítica, por seu turno, nem sempre dispensa atenção a valores regionais – preferindo concentrar-se em escritores que são ou vivem na capital, com facilidade de contactos e apoio das suas editoras. Ora, o termo «crítica» teve génese no grego «krinos» que significa «escolher». Porém, nos nossos dias, esta selecção é feita intra-muros e nem sempre com probidade. Há algum tempo, Pires Cabral denunciava: «O reconhecimento de uma pessoa às vezes não depende só dos seus méritos, depende do sítio onde está integrada, e até das pessoas com quem bebe uns copos». Um antigo professor meu, Hélder de Macedo, usava de uma expressão bem congeminada para definir esta situação: «a cultura incestuosa».

A questão agrava-se quando lemos elogios a textos de certos autores cuja verve produtiva há muito mirrou, e que agora se limitam a produzir livro após livro, – material para consumo – um pouco como os quadros das açucenas de Monet.

A existência de uma crítica pouco atenta e menos criteriosa parece-me tanto mais grave quando chega a atingir autores praticamente consagrados, canónicos, mas que não residem na cidade do Tejo. Há dois anos, Clara Pinto Correia deu uma conferência no pólo de Viseu da Universidade Católica. Esta escritora, que vive longos períodos de tempo fora do país, lamentando a centralização, comentava, lacónica mas lapidar, e com pitada de polémica: «Não existe crítica em Portugal» – fim de citação.

Como consequência imediata, a literatura nacional está a ser viciada, com perda para as gerações hodiernas e futuras. O que hoje é canónico – e o cânone português tem de ser revisto – coincide cada vez mais com o imediato e o mediático. Neste contexto, peço emprestada uma expressão a Artur Fino: «vivemos na cultura de prato-feito».

Por outro lado, muitos dos presentes experimentaram mais obstáculos do que os congéneres lisboetas em trazer a lume os seus trabalhos. A edição de autor ou o recurso a pequenas, mas corajosas, editoras de bolsos vazios oferece-se como única alternativa – um facto facilmente comprovável por quem visite a nossa feira do livro.

Só que, a este respeito, não aponto o dedo a Lisboa. E os presentes certamente me perdoarão a franqueza. O maior inimigo do escritor periférico tem sido precisamente a edição de autor. Acto de ardidez, concorda-se. Os alibis são vários: o desejo de publicar ou um subsídio oportuno, por exemplo. No entanto, várias dessas obras são lançadas sem um grafismo apelativo, quase sempre pouco ou nada distribuídas fora da região, raras vezes com o benefício de um «feed-back» crítico. Admitamos: se muitas edições de autor não se escoam é porque a qualidade está ausente. Oferecem-me para recensão crítica cerca de duas dúzias de volumes por ano. A maioria é escrita pela mão de autores periféricos. Desses, só uma escassa dezena traz páginas onde o talento habita. Por esse motivo, com frequência, se passa de um honroso provinciano a um evitável provincianismo. Assim, muitos são os escritores minúsculos que lá vão agitando a cauda ao público com os seus versinhos de água doce, impingidos a uma média quase anual.

As capelinhas, ao nível da cidade ou região, acabam, também, por ser uma fatalidade. Pequeninas escolas de elogio mútuo, grupos e grupúsculos, não são incomuns, lembrando-nos o provérbio latino «um asno coça outro». Críticos de palmadinha nas costas existem e persistem, nas nossas terras. Tricotam ídolos com pés de papel, substituem o «literati» pelo «gliterati», e apenas criam descrédito ao escritor regional.

Os escritores regionais deverão repensar a sua estratégia. Ter a humildade poética de que nos fala Keats. Submeter os seus originais aos conselhos de leitura das editoras do Porto, Lisboa ou até Coimbra. Acatar as decisões e as críticas; aprender com as recusas e os erros – sem nunca porem à venda à sua integridade e identidade de autores comprometidos com a sua zona.

As consequências de se ser ignorado pela capital não terminam aqui, nem se listam com facilidade. Subsistem, ocasionalmente, efeitos secundários. A ausência de crítica, vimo-lo, não contribui para que o autor periférico melhor o seu desempenho literário.

Escritores periféricos, num país periférico – os nossos problemas são um «dois em um». É que Portugal, apesar de listado entre os seis países com melhor produção literária, nunca esteve no vórtice de nenhuma corrente, ao ponto de influenciar outros países. Sempre sofremos o magnetismo da Provença, da França, da Ibéria, da Inglaterra, da Alemanha, e, mais recentemente, dos Estados Unidos. Tal como nota a Professora Doutora Irene Santos, existe, ao nível do sistema mundial, um primeiro mundo, economicamente dominante, que sabe proteger e disseminar a sua cultura, e um segundo mundo, onde escasseiam os mecenas e as fundações e que se limita quase a absorver influências. O pessoano atlantismo como-centro-de-poder permanece por cumprir, e de um Quinto Império, resta-nos ser o subúrbio pobre, de mão estendida.

A necessidade de descentralizar é hoje um «cliché» dito à boca cheia. Dos autores já consagrados, poucos apostam, menos arriscam. No entanto, há excepções a flutuar neste lago de azeite da indiferença cultural. Há dois anos atrás, no IIº Encontro Internacional de Poetas, promovido pela Universidade de Coimbra, debati algumas destas ideias com Isabel Cristina Pires. Na altura, a escritora anunciou-me que não ia começar por lançar o seu volume À Porta de Nárnia em Coimbra ou Lisboa, mas na terra-natal, a Pampilhosa. Disse e fez. Aconteceu. O parto foi bonito e assistido não só por numerosa gente da terra, como por pessoas vindas de outras regiões. Apenas um exemplo de que o escritor regional pode ser um cavalinho de Tróia na cultura estabelecida. Contribuir para arejar as letras portuguesas. Provar que a província tem paisagem – e é vasta e literária.

Felizmente, há algum luar. Esperança na mudança e numa crescente consciência de que a literatura não se resume a Lisboa ou aos Açores. Os suplementos literários da imprensa regional, por exemplo, têm sido o nosso órgão divulgador, por excelência. Por seu turno, algumas pequenas editoras continuam a apostar no escritor periférico, preparando-lhe o ingresso em maiores ambições: cito apenas a Estante, a Amararte e a Minerva. Ao nível da nossa representação na capital, destaco o ofício meritório que Associação Cultural Sol XXI têm tido, quer através da revista, quer pelas edições e encontros que promove com regularidade, ou a interessantíssima Amararte, com as suas sessões de divulgação e as suas publicação de bolso. Por outro lado, muito tem sido feito por escritores como o José Machado, de Chaves, e o Álvaro Holstein, do Porto, que colocaram escritores consagrados e autores menos conhecidos na Internet, em páginas muito apelativas, tornando-os acessíveis a milhões de pessoas, pelo preço de uma bica.

Pela minha parte, nestes últimos anos, tenho feito o esforço possível para divulgar o autor regional: através do Projecto Multimédia, que fundei; pela coordenação do suplemento cultural «Latitude»; ao ter organizado Vox / 95, Encontro de Escritores da Zona Centro, nesta Biblioteca; pelo ensino da obra A Cidade Salgada, de Vasco Branco, aos meus alunos, na UCP; ao coordenar, no próximo ano, um dos primeiros cursos de escrita criativa no nosso país; e pelas entrevistas e recensões críticas que tantas vezes fiz, em jornais regionais e nacionais, a escritores desta área. Tudo porque ninguém tem o direito de criticar Lisboa, se antes não fez pela divulgação da periferia.

Dizia David Lawrence, nos anos vinte e pressagiando o tom do século: «vivemos numa era essencialmente trágica». Com o analfabetismo real e o analfabetismo literário, com editoras a afixarem a placa «fechado» nas suas portas, com a pesada cauda de dinossauro da tradição e do vendável a tolher a novidade, com apenas 4% dos portugueses maiores de 15 anos a lerem um livro por mês, com 74% a praticarem abstinência literária total, com seis milhões de portugueses que lêem mas não conseguem interpretar medianamente, num ensino cingido ao cânone, num ensino secundário que é a desgraça e a vergonha da Europa e que traz para as universidades alunos que a maioria das vezes nem um poema simples conseguem analisar – as letras nacionais resistem. E as periféricas logram sobreviver, na imposta dieta cultural.

O século finda. A humanidade, com a sisudez do pensador de Rodin, reavalia o seu lugar na história. Vivemos na «aldeia global» de McLuhan. O mundo está hoje a um minuto de distância, sabemo-lo. À literatura, como caixa de ressonância, cabe também avaliar e preparar o parto do novo milénio.

O cânone literário, em países mais interessados nestas coisas da cultura do que o nosso, tem sido revisto. Da compartimentação dos saberes à interdisciplinaridade, da interdisciplinaridade à transdisciplinaridade, da transdisciplinaridade à holística, a tendência hodierna é combinar diferentes áreas do conhecimento, com vista à criação de novas abordagens da literatura. Os «curricula» deverão ter em conta que os feudos desta ou daquela corrente de crítica terminaram. As fronteiras do estudo do fenómeno das Letras abrem-se a novos pensamentos, dúvidas e descobertas: os estudos multiculturais, os estudos da «écriture féminine», o comparativismo, a antropologia literária, os «mass studies», e todas as novas disciplinas que enriquecem a literatura e recuperam para o cânone tantos escritores.

Nesta linha, é altura para incentivar à criação de teses e ensaios na área dos estudos regionais, originando cursos livres ao nível universitário, e, cada vez faz mais falta, inaugurando uma publicação verdadeiramente credível, sem ar de mendigo, nem papel rasca, nem mão estendida à esmola, que preencha as lacunas deixadas pelo JL, pela Ler, pela Colóquio. Só depois disso, ser escritor regional poderá ser sinónimo de dignidade e o cânone português se enriquecerá.

João de Mancelos, 1997

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