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João de Mancelos: Memória dos Dias Eléctricos



Avé, TV

«Quando todo um povo é distraído por banalidades; quando a vida cultural é redefinida como um perpétuo círculo de entretenimento; quando uma conversa séria se torna numa espécie de balbucio pueril; quando, em resumo, a população se volve em audiência e os assuntos públicos num acto burlesco, então o país está em perigo; a morte cultural é uma hipótese em aberto.»

O epigrama citado vem das páginas de Neil Postman, Professor de Artes e Ciências Comunicativas da Universidade Novaiorquina. Resultado de um estudo tão analítico quanto eloquente, de uma investigação racional à televisão norte-americana, o trabalho de Postman revela-se cáustico e de pesado impacto.

A teoria sobranceira à sua obra Divertidos de Morte , pressupõe um final apocalíptico para às artes e letras, e irmana-se com obras como O Fim do Consenso Racional ou ainda o paradigmático Para Acabar de Vez com a Cultura, de Woody Allen. Postman argumenta que, neste fim de século, a Televisão está gradualmente a transformar política, educação, fé, jornalismo e cultura em puro e trivial divertimento. A espectacularidade substitui o pensamento, a lucidez perde terreno para a ignorância e a banalidade. Num par de palavras: a caixa de imagens já não educa o povo, antes se nivela (baixo) ao seu gozo e prazer. O efeito é o de um brilhante embrutecimento do espírito.

«Made in» Portugal, sem bússola nem norte, levados pela guerra de audiências, os quatro canais estão-nos a aproximar periculosamente da imbecilidade comercialista. Alguns caricatos exemplos são os programas da plástica Amiga Olga, ou do sempiterno Herman José e as suas graças dignas de grafito de W. C..

Porém, mais preocupante é a intromissão crescente da TV na vida íntima ou privada do espectador. Apenas alguns casos: o patético programa Perdoa-me (cujo congénere Espanhol já se sumiu dos écrans, a pedido do público) ou o mais recente A Minha Vida Dava um Filme; a sensaboria ridícula e às vezes de mau-gosto dos Apanhados; o Cenas de um Casamento que nos traz cerimónias matrimoniais, com a benção da S.I.C., etc.

Há duas formas de se abater a cultura: ou pela censura, ou pela falta de um público com espírito crítico. A perca de liberdade tem sido tema para escritos dilucidatórios de muitos autores. O britânico George Orwell, no clássico Mil Novecentos e Oitenta e Quatro receava a censura, conducente à mentira e à ignorância. O estadunidense Aldous Huxley, temia um destino idêntico – só que aqui, pelo desinteresse das massas. Uma audiência ou um povo abúlicos, sem julgamento nem critério, dispensariam até a proibição.

Postman equaciona as preocupações de Orwell e Huxley e ajusta a nossa civilização televisiva ao segundo:

«O que Orwell temia era que as tecnologias banissem o livro. O que Huxley temia era que não houvesse razão para afastar o livro, porque ninguém teria interesse em lê-lo. Orwell preocupava-se com aqueles que nos negassem o acesso à informação. Huxley com outros que nos bombardeassem com tanta, que nos reduziriam à passividade e ao egoísmo. Orwell tinha medo que a verdade fosse ocultada. Huxley previa que esta se afundasse num oceano de irrelevância».

Não será nem positivo nem acaso concretizável, que ligar a TV se torne necessariamente num acto cultural. A variedade é positiva: agradar, ensinar («educere et educare»), divertir e informar os diversos quadrantes sociais. Na realidade, o popular é tão importante quanto o erudito, sendo apenas de renegar o que em cada uma destas áreas se apresenta como medíocre. E estou convicto de que há o popular de qualidade, tanto quanto existe o pseudo-erudito.

Simon Frith, um outro autor preocupado com o «status quo» da televisão, resume o valor dos programas num esquema, que adaptei à nossa realidade:

CONSUMIDORES

BOA QUALIDADE

FRACA QUALIDADE

Classes cultas

Erudito

«Kitsch» (imitação do erudito)

Classes populares

Cultura Popular

Cultura de Massas

Do erudito, fazem parte bons programas de informação (ex: Grande Reportagem) séries (National Geographic), música («adult-oriented pop e rock», clássica, minoritária, etc.) e cinematografia de qualidade. Do kitsch, entrevistas ao estilo de Na Cama com... ou A Noite da Má-Língua. Da cultura popular, a maioria de séries humorísticas estadunidenses, o concurso A Filha da Cornélia ou Palavra puxa Palavra e alguns bons programas desportivos. Da cultura de massas, as telenovelas de sotaque brasileiro, cuja receita, repetida «ad nauseam», nada nos aporta de original, ou os programas ao estilo do encaracolado Marco Paulo, bezerro de ouro da RTP, ou do imperador de audiências Júlio César.

Na grelha de programação, a fatia principal cabe, de facto, às telenovelas. Folheei um guia televisivo para a semana de 28 de Outubro a 3 de Novembro. Conclui que o Canal 1 difunde seis telenovelas (Corpo Santo, Cortina de Vidro, Maria José, Kananga do Japão, Pantanal, A Idade da Loba), num total de trinta e uma horas semanais. A TV 2 abstém-se de «soap operas». A SIC passa a perna à RTP, com sete telenovelas (Por Amar-te Tanto, Felicidade, Sinhá Moça, Cara & Coroa, A Próxima Vítima, História de Amor, Os Imigrantes) ou seja trinta horas por semana. A TVI / 4 opta apenas por duas novelas (Telhados de Vidro e Morena Clara), menos de cinco horas. Dados preocupantes, em especial se tivermos em conta que nos dias úteis, à hora do jantar, se encontram no ar três telenovelas em simultâneo. A opção é dada pela TV2... com programas infanto-juvenis.

Prossegui as minhas pesquisas durante o mês de Dezembro, uma época de óbvia competição comercial, agora na expectativa de cronometrar a duração dos blocos publicitários. Verifiquei que existiam intervalos que chegavam a atingir cerca de dez minutos. Normalmente, as longas metragens eram interrompidas três ou quatro vezes para espaços de divulgação de produtos. Na maioria dos países europeus, os blocos intercalares cingem-se a um ou dois por película. É sabido que a TV goza de um estatuto mediático muito favorável à publicidade. As estatísticas francesas informam-nos que nos últimos cinco anos da década de oitenta, 50% das receitas provenientes da divulgação comercial iam para as cofres das estações televisivas. Os dados referentes a 1995 estão ainda por apurar, mas calculo que se ultrapasse a fasquia dos 70%, além-Pirinéus. Se a exploração publicitária é inevitável nas estações privadas, o mesmo talvez não faça tanto sentido nos canais públicos. A TV2 tem sabido manter um balanço razoável, contrariamente à RTP que nos obriga a um «stream of ´chaticeness`» de anúncios, chegando ao ponto de apresentar o mesmo «spot» duas vezes num só bloco publicitário.

A TV não deverá substituir a leitura, o desporto, o teatro e cinema, as artes e a convivência. Convoque-se a estas páginas um caso quase «topos» do que tenho vindo a defender. Quando, nos anos setenta, a estação televisiva de Morlaix (Bretanha, França), explodiu, num ataque terrorista, as emissões foram cortadas por várias semanas. Durante algum tempo, a população desligou-se aquilo que os Ingleses já apelidaram de «caixa dos olhos esbugalhados». Os efeitos não se fizeram esperar: as crianças chegavam à escola mais sossegadas e desejosas de aprender. Os cinemas encheram-se. Aos cafés regressou o convívio inter-geracional – e o jogo do dominó. As vendas dos livreiros subiram em flecha. A comunicação familiar aconteceu.

Por um momento, as antenas, totens de poder, calaram-se. E as vozes dos espíritos sussurrantes deixaram, em paz, a atmosfera.

Saibamos ter o acto crítico de seleccionar os programas e de exigir, nas grelhas de programação deste novo ano de 1996, a cultura e ao popular de qualidade a que democraticamente temos direito.

João de Mancelos, 1997

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