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Crónicas


João de Mancelos: Memória dos Dias Eléctricos



Eu também sou rasca

Sobrevivi incólume à guerra fria, ao cubo mágico, às borbulhas e à adolescência em geral. Como qualquer outro terrestre, repeti as esfíngicas e primordiais questões do dia-a-dia. Coisas no género de: 1. Será Eric Clapton um deus? 2. Haverá vida depois da morte? 3. Quem guarda os fatos de Clark Kent, quando este os despe e se transforma em Super-Homem? Ultrapassei, sem excesso de zelo nem surdez, a fase de rock duro e cabelo espetado. Arranjei os crachás mais variados, para ostentar no casaco de ganga. Um trazia o inevitável slogan «Nuclear?, não, obrigado.» Outro, o típico Smiley, no seu perpétuo sorriso. Finalmente, o mais divertido, com o dístico «poupa água – toma banho com um amigo». Coleccionei a gíria da altura. alguma ainda hoje na berra: pá! Fixe! Iá, meu! gramei bué! Afixei os posters dos bezerros de ouro que a moda ditava no interior do armário.

Feito o balanço, foi quixotismo q.b. para este miúdo dos anos oitenta. Porém, faz parte da lei ontogénica e das cartesianas paixões da alma, que os ideais desapareçam, com as páginas do calendário. Como tantos outros, cresci em sabedoria e descrença. Vejamos: 1. Os glutões do Presto não existem. 2. O Pai Natal idem. 3. Eric Clapton não era, afinal, Deus. E agora, até o Super- Homem foi assassinado por um desenhador, nos céus industriais de Metropo- lis. A provar que os anjos também se abatem – mesmo os que usam collants azuis e capa escarlate.

Será um pássaro? Será um avião? Ou estarei a sentir as vibrações da crise dos vinte-e-tal? Duas dezenas de anos é uma idade madura para o vinho do Porto e a emancipação para um whisky razoável. Mas também o princípio da decadência na estrela do rock, as primeiras rugas na starlet, o carnudo pneu na barriga do jovem empresário alimentado a fundos europeus. Para mim, é mui- to simplesmente o primeiro sabor do spleen, da angst e de todos os estrangeirismos que rimem com ansiedade e chateza.

E porém, que medos guardo eu debaixo da cama? Apenas os comuns a uma Geração-sanduíche que vê terminar o prazo da validade para os projectos e o azedar de inúmeros sonhos. Quando crescia, tinha três receios fundamentais, todos eles já afastados. Já não temo ver aterrar um míssil soviético no quintal. Passei pelo primeiro vírus no computador, e sobrevivi. A solidão, lato sensu, mora ao lado.

A mãe de todos os medos é outra pertença à geração X, ou à geração rasca? Serei híbrido? Qual a minha época, que referentes me norteiam?

Deixei a interrogação num post-it, colado no frigorífico. Nem Deus, nem Eric Clapton, nem o Pai Natal, nem sequer o Super-Homem me responderam. Será que o papel foi comido por um glutão do Presto?

João de Mancelos, em Jornal de Letras, nº 643

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