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João de Mancelos: Memória dos Dias Eléctricos



Perguntas e respostas

Caminha pelo planeta uma criatura bípede, dotada de umbigo que dá pelo nome de Homo Sapiens. Apresenta ainda como característica particular o polegar oposto à mão. Uma adaptação ao meio, que resulta do hábito de pedir boleia. Emocionalmente, tem a capacidade de gargalhar ou de carpir, o riso e o esquecimento, de que Kundera nos fala. Porém, o mais interessante é a sua tendência incurável para levantar questões.

As perguntas vêm sempre aos pares: como os brincos, as sapatilhas e os mórmons. O Top Cinco das indagações universais incluiria:

1. Donde vêm os bebés?

2. Para onde vai o governo?

3. Alô? Quem fala?

4. Haverá vida depois da universidade?

5. Porque fica a pele enrugada, após o banho?

Segundo a mitologia grega, a questão mais enigmática foi a que a esfinge colocou a Édipo: Qual é o ser que primeiro anda de quatro patas, depois em duas, e por fim em três?

Édipo meditou longamente e respondeu: é o Homem. Gatinha, na infância (quatro apoios). Caminha, na juventude e adultícia (dois). Usa bengala, quando idoso (três).

Com efeito, o Sapiens sempre demandou e exigiu explicações. Ou não fosse ele o animal insatisfeito e aflito de que nos fala o poeta António Gedeão. Da sua curiosidade nasceu a ciência, a arte, as palavras cruzadas e as perguntas de algibeira.

Há vários tipos de resposta:

1. As frontais

2. As sem sentido

3. As copiadas

4. As de escolha múltipla

5. As tortas

Cada uma é dependente da situação comunicativa, do status do inquiridor e da disposição do replicante. Claro, que umas são mais palavrosas e prolixas que outras. Nas feiras, há os chamados foguetes de três respostas. Bem como temos as questões de retórica, que nenhuma pedem.

Não há cromos repetidos, no ser humano. As ansiedades variam de cabeça para cabeça, com o nível etário, a geração e o ponto do mapa onde assentamos pés.

Um exemplo: os «rasquinhas» (membros da geração rasca com idades compreendidas entre os dez e os treze anos), têm o seu próprio inventário de interrogações:

1. Quando me dão a chave de casa?

2. Porque não posso ir com eles?

3. Porque não me deixam usar batom?

4. Porque não me calo um segundo?

Cada terrestre tem a sua pastilha elástica grudada ao sapato. Quando crescia, sempre acreditei na vinda da Bomba Atómica. O Tio Sam contra o Urso Branco. Quem carregaria primeiro no botão? Um holocausto nuclear, vindicativo, e alimentado pela cultura pop da época. Filmes como «The Day After» aterrorizavam-me. Nas livrarias vendiam-se manuais que ensinavam a sobreviver em caso de guerra radioactiva. Nas arcádias, os jogos de computador simulavam o confronto entre os mísseis Pershing e o poderio soviético. Era comum, entre amigos, perguntarmos: Que farías, se soubesses que a Bomba estava prestes a cair? Uns dedicavam-se a amar. Outros apanhavam a bebedeira das suas (curtas) vidas. Os fantasiosos procurariam fugir para o planeta mais próximo.

Parecia-nos, portanto, inútil colocar muitas perguntas, porque a morte era eminente. E no entanto, vieram os anos noventa, e o perigo nuclear foi enxotado. O futuro surgiu, então, todo à minha frente. Uma estrada longa e assustadora. Uma sobrecarga no circuito, diríamos. Uma total ausência de interrogações. Eventualmente, superei a fase. E agora tenho um dado novo como certo: enquanto houver um Sapiens, existirá sempre um ponto de interrogação. Porque, diz-se, o Homem é um filósofo – e o filósofo é «aquele que procura, num quarto escuro, um gato preto que não está lá».

João de Mancelos

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