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João de Mancelos: Memória dos Dias Eléctricos



Feliz Natal, Marcianos!

A NASA está definitivamente em baixa órbita. Depois de um telescópio míope – o Hubble – o seu último investimento consiste numa sonda muda, a Mars Lander. Não é preciso muito para imaginar como se sentem os contribuintes norte-americanos, ao verem o dinheiro dos seus impostos sumir-se para uma galáxia muito, muito distante. E nunca mais dar sinais de vida.

A Agência Espacial depara-se com os cofres vazios, sobretudo desde que bateu pé aos interesses militares e decidiu enveredar por experiências mais pacíficas para a raça humana. Os ventos de mudança decretaram obsoleto o Projecto Guerra das Estrelas, que previa a existência de uma rede de satélites hiper-vigilantes a policiarem o mundo. Foi apenas uma das muitas cow-boyadas com que o actor / presidente Reagan tentou manter o seu protagonismo no palco do planeta.

Na outra metade do mundo, a ex-URSS deixou de constituir um papão e o seu programa espacial também está em queda livre. A estação orbital MIR, outrora a estrela mais brilhante do céu vermelho, implora urgentemente a reforma, e os seus tripulantes constataram que até as rações alimentares lhes tinham sido furtadas pelo pessoal de terra, que não recebe há meses um salário. Obviamente, o orgulho tecnológico russo leva ainda o seu enófilo / pugilista / presidente Yeltsin a fazer ameaças de um fogo de artifício nuclear, para assinalar a passagem do milénio. Mas são apenas actos esporádicos para chinês ver – o que está mesmo a dar é a exploração do cosmos.

O que me leva a perguntar: que terá sucedido à Mars Lander? Imagino pequeninos marcianos em redor da sonda, examinando-a com curiosidade. Estendem as antenas, tocam-na, acariciam a fuselagem, espreitam para dentro dos escapes dos foguetes, encostam a língua à superfície morna e polida, para ver a que sabe o metal terrestre. Uma deliciosa e semi-erótica inspecção ao artefacto alienígena que veio perturbar os longos dias do quarto planeta. Depois, com espírito analítico, começam a desenroscar os parafusos da máquina, a desfiar as centenas de metros de cabos, a maravilharem-se perante os circuitos electrónicos dourados que refulgem entre os seus doze dedos. Que presente de Natal maravilhoso lhes enviaram os manos da Terra!

Então, as criaturinhas recolhem os fios eléctricos, os estilhaços mais cintilantes, os caríssimos componentes do computador de bordo, made in Silicon Valley, e com eles começam a decorar uma árvore fossilizada – a maior e mais bela das planícies de Marte. Fascinadas, as crianças verdes dançam em seu redor, os velhos azuis abrem sorrisos desdentados, os jovens cor-de-rosa dão as mãos, apaixonadamente. E eis que a duzentos e vinte e sete milhões de quilómetros do Sol se celebra a noite mais longa, e o nascimento de um deus bebé. Feliz Natal, Terra! Bip bip, Marte!

João de Mancelos, Dezembro de 1999

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