Letras & Letras

Crónicas


Nuno Ângelo: Histórias Portáteis



Azul metade

Os caracóis a caírem-lhe para a cara, a tocarem-lhe leves como o vento, como uma onda num rosto de marés mais fortes que o próprio oceano. Olhos grandes, castanhos, mais vivos que as cores claras. A chuva a cair, pesada, a fechar caminho, ela alta, determinada, a carregar uma vida no meio de tantas iguais, presas na multidão, que se olham diferentes, atravessando ruas que se cruzam, avenidas sem fim, para nunca chegarem a lado nenhum.

A tarde cansada, vagarosa, parece fugir, lentamente. A multidão, volta, enchendo as ruas que se cruzam, percorrendo avenidas sem fim, numa velocidade ansiosa, esperando que a vida se desdobre, à procura da outra metade.

A chuva a cair, pesada, despindo a cidade, forte nos reflexos deixados pela água, os passos na calçada, compõem o silêncio deixado entre as ultimas vozes da tarde e o sopro das gotas que caem do céu nos rostos cansados, misturando-se nos olhos de todas as cores, como lágrimas de saudade, enquanto a manga vai enxugando a água que gela a pele.

Ao longe a claridade, sobre o mar, fecha-se lentamente na escuridão, o azul muito acima das nuvens, ainda reflecte um traço de luz, e os caracóis a caírem-lhe para a cara, a tocarem-lhe leves como o vento, acendem-lhe os olhos, descobre-se-lhe a vida, ela rasga o silêncio, sem dizer uma única palavra, e de repente num sopro de alívio, o céu escuro, de azul metade.


As ruas do teu rosto

Ele à espera que passe a neblina, para trás e para a frente num compasso certo e nervoso, colado à montra, a ver-se a ele próprio no vidro e a olhar para o relógio vezes sem conta. O eléctrico a passar, amarelo, lento, a subir silenciosamente o Rossio. Do outro lado um rádio grita atrás de uma janela aberta com pequenas cortinas soltas ao vento. Ele a passear de montra em montra sem sequer olhar para o interior. Nunca olhamos para o interior de ninguém, pensa ele, enquanto vai sendo atropelado pela correria de gente que saltou para a passadeira enquanto se acumulavam à espera do sinal de ataque como abelhas furiosas atrás do dourado mel.

Ela chega ao longe, do outro lado, acena-lhe, ele empurra, atropela, não deixa passar. As mãos dadas unem os corpos, a confusão deixa de existir, os olhos são brilhantes, azuis, são um rio, largo, profundo, com uma ponte para o outro lado. Os lábios são ruas cruzadas, quentes de vida e de gente, ruas da Baixa, onde sorri toda a beleza de uma cidade.

As ruas do teu rosto são todas iguais, todas únicas, todas viradas a sul, que acabam por morrer nos teus olhos brilhantes, azuis, largos e profundos de rio Tejo. As ruas do teu rosto, são avenidas livres, praças largas, ruas estreitas, varandas viradas ao sol e janelas altas. As ruas do teu rosto são cor de Chiado, esplanadas e velhos cafés. As ruas do teu rosto são traços, coisas, tuas, que só voltam quando se esquecerem de ti.


Tudo o que vier será bem-vindo

O velho a percorrer a avenida, lúcido, na confusão sonora da cidade que o envolve, a sonhar com o amanhã, a saber que um passo em falso e estaria tudo perdido. A mulher dentro do seu lustroso visual, jovem, cheia de tudo o que a vida pode oferecer, feliz por ter encontrado uma vida quase igual à sua, a saber que o amor engole-se e consome-se como fast-food, e que as palavras já não iludem e muito menos o que se diz e escreve.

Ao longe perto do mar um rapaz, franzino, com cabelo queimado pelo sol e sal, sonha, ao ver ao longe, pequenos veleiros que levados pelo vento parecem chamá-lo, como se o viessem buscar.

Duas crianças passam a pedalar nas suas bicicletas, e a mãe atrás a segurar-lhes o caminho como um anjo da guarda que nunca lhes faltará. Um homem foge para não ser atropelado e sorri, sozinho, às crianças que o olham com espanto. Um homem que ainda sonha e sorri a tudo o que vê, um homem que tem navegado por ventos e marés mais fortes que o grande mundo, e que ainda abre as suas velas à mulher que o seguir.

No pontão do velho molhe uma rapariga tira fotografias, a luz a desaparecer, a entardecer, ela sozinha a gravar aquele sopro final de Deus, aquele sopro que poucos vêem, o fim de um ciclo, o começar de uma nova maré, o rebentar de uma onda na fina areia, e ficar à espera, como quem espera algo sem saber bem o quê. Ao lado um rapaz sentado no pontão do velho molhe declama algo, como quem sabe o que diz, "espero que caminhes sempre a meu lado, leve brisa, porque se fores temporal, não procurarei outro abrigo no mundo. Sou como um barco na sorte do mar, e ao sentir a tempestade da vida, jamais mudarei de rumo, porque no final, tudo o que vier será bem-vindo, mesmo que o céu não seja sempre uma brisa de cor azul".


Enquanto houver dois de nós

A estrada larga, perdida no calor, como um rasto de água deixado por um barco, vai dançando pela tarde fora, enquanto Madalena segura a mão direita de António, e lê qualquer coisa de Pablo Neruda, ao mesmo tempo que Dave Matthews vai cantando "41", como se a idade deles, sempre solitários também contasse para a viagem.

Madalena a sussurrar ao ouvido de António, a amá-lo com a beleza de quem sabe que mesmo depois da barreira dos quarenta, a vida para quem quer, é um mar de viagens grandes que precisam de ser feitas, para se poder continuar a sonhar, e a abraçar todos os dias como se fossem de novo dias de namoro.

Madalena a afirmar que enquanto houver dois de nós o mundo continuará como nós sempre o imaginámos, largo como o mar, cheio de veleiros, navegantes e viajantes, que percorrem a vida sem nunca olharem para trás, atravessando chuvas e noites gigantes, só para chegarem a lado nenhum.

Somos assim, e seremos sempre assim, viajantes solitários, e uma vez chegados ao mar, esqueçam-nos porque nunca, nunca mais voltaremos, para trás. António a sorrir às palavras de Madalena, a saber que enquanto houver dois como eles, o mundo será sempre um pouco mais azul, porque as viagens servem para nos convencer que existe sempre um fio de vento no céu que ainda não tocámos.

Ao longe, a cor azul de mar, vai misturando os brancos, que rasgam a espuma, afiados, senhores de si, veleiros que transportam vidas, muitas delas desde sempre à espera da liberdade que chega depois dos quarenta, e sem olhar para trás, mão na mão virar costas e navegar, mesmo que seja só para chegar a lado nenhum.

Madalena a sorrir e a segurar a mão de António, forte como uma amarra, a segurar os corpos, decidida como uma leve brisa matinal, capaz de empurrar vidas inteiras.

Nuno Ângelo, Outubro de 2001

Voltar à página inicial de Histórias Portáteis

Colaboradores | Coordenação | Contactos | © 1997-2015 Letras & Letras