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Crónicas


Nuno Ângelo: Histórias Portáteis



Este oceano que nos separa

A cidade gigante, indiferente, cheia de ruas e avenidas parte-nos ao meio. Separa-nos a cor, os traços, os muros, as paredes altas, os horários contrários, o teu mundo, o meu mar. Caminhamos em sentidos opostos, eu percorro a tua cidade, tu percorres a nossa cidade. A tua cidade cheia de ruas que não nos levam a lado nenhum, cobre-se de rostos que nos travam o andar. A tua cidade gigante como tu, é silenciosa, cega, empurra-nos de encontro ao tempo que é pouco, quase nenhum.

Esta cidade separa-nos, para depois nos juntar numa tardia maré, para vez após vez, nos voltar a levar, de novo em sentidos opostos, a percorrer os mesmos lugares, a navegar as mesmas avenidas, a sentir ao longe o cheiro a rio quase mar, a sentir-te ao longe mesmo que só por dentro, a saber que mesmo sem vento corres por mim.

Este oceano que nos separa terá sempre um sorriso, nosso, enquanto nos trouxer, para depois nos levar.

Este oceano que nos separa, une-nos cada vez mais.


Coisas Tuas

As coisas moveram-se, mudaram de sitio, tu trouxeste-me o vento que faltava. Sabes que nunca estaremos no mesmo lugar, as coisas obrigam-nos a mudar, movidos pelos dias que nos abrem semáforos, como sinais que nos desenham o sentido a percorrer, único, compacto e asfixiante.

As coisas moveram-se, mudaram de sítio, tu trouxeste-me a praia que faltava. Sabes que somos como uma veloz maré, e as praias corpos que percorremos ao longo de anos, até encontrarmos o nosso próprio areal, cheio de coisas que nos pertencem, coisas minhas, coisas tuas.


O homem que falava com o mar

A idade pesada, carregava baldes de vida, canas de pesca, peixe, sal na língua, amor ao mar. O homem queimado pelo sol de todo o ano, sentado no pequeno banco de tecido, refazia a sua alma, anos tantos, junto ao Atlântico, cor da sua calma.

A vida a rastejar ao seu lado, na sua sombra, adormecida como um cão de guarda, silenciosa, perdida na maresia, a naufragar longe, mas nunca no mar, a morrer longe, mas nunca no mar, a acenar escura direito às ruas, direito aos passeios íngremes da doca, direito à terra seca, direito ao quarto vazio, direito à tristeza de quem já não tem ninguém.

Os olhos profundos, claros, transparentes, escondiam tempestades, barcos de medo, vidas por um fio.

O homem falava com o mar, desafiava-o, contava-lhe histórias, soltava lágrimas, voltava a sorrir, acendia um cigarro, e o mar gigante tocava-lhe nos pés descalços, acendia de luz a sombra da sua cana de pesca, alta, esguia, tão perto do céu.

Á noite as estrelas saltavam cadentes, como peixes brilhantes de luz, na linha transparente que os leva, como os olhos profundos, escondendo o anzol afiado, que corta o corpo, na solidão de quem nada tem.

O homem falava com o mar, chamava-lhe senhor, cantava-lhe canções e assobiava, e o mar gigante tocava-lhe nos pés descalços, acendia de luz a sombra dos seus olhos, e o homem, pescador, acordava a sua vida, adormecida como um cão de guarda e voltava menos vazio depois de mais uma maré.


Para ninguém em especial

A cor do sorriso, acordou com o rapaz. Vestiu-se entre a luz da manhã, e saiu porta fora. A avenida carregada de cores, carregada de rostos, vive apertada em carros escuros, coloridos, prateados. Na esplanada, as pessoas perdem tempo, estáticas, presas a tempo nenhum, distantes, estátuas de carne.

O rapaz passa, diz bom dia, Maria retribui com um sorriso, e estende-lhe a revista, à frente um placard luminoso, pisca e corre letras, a temperatura, notícias, publicidade "Não procure mais, está tudo aqui!", depois a frase "As viagens servem para deixarmos todas as coisas para trás".

A passadeira pára o trânsito, a luz corre as paredes altas, e acaba sempre no mesmo sítio. A rapariga loura, espera ansiosa, na paragem do autocarro, mochila às costas, calções curtos, olhar brilhante, está de partida.

O velho sentado no banco de jardim, cumprimenta o rapaz, este pára, aperta-lhe a mão, o velho levanta-se e toca-lhe no ombro. O rapaz segue caminho sem olhar para trás. Uma mulher jovem, elegante, abre a loja, à porta uma placa dourada diz, "Coisas de Mar", lá dentro a única cor é o azul, cá fora só o vento.

Ao longe um quiosque vende postais, o rapaz pára e compra um com vista aérea da cidade, depois volta a procurar outro e escolhe um com uma praia deserta e ao longe o mar. A senhora afirma-lhe o seu bom gosto na escolha, o rapaz levanta um sorriso e atira um olhar distante, " ...de qualquer forma não é para ninguém em especial, é só para saberem de onde eu vim".

Ao longe o ferry-boat espera-o, para leva-lo ao sul continente, a paisagem vermelha, intensa, cor de terra parece chamar pelo seu nome, as coisas ganham novo sentido, deixam de ser o que são, perdem importância.

As pessoas trocam olhares, tornam-se pequenas, rasgam um sorriso, perdem crenças, razões, certezas, e ficam mais leves com tanta coisa para trás.

Nuno Ângelo, Outubro de 2001

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