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Crónicas


Nuno Ângelo: Histórias Portáteis



Se as tuas palavras fossem vento

Não sei se te encontrei, mas pareces-me mais bonita. Os anos passaram, nós ficámos mais presos a nós próprios. Os planos já estavam feitos, Deus trocou-nos as voltas, e olha as voltas que o mundo deu. Antes era eu que fugia na solidão da praia, na solidão da noite, sozinho na minha estranha forma de ser. Agora procuro palavras que me tragam histórias felizes, palavras cheias como o vento que empurra barcos, que empurra o meu corpo vazio de encontro ao teu mundo cheio de tudo o que eu nunca quis ter.

Sim, a solidão transporta-nos sempre a confusão que não quisemos espalhar porque já ninguém sabe ouvir, já ninguém sabe parar, e ouvir o mundo a girar, o corpo a pedir mais do que a vida lhe pode dar, os olhos à procura dos olhos que reflectem aquela luz maior, que nos faz eternos, a luz que nos transporta a vida, e que lentamente escurece nas portas que vamos fechando e que vão ficando para trás até não haver mais nenhuma para abrir.

Sabes que sempre te tratei como a um estranho, mas agora que te vejo, sinto que estás mais bonita, e se as tuas palavras fossem vento eu seria o barco que enche as velas com o teu sopro de vida, e por isso e por tanta coisa mais, junta as tuas pegadas às minhas e vamos caminhar lado a lado, até ao fim da noite, até ao fim da praia, até ao fim da vida, e que as tuas palavras cheias como uma suave brisa, acalmem sempre o meu mar bravio.


Desculpa se não te vi

O homem fuma um cigarro, fuma o tempo, os dias, as horas, e vai mirando tudo à sua volta. O táxi pára e encosta ao passeio, uma mulher lustrosa, inalcançável, entra avenida dentro, brilhante, como uma estrela de Hollywood, podia ser um anjo acabado de chegar da sua longa viagem, mas a distância torna-a demasiado terrena, frágil e insegura, numa confiança que finge ser sua. Um homem vende castanhas, perfumadas, e vai misturando o frio que faz com o sorriso quente das crianças que o rodeiam, e que saboreiam as coisas boas e simples da vida.

As pessoas passam, e desaparecem, ninguém consegue saber para onde vão, nem mesmo elas próprias, mas sabem que se alguém lhes perguntasse qual o sentido a percorrer, teriam prontamente resposta, vão para casa, vão para aqui ou para ali, sem saberem no entanto porque é que quase sempre sentem que ninguém sabe qual o sentido dos dias, da vida, do estar aqui e não ali. Talvez o homem das castanhas que quase ninguém vê, saiba porque é que vende as suas castanhas naquela esquina que cruza tantas ruas, naquela calçada pela qual passam tantas pessoas que ele vê, e que o ignoram como a um mendigo, e que apenas as crianças ainda certas do seu sentido, o trocam pelos jogos de todos os dias e sorriem-lhe como se ele fosse também uma criança que oferece rebuçados, e no olhar tivesse prestes a terminar a sua estadia, e elas na sua ingenuidade soubessem que ele acabará por voar dali para fora, como um anjo que um dia por ali passou.

O homem das castanhas que ninguém vê, tem voltado dia após dia, ao seu canto, e dia após dia sempre à mesma hora passa por mim e cumprimenta-me, como se soubesse que eu sou o único que o vejo. Eu retribuo com um sorriso, porque nunca se sabe se aquele estranho não será um anjo, que sem razão alguma nos veio trazer o sabor da vida, mesmo que esse paladar esteja num simples cartucho de castanhas perfumadas à espera que alguém as leve, e ele possa fechar a mesa articulada, apagar o fogo, acenar um adeus e voltar quando o frio o chamar de novo.


Junta as tuas pegadas às minhas

Sabes que a vida não dura sempre, e tudo é valioso, mesmo aquilo que deixámos para trás. Espero que não te arrependas um dia, de não teres feito aquilo que o teu coração pedia para ser feito.

O tempo não vai morrer, mas nós vamos morrer no tempo. O tempo é valioso, aprendemos com ele que nunca seremos eternos, e que tudo vale simplesmente porque existe, mesmo que no fim não fique nada para deixar.

Convence-te que tudo é passageiro, até as tuas pegadas na minha vida, as tuas pegadas no meu peito, as tuas pegadas no meu corpo, as tuas pegadas no mundo inteiro, mas se quiseres podemos unir as mãos, e prometo que os teus dedos serão ponteiros, com horas, minutos e segundos, e as minhas mãos meses e anos, e o tempo será o que nós quisermos, porque se tudo é velocidade, então junta as tuas pegadas às minhas, e vamos caminhar lentamente, até sermos só amor, até sermos só nós, até sermos só sal, até sermos só vento, até sermos o próprio tempo, e então desapareceremos como as pegadas que deixámos para trás na longa praia das nossas vidas.


Não te esqueças de mim

Caminho pela avenida, na cidade beira-rio, térrea, cheia de barcos e navios, não sei se cheguei para ficar, mas vê como é bela, como é longa, e cheia de luz, esta cidade. Vê como lhe corre a vida nas veias, vê como é feita para sermos felizes, vê como todos apertam as mãos.

Se um homem pode mudar o mundo, o mundo também pode mudar um homem, mas nenhum homem sozinho avança sem uma voz amiga, sem um ombro onde chorar, sem um canto onde esconder as lágrimas quentes, sem uma mulher como porto de abrigo.

Daqui do meu alto, do meu posto de vigia, virado a sul, ainda não te vejo, ainda não te sinto, ainda não sei quem és, mas quando me encontrares, não te esqueças de mim, aponta-me os teus olhos, tal qual sinais de luz, e eu do meu alto, do meu posto de vigia, saberei que és tu, como um barco que entra pelo meu corpo dentro, e quem sabe poderemos então navegar juntos pelas belas ruas desta cidade beira-rio, e talvez recuperar todo o tempo em que perdidos ao vento perseguíamos o sinal, o sinal que nos aponta o caminho, o caminho que nos une, dia após dia, lentamente, sem suspeitarmos sequer que a hora vem de encontro a nós, ultrapassando luas, estações, chuvas, dias e noites, porque quando chegar o minuto final, os teus olhos encontrarão os meus, a tua luz será a minha luz, os meus lábios serão os teus, o teu corpo preso ao meu, as tuas palavras a levitarem ao vento a subirem cada vez mais alto, muito para lá das nuvens, muito para lá do céu, ficarão guardadas no silêncio do sinal cadente que nos uniu, e depois mão na mão seguiremos por entre a multidão, até encontrarmos o outdoor na praça com a frase "Não te esqueças de mim", e o estrangeiro encostado à igreja com ar de quem deu a volta ao mundo com o seu estranho instrumento de cordas, misturando sons e palavras, como se por vontade própria pudesse mudar todo um mundo, de uma vez só.

Nuno Ângelo, Novembro de 2001

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