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Crónicas


Nuno Ângelo: Histórias Portáteis



Desapareces-me

A luz voltou. Virei-te de costas para não te ver acordar, para não te ver depois do voo, depois da viagem, depois de teres desaparecido durante a noite.

Entro pelo teu corpo dentro, como um estranho que nos persegue com o olhar, e desapareço no azul, com um lençol branco como tecto, que nos deixa ver o infinito, e depois tu, e depois eu, e depois ninguém, às voltas um no outro, com uma cama fria, tal oceano gigante e tu navio e eu navio, e dentro de ti, eu, e dentro de nós ninguém, só o universo vazio, só o mar e milhas de distância, que percorremos dia a dia, noite a noite, eu a tua lua, tu o meu sol, eu uma ilha, tu sereia, bela, mergulhas-me na tua luz e desapareces-me, e desapareces-te, e depois eu e depois tu, lá fora ao vento, acima do mar, acima do tempo, para lá das nuvens, do universo, pelo teu corpo dentro, e dentro de ti apenas eu, e dentro de nós ninguém.

Sentido

Talvez o que procuras não esteja nos teus bolsos, nem no teu horizonte. Talvez o que tu procuras não se encontre. Pára, ouve o som que Deus faz quando nos quer tocar, é como o mar na areia, é como o vento nos cabelos, é como se de repente fossemos o próprio horizonte, e ao longe os nossos olhos fixos deitassem fogo, o fogo de quem ama a vida, de quem move o mundo, de quem foge ao tempo, de quem transporta o sonho gigante que não morre nunca.

O sentido? Eu rumo a Sul, é o meu sentido, gosto do Sul, não sei porquê, é a minha bússola natural a funcionar, não me perguntes porquê, não te respondo.

Vem comigo, segue-me e vamos atravessar a Avenida Luísa Todi, plana, dama amada pelo seu eterno Sado. Segue-me, não pares, vamos dançar na estrada fina e incontornável da serena Arrábida que nos leva à Figueirinha, ao paraíso, ao Portinho, recanto sublime, e depois diz-me, responde-me, encontraste o sentido, encontraste a vida, a eternidade?

Se nada faz sentido, então repete o caminho, outra vez, e outra e mais outra, até chegar o dia em que Deus vai querer tocar-te, quando os teus olhos fixos brilharem de fogo o sonho gigante que não morre nunca.

Quando os Pixies cantam

Andava à tua procura, mas nunca te encontrei, estamos acorrentados, o rio juntou-nos, ou terá sido apenas a hora e o tempo que se encontraram e agora rodeiam-nos como uma multidão que nos persegue e nos comprime, e sem nos podermos tocar vamos dançando no perfume misterioso que tu trazes vestido?

Não sei, respondes, talvez a única coisa que nos resta é encararmos os dias como se não nos conhecêssemos e deixar tudo como está, enfeitiçado.

“Hey, been trying to meet you, must be a devil between us, or whores in my head, whores at my door, whores in my bed, but hey, where have you been.”

Sabes que alguém goza connosco, e se tudo estava combinado, então poderás cantar “there is a wait so long, you’ll never wait so long, here comes your man”, porque os Pixies morreram mas os anjos ainda cantam melodias que não saem do ouvido e se tudo está previsto então sabes que vamos acabar juntos, porque as coincidências são puzzles escondidos, que só Deus sabe.

Encontraste-me

Sabes que sim, que a vida não dura sempre, mas também sabes que quando um homem sonha a vida não tem fim. Sabes que não, que não procurei nada, lutei sempre por tudo, porque ninguém encontra aquilo que procura, é encontrado.

Não chames coincidência, quando não sabes explicar aquilo que tem explicação, é que tudo segue uma ordem desordenada. Parece-me estranho, quando dizes que de tanto procurar encontraste, não devias antes chamar-lhe linhas trocadas que se cruzam?

E agora? O dia de amanhã vai ser de sol, o mar está bom para velejar, a tua mão está entrelaçada no meu corpo, os teus olhos salgados e límpidos, os meus de terra e fogo, esperam pelo que vem a seguir, e a seguir ninguém sabe, mas vamos deixar que o azul nos encontre e que a vida seja longa, eu terra e chão, tu céu e mar, e que para o fim Deus nos possa levar tal qual nos encontrou.

Nuno Ângelo, Fevereiro de 2002

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