Letras & Letras

Crónicas


Nuno Ângelo: Histórias Portáteis



Este vento que nos conduz

Sentei-me. Esplanada semi - coberta de sol, um cigarro, tenho ar de mistério, um estranho, olhar no horizonte, procuro as formas belas do que será o amanhã, este vento rodeia-me todos os dias, nem parece Verão, o clima mudou, as pessoas mudaram, não conheço ninguém, bebo um café, a velhota fixou o olhar em mim, deve pensar que sou alguém importante.

Lembro-me de um dia termos adivinhado os novos tempos, e tu dizias que o amor engana-nos com palavras dóceis, as pessoas não querem ninguém, estamos sozinhos e ninguém nos pode salvar. Comunicar? Amanhã por imagens, cada um no seu mundo, não me beijes, a carne está envenenada, não estou contigo, não tenho tempo, o trabalho, sabes como é, para a semana mando-te uma série de imagens, colocas no teu aparelho de sono e depois podes-me tocar enquanto dormes, é que sabes que a distância já não existe. Não fiques triste logo à noite estou contigo, podes contar-me como foi a tua semana, o aparelho é fiel, muito real, mete-o nos ouvidos, entra-te pelo sono, pelo sonho, e depois lá estou eu com um sorriso lindo, bem vestido, até podes sentir o meu perfume, e ouvir a minha voz, e sentir a minha mão quente, com calor, e os meus lábios num beijo como aqueles que se davam antigamente.

Depois de manhã envia-me o teu mundo para o meu aparelho prometo que à noite estou contigo.

Os filhos? Eles estão bem têm viajado pelo mundo naquelas cápsulas que os colocam em toda a parte, pode ser que depois de amanhã tenha tempo e tire dois dias para estar contigo, o meu medo é se me perco, é que estas cápsulas ainda não são muito rigorosas.

Já não durmo há uns dias, ainda bem que descobriram aquela substância, sabes que muita gente já não passa sem aquilo, vivem dia e noite eternamente acordados.

Comprei um daqueles pacotes de férias virtuais, praias de areia fina e mar azul, como se isto hoje em dia fosse possível, depois mando-te, espero que gostes, é um luxo, até se sente o vento e o cheiro do mar, consegues imaginar a sensação do vento a bater-nos na cara?

Segui caminho, Sul, azul fino, cordão cinzento escuro que rasga campos de verde recortados. Voltei costas, mas ainda acredito em alguém, alguém que me vai tocar no ombro e quando voltar para ver quem és apenas uma luz enorme na minha direcção.

Depois sem soltar uma única palavra, saberei que és tu, ao meu lado, sul solidão ao sabor da eternidade, porque o amor morreu, a verdade é sombra que não se vê, mas tu ainda sem forma ainda sem rosto, sopras o vento que navega no meu coração e depois mão na mão, passo a passo, ao longe muito ao longe, a tua luz a rasgar o nosso eterno chão.

É bom acreditar que depois de tanto procurar na distância, ainda continuo a sorrir, e a acreditar, que existe sempre algo que ainda viaja ao nosso encontro, por muito tempo que essa viagem demore.

Sabes que vim para Sul, mediterrâneo suave, terra passageira e gente de passagem, mas aqui estou e aqui espero um sinal, uma luz que abra caminho nesse grande mar, e traga-me o sonho que me conduz, e de braços abertos, descobrir afinal que navegávamos à tanto tempo no mesmo oceano, e a luz sumida a milhas de distância, que por vezes senti desaparecer, que por vezes deixei de acreditar, é o teu sinal de farol que viaja desde sempre ao meu encontro.

A solidão deitou-se ao meu lado, as ruas cheias de gente não me aquecem o olhar, vejo sonhos, vejo sorrisos que nascem e morrem, casais em silêncio, crianças impacientes, mulheres sozinhas, tanta vida junta, tantas cores, tantos rostos escondendo palavras, vejo folhas ao vento levadas pela sorte, vejo silhuetas perto do mar à espera de algo, como anjos presos a um Deus, que não encontram resposta, solução, e deixam-se levar ao sabor das marés ao sabor de todos os ventos, à procura das palavras que lhes abram os dias, dias com mais luz, dias maiores, dias com sabor a eternidade, dias mais felizes.

Não sei se a solidão é só para uns, mas sinto palavras nos rostos que passam, palavras que acabariam com tanta solidão, palavras fortes como uma brisa que explode na alma, como uma luz que acende a noite e entra pelo mar adentro, pelo corpo, e olhar o olhar que transporta a alma até conseguir ler histórias nos lábios, no olhar, no rosto inteiro.

Desculpa se fixo o olhar no teu rosto, mas é como se tu falasses comigo, mesmo sem voz, mesmo sem gestos, apenas com o teu silêncio, um silêncio que deixa qualquer um preso, como uma silhueta perdida que escuta as palavras no rosto velho e bravio do misterioso mar.

Desculpa se fixo o olhar no teu rosto, mas é como se tu falasses comigo, e as palavras que tu dizes, viessem uma a uma apagar toda a minha solidão.

Segue-me, vem atrás, não percas o meu traço, a linha que deixo marcada na areia, e se quiseres podes chamar o meu nome, e quem sabe percorrermos aquela praia, o mundo inteiro à procura da felicidade, à procura de tudo o que a vida sozinha não nos pode dar.

Lê-me um poema, uma história portátil, uma linha que seja, qualquer coisa, desde que seja sentida, desde que venha do fundo da alma, desde que nos faça especiais, quem sabe sublimes.

Vem comigo, vamos procurar o vento que nos conduz, como veleiros brancos rompendo a espuma, rompendo tempestades,  e prometo que se não voltarmos, sentamo-nos na praia das nossas vidas, num quente entardecer e com palavras do fundo da alma, eu de pé e tu vestida com um  sorriso sublime, apenas e só, sentindo o vento leve e suave a nosso favor.

Nuno Ângelo, Junho de 2002

Voltar à página inicial de Histórias Portáteis

Colaboradores | Coordenação | Contactos | © 1997-2015 Letras & Letras