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Crónicas


Nuno Ângelo: Sofás de Praia



"Traveling Light"

A cidade centro dourada ficou para trás, o Arade desapareceu na vazante, a Rocha é salpicada por casais e grupos que envergam os rostos mais belos que já vi, esculpidos com sal, areia e rio, de encontro à avenida beira mar, de encontro à meia luz, de encontro ao assobio ligeiro que nasce no vento e morre ali.

Deslizamos pela estrada, rumo a Sagres, praia da Luz, Burgau, Salema, até que à nossa frente uma luz dourada rasgava o céu gelado, escuro, picotado de pequenas estrelas, lentamente sem asas nem luzes intermitentes, uma bola de fogo com um rasto enorme e outra pequena bola de fogo a antecipar outra cauda luminosa, até terminar na escuridão total.

Paramos o carro, a estrada vazia brilhava negra de tanta humidade, o silêncio era a nossa respiração, procuramos aquela luz viajante na noite, nas pinturas das constelações, no reflexo lunar, mas ficou apenas uma luz passageira numa mão cheia de segundos e uma pilha de questões nas nossas cabeças.

Seguimos caminho rumo a Sagres, passamos a praça e descemos à praia da Mareta, o mar estava vivo. As ondas rasgavam a noite, e as carrinhas dos viajantes cheias de pranchas deixavam sair uma luz ténue, dourada, que podia sair e correr pela noite, sem que ninguém desse por isso.

Deixamos a noite fria, e entramos em busca de uma mesa, o bar de água salgada registado, estava cheio de grupos separados que viajavam nas conversas e nas histórias de cada um e de todos, e cada um, chegada a sua vez de falar, puxava pela voz alta e empolgado chamava os olhos e a atenção para si, como se os rostos à sua volta fossem a noite longa e a sua história uma enorme bola de fogo, que chegava a todos como uma luz que viaja.

Saímos tarde, a noite escurecia a vila de Sagres, os últimos rostos estavam calados e procuravam o caminho de casa, dei comigo a admirar o movimento dos que me rodeavam, a rapariga morena sensual em tiques rápidos a sacudir o longo cabelo das costas, enquanto ao lado um individuo muito bem vestido de olhar vago, lançava o fumo do cigarro direito à luz que escorregava do candeeiro e adormecia no braço da rapariga do bar que fixava o olhar num brinco em forma de argola que pendia da orelha de uma rapariga muito loura e de pele dourada, escondida num blusão branco, que sentada ao lado da janela observava o reflexo da lua no seu anel dourado, e ela longa e elegante fosse luz e cauda pela noite dentro.

Deixei as vozes para trás, enquanto a última toada da noite ecoava porta fora, e à medida que percorria a estrada principal, ia perdendo a voz e a melodia ténue de uns "Tindersticks" que bocejavam "you are a traveling light, you say you can’t justify why you are a traveling light..." até ouvir só os meus passos na calçada, e surgirem uma pilha de questões e interrogações que justificassem a origem daquela luz em chamas com uma cauda gigante, que em voo baixo, rasgava e iluminava a noite num silêncio absoluto.

Nuno Ângelo, 2006

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