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Crónicas


Nuno Ângelo: Sofás de Praia



La playa y lo piano de Constanza

A casa estava pronta. Constanza tinha deixado a sua terra San Sebastian, no seu veleiro rumo a Sagres, para trás um gabinete de arquitectura, uma relação de anos esgotada e terminada de um dia para o outro, uma solidão enorme, gigante, que entra pelo corpo e leva-nos pela mão quando já nada há a perder, e nas suas diversas viagens tinha decidido definitivamente que aquela praia seria a sua última paragem.

Hoje quando chego ao Martinhal, e vejo harmoniosa a casa dourada no cimo do monte de largas janelas virada para a baía, vejo a força de um sonho tornado realidade. Hoje quando chego à baía do Martinhal, vejo uma pequena ilha encantada, uma rocha onde à noite as sereias embalam a costa com cânticos que o vento forte quase apaga e que chegam lá acima, depois do monte, depois do enorme portão de ferro, depois da entrada de pedra, depois da piscina iluminada, depois das escadas de inox que nos levam à sala de largas janelas sem paredes, depois de uma luz ténue, depois de uma voz rouca, por entre um piano e um copo vazio, Constanza na sua praia, na sua solidão, depois das lágrimas, depois do fumo, depois de estender a mão, um sorriso aberto, cheio como a vela grande do seu barco “Rosa”.

Constanza, poderia ter servido de musa para Black Francis e seus pares, morena de olhos grandes e castanhos, esguia, cabelo preto apanhado, preso à altura da nuca, largas argolas prateadas, nome romântico, mulher de amarras e Atlântico, estranha, distante e misteriosa, coração impenetrável, culta, nómada. Ria-se de mim sempre que a comparava às canções que gostávamos desde sempre e depois tocava ao piano Winterlong, até as lágrimas misturarem-se com o blanco y negro das teclas, até a voz desaparecer no choro da solidão, até os dedos lentamente e sem forças trazerem de novo o silêncio da praia, até as imagens da sua terra serem só o Martinhal e acender-se um sorriso outra vez como um arco íris por entre lágrimas e luz.

O veleiro tinha sido vendido, tinha sido a sua última viagem ao leme de “Rosa”, era a única forma de não deixar o Martinhal, onde sempre que o vento estava de feição misturava-se às velas coloridas de Windsurf que dão vida à larga baía aos fins de semana e durante os largos meses de Verão, para quem sabe, talvez procurar no sabor do vento resposta à sua solidão, à sua distância ao seu encontro com a vida.

Voltei tempos mais tarde, a casa estava diferente, agora havia duas divisões adaptadas a servir um gabinete de arquitectura, com estiradores e material de toda a espécie entre projectos, linhas e cálculos. A luz vermelha entrava pela sala de janelas largas, tendo Sagres como horizonte, havia vozes junto à piscina que declamavam poesia e batiam palmas, copos vazios, fatos escuros, argolas largas e prateadas, um piano de fundo e Constanza de vestido preto, cabelo preto apanhado à altura da nuca, olhos grandes castanhos, brilhantes como a baía, largos como a praia, agora sem lágrimas, agora sem medo, atrás dos dedos que lentamente percorriam o piano, como silhuetas nas dunas, corpos na praia, atrás das letras que percorrem o teu nome, atrás da luz discreta que trouxeste contigo.

Sentei-me nas escadas, perseguiste-me com o olhar e um sorriso envergonhado, o cântico das sereias da ilha encantada misturavam-se com o piano, enquanto a luz vermelha acendia de vida este lugar sem passado nenhum.

Nuno Ângelo, 2006

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