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Crónicas


Nuno Ângelo: Sofás de Praia



Índios

O mar está gigante. A tarde arrasta-se, por entre as silhuetas que passeiam junto à baía, por entre o pedalar lento das bicicletas coloridas que correm ao lado do vento, mas não o conseguem apanhar, a abrir caminho para chegar e levantar no ar o papagaio que teima em não voar, e soltar os cabelos da rapariga que corre atrás das gaivotas, enquanto um grupo de viajantes vai ensaiando o número que os faz passear pela Europa, actuando a troco de quase nada pelas praças e passeios das cidades Mediterrânicas que todos os anos os vê passar, de mochilas às costas, alguns descalços, rostos queimados e cabelos longos decorados a missangas e tranças, de roupas largas e claras, cigarros de enrolar, djanbés e violas, uma rapariga com truques de dança e fogo, e dois cães que aproveitam a boleia e não deixam de acompanhar a tribo.

As carrinhas voltaram de novo, e cada dia que passa crescem em número, misturam-se velhos reformados ingleses e holandeses, hippies com paisagens paradisíacas nas portas e bicicletas presas por cordas no tejadilho, surfistas solitários e outros em grupo divididos por várias carrinhas, windsurfistas à procura do melhor vento, aventureiros introspectivos, distantes e silenciosos, grupos de mergulhadores, casais jovens e famílias inteiras, misturam-se naquele canto, naquela meia lua de mar e areia, naquela parte da terra que podia ser céu, a que chamaram Meia-Praia.

Os pescadores encostam-se à entrada do rio, curvados nas rochas com pequenas canas, a ver os veleiros que chegam e os que partem, à espera do pequeno peixe, à espera da pequena felicidade, à espera que a vida não os deixe.

Na praia dezenas de silhuetas passeiam ao longo da baía, larga e branca, juntam-se papagaios no ar, a tribo de surfistas invade as ondas que entram perfeitas do molhe até ao meio da praia, os hippies fumam e voam nas bicicletas ferrugentas e ruidosas, os ingleses e holandeses jogam à bola em competição acesa, os mergulhadores esperam que o mar acalme, os windsurfistas que o vento mude, um solitário escondido na sua carrinha aponta a máquina fotográfica a tudo o que se mexe e ao lado alguém canta e

toca baixinho numa velha viola cheia de autocolantes uma melodia que reconheço: “In a place they say is dead, in a lake that’s like an ocean, I count about a billion heads, all the time there’s a motion, …can´t you see a life so sublime, palace of the brine”, sigo sem parar e no horizonte um enorme palácio a cair para o mar, cor de areia, imponente e com aspecto cuidado mas sem sinais de vida, a Casa do Pinhão ou Palace of the Brine?

A tarde desaparece no horizonte, as silhuetas voltam às suas carrinhas, o silêncio é interrompido pelas gaivotas que voam em direcção à cidade, o vento parou, a baía adormece sem ondas, a lua não se vê, a noite traz mais movimento, solitários por convicção, casais apaixonados, hippies perdidos no tempo, surfistas aventureiros, músicos nostálgicos, fotógrafos deprimidos, nómadas sem volta, freaks de toda a espécie, amantes do vento, simples viajantes, seguem sem hora nem dia marcado, até ao mesmo sítio de sempre, e em grupo, à procura de um sinal de vida, índios da Meia-Praia.

Nuno Ângelo, 2006

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