Letras & Letras

Crónicas


Nuno Ângelo: Sofás de Praia



Ingrina ou a praia dos anjos

Acenou um adeus largo e voltou costas, percorreu a estrada sinuosa rente à costa rumo a sul, informou em palavras de néon, que voltaria para o ano, a fazer-me lembrar “Next Year – Foo Fighter’s”, com a desculpa de quem procura novas paisagens para as suas fotografias.

De vez em quando enviava-me as melhores sessões das suas praias favoritas, a pitoresca Arrifana, com as suas casas de pescadores debruçadas sobre a baía protegida por rochedos altos, lugar de peregrinação da comunidade surfista, a larga e já famosa praia do Amado, a redonda Mareta, a reservada praia do Martinhal assolada por vento forte e norte, ou a isolada e misteriosa Boca do Rio, até à paradisíaca Cabanas Velhas que nem sequer vem nos mapas, lugares salgados onde ela gostava de estar e trabalhar.

Passou algum tempo até eu voltar a ter um sinal, uma mensagem de Carol, rapariga solitária, obcecada pelo trabalho, perfeccionista, apaixonada pela fotografia, viajante, sempre de roupas claras e chinelos, Loyd Cole como companhia musical, e à procura da imagem certa. Depois das cidades, depois dos rostos, depois do deserto, era agora a vez das praias, espaço onde ela se sentia particularmente feliz, até que chegou um sinal, e eu fui atrás, à procura de Ingrina, feminilidade sensual quanto baste para quem estava habituado a percorrer a costa densa algarvia que começa na Luz e termina em Sagres e continua até onde a sorte nos levar, e atraído pelo carisma do Zavial passava sempre para outras alturas uma visita à Ingrina, mas nessa tarde longa onde o tempo parece planar nas asas das gaivotas, segui o dedo indicador metálico que me apontava a direcção a tomar como se dali para a frente fosse entrada sem saída.

O caminho parece interminável, estreito, segue-se no meio do verde sempre à procura de sinais de casario branco, mas nada, monumentos megalíticos de um lado e do outro e depois sim uma quinta para turistas ingleses, algumas casas e duas caravanas abandonadas adormecem enferrujadas à sombra de seis palmeiras largas e lustrosas. O mar vê-se ao longe, azul escuro profundo vestido de Atlântico, a estrada quase desaparece, é um fio de alcatrão sumido para apenas um carro, a vegetação é verde densa com cheiro a esteva, esse perfume de flor branca a abrir o paraíso.

 

Cheguei e vi Carol ao fundo a acenar-me em gestos longos, frente a um portão que abria alas a uma casa de praia, baptizada com esse mesmo nome, frente à pequena baía rochosa e de curto e branco areal, Ingrina.

A casa pequena, rodeada por um terreno enorme com algumas árvores tinha sido adquirida a um casal inglês, no interior as cores eram o amarelo o azul o laranja, as paredes seguravam fotografias, praias no sol de Inverno, rostos simples, cidades gigantes, o silêncio do espaço deserto. Havia também fotografias de pessoas de braços abertos, velhos e novos, normalmente no ultimo traço de luz do dia, outras noite escura, quase todos vestidos de branco da cabeça aos pés, e reconheci Ingrina, ali mesmo à minha frente depois das largas janelas da sala, depois do verde jardim, depois da flor branca que perfuma o ar, a casa, a praia.

Ouvi a explicação, sem saber bem o que dizer, bebi o café cheio, a musica rompia a respiração suavemente, o fumo do cigarro dançava na luz da tarde, a luz que traz a noite, a noite que adormece na praia, branca, feminina, e que é baía e lugar de pessoas que às vezes à noite, e desde sempre reúnem-se de branco, e contam histórias à volta de uma fogueira entre gritos e gestos espontâneos, à volta de uma praia, à volta de uma baía, sem saberem que através de uma fotografia, não são ingleses ou portugueses, não são novos ou velhos, são brancos como a flor esteva, brancos como a areia de Ingrina, brancos como a espuma que grita nas ondas e que rompe a rocha fria e impenetrável.

Carol pegou na máquina fotográfica e colocou dois rolos no bolso do casaco, a música agora mais alta era “The Happening – Pixies”, lá fora o vento entrava pela casa de praia, ouviam-se os primeiros gritos vindos da pequena baía, os anjos esperavam-nos.

Nuno Ângelo, 2006

Voltar à página inicial de Sofás de Praia

Colaboradores | Coordenação | Contactos | © 1997-2015 Letras & Letras