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Crónicas


Nuno Ângelo: Sofás de Praia



A praia dos cães

O cão corre pela praia, solto, a língua cansada tomba e pinga de sede, no trilho da falésia descem um a um 6,7, conto 10 outros cães, uns pequenos, outros maiores, um com focinho rufia, outro com pelo brilhante cor de fogo, alto e majestoso, descem e ladram ao vento que sopra forte, correm pela praia em forma de baía, pequena, deserta, perfeita, praia das Furnas.

Deitam-se frente ao mar, frente ao resto da espuma das ondas, que vão deslizando suaves, transparentes na areia branca, sento-me ao lado, fitam-me, cheiram-me, o preto levanta-se e chega perto para trocar cumprimentos, trocam olhares e voltam as atenções para o mar, já me conhecem e deixam-me estar ali sentado, lado a lado, num final de tarde ainda com o sol na metade da praia, aos poucos a desaparecer para lá da falésia, para lá do Zavial, para lá de Sagres. Deixam-me estar na sua privacidade, deixam-me entrar nos segredos da matilha, no que os faz tantas vezes dirigirem-se a esta praia escondida, como um refúgio, como um descanso, e uma sensação que só aquele lugar transmite, a sensação de que a vida é valiosa, simples, única e frágil.

Conta-se que há muito tempo na praia depois da falésia depois dos trilhos e da terra vermelha, depois do vento norte que corta os ossos, na praia vizinha Zavial, um tal rapaz vivia e fazia-se acompanhar sempre com uma enorme matilha de cães, desde rafeiros, a cães de raça, abandonados, acompanhavam-no para onde quer que fosse, e nos dias de mar e de ondas, os cães deitavam-se na linha que separa o ultimo traço de água com a areia seca e ali ficavam, dezenas de cães com os olhos postos nas ondas gigantescas dessa praia, enquanto Zé deslizava, impávido e sereno, bestas de água e força, capazes de derrotar qualquer mortal. Era um surfista solitário, que se juntava a dezenas de cães também eles solitários, e assim se passaram anos e o Zé e os cães eram imagem típica da praia, até que um dia Zé desapareceu, dizem que foi para o Porto, uns dizem que enlouqueceu, outros que sofria de esquizofrenia, até que morreu como uma sombra nas ruas dessa cidade.

 

A praia do Zavial, tornou-se hoje numa praia famosa principalmente pelas boas ondas que oferece, e é local de paragem obrigatório para quem procura ondas entre Lagos e Sagres.

Diz-se que alguns dos cães que calcorrearam estes trilhos, estas falésias, estas praias com o Zé já morreram, mas ainda se encontram alguns desses primeiros, basta olhar e vê-los velhos, sem movimento, sérios. Entretanto ao longo dos anos outros foram-se juntando à matilha, novos e menos novos e que foram crescendo. Agora olho-os a todos e vejo que se protegem uns aos outros, têm regras, têm hierarquias, percebe-se pelas posições e posturas de cada um.

As ondas continuam a entrar pela baía das Furnas, os cães ladram e uivam à medida que a luz nos vai deixando, e os cães, estes cães, fitam o mar como se em cada surfista estivesse o seu dono, como se ainda sofressem o seu dono, e eu sentado no meio deles à espera também de um sinal, de um recomeço, de um tempo novo.

De vez em quando encontro-os, deitados nas praias da Ingrina, do Zavial, das Furnas, de língua de fora, nariz húmido, olhar semicerrado, lambendo os cheiros, os dias e as noites, vivendo o momento, lambendo a vida e o vento que passa, da melhor forma possível, de nariz para o mar.

Nuno Ângelo, 2006

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