Letras & Letras

Crónicas


Nueiba: Histórias Rudimentares



Aqui vai Açores, olhando para ti

Para a mítica Cidastrite, Nueiba, onde cresci, veio morar uma família açoriana. Habituei-me desde cedo ao sotaque afrancesado micaelense, numa altura em que o francês, bien sûr, era ainda a língua estrangeira preferida pela classe dominante. Não fora, contudo, a afinação dos dotes de ouvido, apurada na boa vizinhança, que serviu para encurtar a distância entre o mar e as serras, ou dito de forma menos metafórica, entre ilhéus e continentais. É que na fábrica onde bati recruta, no preciso dia em que fiz 16 anos, não era costume, nessa altura, os dois grupos regionais almoçarem juntos pelas dificuldades, imaginem, que tinham em fazer-se entender.

Para dizer a verdade, a promoção de uma ponte entre as diferenças linguísticas, era tudo menos solidariedade, já que tinha por motivo estar perto de Alice, uma rabo-peixense, a quem a natureza andou por ali a distribuir simetrias capazes de seduzir qualquer coração. Ademais era um dever patriótico fazer guerra santa aos másculos italianos, que em cada almoço ficam mais perto daquelas curvas estonteantes e daquela verdura das lagoas no olhar, que tinham feito da Alice a Rainha do Império na Festa do Espírito Santo. Como se isso fosse pouco sensual, ela colocava, ao falar, os lábios em círculo, parecendo soltar beijos mais ardentes que a lava do vulcão dos Capelinhos. Mas que um dia, ante os meus avanços já mal dissimulados, a matriarca da família, a quem todos davam parabéns pela obra, me deixou a auto estima de rastos, o coração à beira de um baque e a esperança presa por um fio, atirando-me com um "Um Montanheiro nunca chegará para uma Rainha" e fez desaparecer, pouco após a puberdade, o ícone açórico, como o sol desaparece no nevoeiro do Pico, nos braços do Rei do Império Dunkin’ Donuts, que lhe tinha jurado prosperidade forever, e um estatuto de rainha, enganando assim a alquimia química, a exemplo das coisas reais, como acontece na realeza. Ah! Mònim dum corisco! como diria o Onésimo. Naquela altura pensei que o mundo iria desabar.

O tio da Alice, o Ismael, um antigo lobo do mar, a quem a vida árdua de baleeiro moldara um carácter firme, quando soube da situação, não poupou a irmã. " Prostituição legalizada. Fere o olhar ver aquela Maravilha nos braços de um Picaroto mal-amanhado!", adjetivos açorianos, presumo, para qualificar as assimetrias físicas do tubarão da nota picoense. Eu ainda pouco familiarizando com as alcunhas regionais que eles se chamavam depreciativamente uns aos outros, já tinha ouvido Corisco mal-amanhado, mas nunca Picaroto. O Ismael explicou: "Picarotos os do Pico, Coriscos os de S. Miguel, Cagarros os de Santa Maria, Rabos tortos os da Terceira, Madraços os do Faial, Lapujos os das Flores...".

Depois que a Alice sumiu, o enfoque das conversas incidiu sobre as outras maravilhas. Era então costume entre ilhéus, cada um fazer alarde da beleza da sua ilha natal, tanto que só agora pude confirmar, que afinal, não estavam a apregoar amores de mãe coruja. As asseverações estavam mesmo aquém da realidade. É que de alguns tempos para cá, apareceram por aí rumores de que nem o mònim conseguira substituir o íman do fogo e da paixão. Parecia que finalmente Ganesha, o deus hindu da sorte, fazia uma das suas raras aparições. A notícia mexeu comigo e de que maneira. A pretexto de obter informação sobre uma viagem pelos Açores, coisa que sempre quis fazer mas nunca tivera tempo, fiz a primeira abordagem. Recebi em troca um cartão de aniversário, enviado das Ilhas das Maravilhas, em que Alice confirmava ter arranjado coragem para pedir o divórcio. Como quem não quer a coisa e a montanha do Pico persiste em não ir a Maomé, programei uma incursão pelo arquipélago. Ia dar uma olhadela pelas Maravilhas antes de apresentar-me à Alice, a verdadeira cereja no topo do bolo.

Comecei pela Ilha Terceira, nome a condizer com a ordem cronológica como os Portugueses descobriram arquipélago. E digo descobriram porque à tese de que tinham sido eles os primeiros a chegar aos Açores e a batizá-los com nome dessa ave, da família dos falcões, confundindo-a com os milhafres que ainda embelezam os céus do arquipélago, e da propalada lenda da Atlântida, apresentaram-me agora outra alternativa. Que o famigerado topónimo provém afinal de azzurra, azul em italiano – sempre os adversários dos namoricos e do futebol a tentarem bater a concorrência – vocábulo que os genoveses teriam retirado da cor dos céus e do mar para batizar originalmente as ilhas. Uma teoria tão interessante como qualquer outra.

Da Alcatra aos Caveira e Ossos

Aterrei na Base das Lajes, com escala em S. Miguel, perto da Praia da Vitória. Os aeroportos do arquipélago são modernos, limpos, e organizados, em época baixa de turismo, sem apertos, frequentados quase exclusivamente por equipas desportivas, que competem nos diversos campeonatos, quer entre ilhas, quer entre o arquipélago e o continente. As estradas estão em boas condições, mas tenho que adaptar-me a um estilo de vida mais pausado, próprio destas paragens, o que não impede as pessoas, que sabem receber como poucos, de serem disciplinadas e pontuais. Respondem ao meu Boa tarde com um cadenciado Boooaa taaarde. Uma volta pelo perímetro do complexo americano – não me é permitido entrar lá dentro – o bairro mais moderno da ilha sem deixar de estar enquadrado no plano paisagístico.

Deixo as malas no hotel e continuo. Vejo-me rodeado por uma beleza natural única, que traz à memória as conversas da fábrica pós- Alice. Hortênsias e azálias, por tudo quanto é berma, vergam-se à minha passagem, como se quisessem dar-me as boas vindas. A verdura dos bosques de criptomérias, o verde acinzentado dos metrosíderos e a simetria perfeita das araucárias compõem uma paisagem tão exótica que parece irreal, talvez a explicação pela paz de alma quotidiana: com este cenário majestoso, que deixará lembranças para uma vida, também não faria sentido uma vida mais acelerada.

As bonitas igrejas proliferam pela ilha. Gente devota, vai encontrando esperança na religiosidade, alívio possível ante o sofrimento das catástrofes naturais: sismos, vulcões, tremores de terra. Venera-se o Espírito Santo e até lhe arranjaram um rival à altura, o Santo Cristo. O Monte Brasil, o meu primeiro miradouro, proporciona-me uma panorâmica impressionante sobre Angra do Heroísmo. Como refeição do meio-dia opto pela famosa, e com razão, aconselhada alcatra, o prato típico da região. Enquanto comia, o dono do restaurante, homem com cara séria mas bom conversador, tinha ainda patente na memória o valor comercial que a Cimeira da Guerra do Iraque tivera na ilha, tema aliás badalado nos bancos dos parques "sabe, aqui apreciamos muito a América e tudo que é americano". Queria saber mais sobre o nativo mais famoso de Nueiba e o porquê de ter escolhido a Terceira para selar o seu destino na famigerada procura das armas de destruição maciça, enquanto ele me ia simultaneamente elucidando sobre a apregoada alcatra.

Que antigamente os senhorios comiam a melhor parte do animal, deixando para os peões as partes menos nobres ou seja a caveira e os ossos. "Como as coisas mudam" pensei cá para mim. "Agora a parte nobre é para mim e os Skull and Bones é para la crème de la crème"a elite privilegiada.

Contei-lhe que depois que o George acabou os estudos, só o tinha visto mais uma vez, na graduação da filha, Barbara, que nem ele, como é óbvio, se misturava com peões como eu, que esperaram o dia em que a idade permitira, o décimo sexto aniversário, para bater recruta na força de trabalho, à peça, no Pacabuco chapo, fábrica de carteiras – que jeito tinha dado aquela esgrima de braços na perninha de atador-adjunto nas segadas do último verão em Portugal- razão pela qual em vez de New Haven pronunciava um foneticamente desafinado Nueiba, à transmontana, self-made, trocando o v pelo b, nada de h aspirado nem terminações em n, simplificado numa só palavra. "Nunca se pode negar as raízes!" Se nomear uma equipa de futebol Vasco da Gama dignifica um herói nacional e nos faz ganhar respeito ante outras etnias, fundar um clube com o nome de Flavia, assim grafado internacionalmente sem acento, é purificar-se nas caldas da transmontanidade, permitir que o plebeu do chapo e da constrocha deia um banho de bola no Imperador. Mas a obscura forma fonética de Nueiba só viria a ter alguns contornos visíveis quando passou a ser nome de guerra no meio futebolístico. E enquanto eu falava embalado, ele parecia espantado ouvindo sem pestanejar.

Que o George não era mau rapaz, não senhor, deviam ter sido os discípulos do ReiGun pum... pum... pum... do tempo do Death Valley Days que lhe fizeram a folha, passando ele a dividir a sociedade americana como os muros de pedra dividem as lindas pastagens da ilha mais plana das quatro que vou visitar. Que o George estava no polo oposto do meu círculo desportivo. Lembro-me de o ver caminhar em direção ao campo de baseball de Yale, sempre com uma lata Colt 45 na mão, contando as mais divertidas piadas, que dariam um jeitão em stand comedy, como era a sua vocação, mas que deram no que deram, transformando-o no mais controverso caveira e ossos de Nueiba. Já o rival do Arbusto, nas eleições, o outro bonesman, o Kerry, pertencia ao nosso, naquela altura, diminuto e obscuro clã futebolístico, modalidade então quase exclusivamente praticada por equipas universitárias e de imigrados, que trocavam sazonalmente jogadores, o que dava a estes oportunidade de arregalar olho ante uma camada de juventude americana mais esclarecida, desporto para onde o John tinha acidentalmente resvalado, e ainda bem, médio defensivo com garra, que permitia a quem jogasse à sua frente ensaiar uns slalons à Didi que prometiam. Esta relação poderia até dar uma dissertação sociológica do tipo "O Futebol como meio de emancipação da juventude porcochapa" – como somos conhecidos por lá os portugueses, costeletas de porco, por gostarmos muito desses pork chops, mas ainda assim a parte italiana da família ficava mais ofendida quando nós os chamávamos pela alcunha deles: meatballs, almôndegas, do que nós ficávamos quando eles nos chamavam pela nossa – com alguns dos meus amigos a receberem bolsas de estudo, um punhado de dólares, das mais prestigiadas instituições de ensino, como o treinador de guarda-redes das seleções de Portugal e da África do Sul, Dan Gaspar, é o exemplo mais conhecido. Quando lhe falei no Dan, o homem arregalou os olhos, pondo ainda mais atenção no que tinha para dizer, uma raridade pela vida fora, e eu para lhe fazer o jeito não podia deixar de aproveitar esta oportunidade única.

Que segundo teorias da conspiração, e estas coisas valem o que valem, o George teria elegido a Terceira como talismã por pensar que as impressionantes divisões das pastagens eram feitas por arbustos, como aparentam pelas fotos, o que a ser verdade seria um amuleto como extensão do seu nome. Que teria sido o John, informado pela esposa Teresa, mais esclarecida sobre as coisas portuguesas, como era a sua obrigação, que lhe teria feito a revelação cabalística, informação classificada, o assunto interno mais bem guardado da fraternidade – isto das Irmandades Secretas está acima das cores políticas – que as divisões eram afinal feitas de rocha vulcânica, armas de destruição maciça para os cowboys que apascentavam os bovinos e caprinos, que hoje sobem e descem sem pistoleiros à ilharga os desfiladeiros terceirenses, para produzir a melhor carne e o mais saboroso queijo das ilhas macaronésias... e não só. E se non è vero, è bebe trovato, como diriam os meus familiares italianos. E lá arranquei, muito a custo, um sorriso do bom conversador... com uma generosa gorjeta ... por me ter escutado, coisa que bons falantes quase nunca fazem, ou não passassem eles a vida inteira a desbobinar. Só quando me levantei para sair, é que entendi o porquê, e sem que ele deixasse antever uns sinaizinhos de aborrecimento, de tão pretensa atenção posta nas minhas conversas: "Olhe, tenho um filho futebolista e de olho bem arregalado. Não haverá maneira de o levar para a América com uma dessas bolsas de estudo?" E eu a pensar que os meus relatos o estavam a fascinar. "Manda hostia!" como dizem os meus amigos galegos. Teria ficado ressentido se não fosse pela alcatra!

The Running of the Bulls

A vida aqui revolve tanto em torno destes bovinos que deu origem ao provérbio "aqui deus há só um, o touro e mais nenhum", legado, segundo me dizem, da época filipina. Mas esta festa brava é mais amiga dos lindos dos animais.

Comentavam uns turistas americanos, que se faziam acompanhar por um soldado das Lajes, poderia ter sido o guarda-costas de Bush na Cimeira, que Hemingway não deveria aprovar deste tipo de corridas, "kids’stuff", com os touros acorrentados por uma corda. Eu também não, mas por outras razões. Deve haver divertimentos com outra sensibilidade, onde se possa gastar os níveis de testosterona, sem maltratar os pobres dos bichos, os únicos que não estão na festa de livre vontade. Mas, bem vistas as coisas, a corrida parecia tudo menos uma brincadeira de miúdos. Era só reparar como os descendentes de Teseu se agitavam no vigor, na audácia. Mal caíam, levantavam-se por artes do diabo, ganhando uma nova vida ante o perigo de morte. Estivesse o Ernest na arena terceirense entre estes touros, sem um fio de Ariadne, e veríamos por quem os sinos dobrariam, em morte ao entardecer? Antes que os visitantes partissem ainda arranjei coragem para lhes dizer que foi a bravura dos terceirenses, gente imune ao medo, que deu azo ao primeiro levantamento contra os espanhóis, à resistência contra os ingleses, contra os piratas e até de poderem gabar-se de ter escorraçado Frances Drake, que o epíteto baía ou âncora heroica não lhes foi oferecido assim à toa, sem o merecerem.

Viagem ao Centro da Terra

Não sei se foi uma viagem como esta, ao Algar do Carvão, que inspirou Jules Verne, o que posso assegurar é que vejo nisto uma oportunidade única para entrar no ventre de um vulcão, adormecido, até às profundezas da terra. É uma descida a um mundo paralelo, com a sua própria vida: clima, luz, som e chuva. Os raios do sol espreitam pela boca do vulcão, uma claraboia natural, a água vai penetrando a rocha, resvala-me na cabeça, para se acumular numa lagoa bem lá ao fundo, e é preciso descer uma caterva de degraus – perdi-lhe a conta- para lá chegar. Nas entranhas da terra, ouvem-se os ruídos mais inaudíveis, sobretudo a respiração ofegante da subida, que a condição física já não é o que era, criando a sua própria caixa de ressonância, trazendo aos ouvidos a cadência do coração, que me batia tão forte como naquele preciso momento em que a mãe selou o casamento de Alice com o Picaroto mal-amanhado.

Living Pico

O título é um trocadilho referente à obra do poeta luso-americano Frank Gaspar, Leaving Pico, que uma californiana lia durante o percurso. A chegada ao Faial fora apressada, não fosse perder o barco que me levava à outra ilha, regressaria dias mais tarde, para calcorrear a terra das faias. Oito quilómetros navegados suavemente em 30 minutos.

Nada me tinha preparado para a primeira vista daquele monte de fogo, o cone mais alto de todo Portugal, com mais de 2300 metros de altura, onde o adágio faz mais sentido: o céu é o limite. Aquela elegância impõe respeito, torna-me humilde. O Pico, um dos verdadeiros símbolo do arquipélago, pode não ser tão alto como os Perineus, ou como os Andes, mas é este com a sua altivez que me transporta para o logo da Paramount Pictures, para os filmes da adolescência, como lugares fabulosos que mais desafiaram a imaginação, a que nem faltava aquela coroa de estrelas, como aparece em volta do logo paramountino, pois esta era nele projetada pela memória da coroa da Rainha da Festa do Espírito Santo, que nunca deixara de estar presente.

Ao descer o cone, o nevoeiro cobre-me e descobre-me rapidamente, envolve-me numa espécie de fumo fresco, cria o seu próprio ecossistema, antes de cair em forma de precipitação para dar alma à floresta. A paz da natureza flui em mim, trazendo do mundo dos sonhos uma serenidade como só esporadicamente o mantra tinha conseguido.

O Pico é das ilhas que visito aquela que tem uma vegetação mais parecida com a continental. Há montes, pinhais, árvores de fruto, pomares e legumes que me fazem lembrar Trás-os-Montes. Mas o mais interessante são as vinhas que crescem entre muros de rocha vulcânica, que os nativos não descansaram, e com razão, até as verem reconhecidas como Património Mundial.

Foi aqui que vi, à distância, a minha primeira baleia, não posso é assegurar se era branca, pois apesar das investidas daquele Capitão Ahab que nos dirigia, ela escapava vezes sem conta às nossas miradas. Os parques recreativos multiplicam-se em volta da ilha, espaços de lazer construídos para a comunidade como um todo. Viajo no seio de dois grupos de escuteiros, um de rapazes, o outro de raparigas, que vão viver o Pico antes de deixá-lo. Explorar novos capítulos da vida, num fim de semana bem passado, ao ar livre entre jogos, cantos e piqueniques, pernoitados em tendas. Vão tão calmos e atinados, que para quem está habituado à euforia turbulenta da juventude americana, nesse período da maturação, se questiona se as hormonas não estariam avariadas. Pouco antes de chegar à outra margem, passo por dois ilhéus, um de Pé e o outro Deitado, assim conhecidos. Neste último, a erosão marítima fez uma porta natural, perfurando a rocha, o que permite ver a linha do horizonte lá ao fundo, através da gigante fissura. "Olha, vês a porta do ilhéu", pergunto eu, tentando meter conversa com o rapaz sentado ao meu lado, 15 ou 16 anitos, tirá-lo da letargia em que parecia mergulhado. "Não, não" diz ele, em voz profunda, e de forma reflexiva, "o que se vê é o ilhéu, a parte que não vê, o infinito, é que é a porta" Ora toma lá, para quem julga o livro pela capa, com Einstein ali tão perto! Bem-aventurados daqueles que ensinam o que sabem.

Light My Faia

Tão próximas e tão diferentes, cada ilha, independente das outras, tem a sua própria vida e personalidade. Visto do Pico, e fantasiado com a imaginação, o Faial, lá ao fundo, de cabeça pequena, nariz empinado e barriga de Polifemo, traz lembranças do Deus Adormecido, como a bem-amada costela barrosã lhe chama, da Serra do Larouco, a terceira mais alta de Portugal depois do Pico e da Estrela. Dirijo-me para o vulcão dos Capelinhos, o último a ativar uma erupção, a personificação da força criativa do arquipélago, mas também o poder destrutivo da natureza, quando o inferno chega à terra, causando terror entre a população, responsável pelos órfãos da debandada para a América, onde uns fizeram fortuna, como o Picaroto mal-amanhado, e outros de quem nunca mais se ouvirá falar. Pela Estrada vêm-se ainda vestígios de casas soterradas. Então a Caldeira Velha com 2km de diâmetro e com quase meio quilómetro de profundidade parece mais uma cratera atingida por um meteorito, fica ali como prova dos segredos insondáveis da natureza.

O Café Principal é o ponto de encontro no Faial. Aqui vêm parar marinheiros e velejadores das sete partidas do mundo, que depois de atracarem na Marina da Horta, colocam os seus emblemas por tudo quanto é sítio: nas paredes, no teto, nas janelas, e relaxam ao sabor de uma bebida contando as suas sagas. Jovens de computador portátil usufruem da banda da net para preparem os seus trabalhos, enquanto se vão misturando em conversas amenas, às quais se vão juntando poetas, pintores e contestatários da contra cultura, talvez, quem sabe, também eles na demanda de erradicar o seu cachalote albino. No Café pode apreciar-se a boa comida faialense, mas os de baixo orçamento, como é o meu caso, podem optar por comida mais rápida, a mais acessível da ilha, e a vista do Pico, com toda aquela energia mítica, poderosa, está incluída no preço. Antes de sair também fui fazer o meu grafiti: "Alice: Procura-se!"

Manda a curiosidade que ao chegar a um lugar tão exótico como este, se queira ver o que de mais raro existe e as origens do que é nativo. Não podia portanto deixar a ilha sem ver a árvore endémica, que antes pululava por todos os cantos, mas que hoje se encontra quase em vias de extinção, a faia, que deu origem ao topónimo da ilha. Os turistas britânicos, que são dos que mais ajudam a economia do arquipélago, no seu entusiasmo interativo, brincam perguntando se ando a fazer de Leopold Bloom, mas que pelo menos o personagem de Ulisses atravessava Dublin, em fluxo de consciência, à procura de um pub. Eu procurava simplesmente uma árvore. "Ridiculous!" E olhem que não foi tarefa fácil. Não estava tendo sorte pela segunda vez com Light my fire. Na primeira, na antiga Arena de Nueiba, no célebre concerto mais curto a que assisti, a polícia reagiu negativamente à retaliação do vocalista, pensador livre, nos conturbados anos de protesto da Guerra do Vietname, que nem deu tempo para ouvir algumas das minhas canções preferidas. Jim Morrison saiu de cena, preso em palco, em menos de três minutos, por não ter dado a outra face a quem o tinha maltratado. E eu que tinha contado os centavos por semanas, trabalhado ao domingo para comprar o bilhete e passado uma noite inteira na fila à espera que a bilheteira abrisse, ficava ali tão triste como quando perdi a Alice.

Quando já estava prestes a deixar a Ilha, o sol penetrou finalmente o nevoeiro, restitui a cor à floresta, fez-se luz sobre uma árvore de porte pequeno, que logo me assinalou o caminho para uma moita dessas míticas árvores, um faial, que ainda resistem a ameaça das novas espécies, que mal introduzidas no território o colonizaram, como nós os europeus fizemos nas Américas, levando o que é autóctune quase à extinção.

Lagoas for Ever

S. Miguel é a maior das quatro ilhas, e a mais cosmopolita. Aqui vive metade da população açoriana, 130 mil pessoas, segundo me contam, que contrasta com os cerca de 15 mil, tanto no Pico como no Faial, deixando a Terceira com 50 mil. A ilha com nome de santo é o centro turístico da região. Por aqui passam os grandes barcos provenientes da América em direção à Europa e vice-versa e os passageiros aproveitam para conhecer a ilha. O Jardim da Terra Nostra é um dos últimos Édens na terra. A grande variedade de árvores, plantas exóticas, dão-lhe uma aura romântica, que reflete de forma exemplar o espírito do século XIX. O seu renome internacional, faz do Jardim um dos lugares mais procurados pelos visitantes, gente bonita que preguiça de fio dental num lago térmico. Podia aqui ficar o dia todo, mas havia mais coisas para ver. Aproveito o licor de ananás de uma plantação em estufa para brindar, como Bogard fez a Bergman em Casablanca, à saúde de Alice: "Here’s looking for you, kid!". Do que gostei imenso foi de uma fábrica de chá não só pela sua qualidade – fiquei a saber quase tudo sobre o produto com uma olhadela pela fábrica – mas sobretudo pela beleza dos campos de cultivo. As lagoas das Sete Cidades e das Furnas, brilhando ao sol, rodeadas de vegetação exuberante, que tinge de tons verdes as águas, misturando os elementos com o coaxar das rãs, o grasnar dos patos e o canto das aves, tudo em perfeita sintonia, fazem do entorno uma das obras mais poéticas que a natureza criou. Parece que estou a alucinar. Ou já estarei num canto do paraíso ou então o licor de ananás está a fazer o seu efeito. Melhor do que isto, só o esperado encontro com os olhos esverdeados de Alice. Adeus Lagoas e obrigado.

"Hoje os vulcões já estão mais calmos" dizem-nos os especialistas que testam as emissões de gases, mas os geisers mais violentos, resultantes da lava que se escapa das ranhuras, nas profundezas do mar, libertam fumaradas espetaculares, dando a sensação que o solo pode explodir a qualquer momento, deixando fragrâncias de enxofres pela atmosfera. É nessas fumaradas de menor dimensão, que as gemino na consciência com as das do Tâmega nas Caldas de Chaves, que está a ser cozinhado a especialidade da casa, o tradicional cozido a vapor – carne de vaca, porco, frango, enchidos, batata, inhames, couve, cenoura...- graças à lentidão com que é confecionado, a panela fica soterrada, sem água, desde as seis da manhã até ao meio-dia, para ser retirada na presença dos felizardos comensais. Que delícia! A barriga parece cada vez mais a famigerada baleia branca, que um dia terei que erradicar. Se não houvesse amanhã, esta seria a última ceia que escolheria.

O Guerreiro Decapitado

Até aqui a viagem tinha suplantado todas as espectativas. O dia mais cinzento, a autêntica desilusão, veio encontrar-me na freguesia de Rabo de Peixe, a terra natal de Alice, uma das mais pobres da União Europeia, onde, segundo consta, pouco se faz para diminuir as assimetrias sociais. Peguei na lista telefónica. Reparei que Alice estava alistada com o nome de solteira. Pedi um encontro.

Quando ela apareceu, bela, elegante como sempre, e com aquele olhar penetrante quebra corações, quase não pude conter a emoção. Parecia cada vez mais jovem. Foi um encontro tão emocionante que a própria memória já se preparava para prolongá-lo no tempo. Mas, infelizmente, foi sol de pouca dura. Subitamente, uma nuvem ofuscara o resplendor e a luz desvaneceu-se. Vi pela cara que não tinha gostado do que vira. A deceção ficou-lhe estampada no rosto quando aprofundou a lupa, em câmara lenta. Nem eu estava preparado para tão inesperada surpresa. A experiência da vida tinha-a tornado difícil, azeda, o que paradoxalmente a fazia parecer ainda mais inalcançável. Começou a resmungar, reclamando de tudo, em formas que roçavam o arrogante, tornando-a ainda mais apetecível e... inatingível. Conservara os tiques novo-ricanhos, agora contrapostos com uma obsessão em negar a misteriosa vertigem da vida. E antes de dar a fuga, descarregou sobre mim a sua ira:

"Os homens da minha época só pensaram em trabalho, nunca viveram, preocuparam-se mais com as business, descuraram a saúde, como fez o meu ex-marido. Um coelho passa a vida a correr e dura só 15 anos e uma baleia que vive a vida mais sossegada dura três vezes mais. Não se vive para trabalhar como na América, trabalha-se para viver. E tu... cuida-te!", disse, enquanto deixava no ar um mistério com a sua última mirada.

Fiquei estupefacto, sem palavras, imóvel, a vê-la partir. "Valha-me o Espírito Santo, o Espírito Santo, a Senhora do Rosário e todos os santos que queiram dar uma mãozinha!" Resisti até ao limite mas acabei por sucumbir, desabafando a minha súbita mal disposição:

"Deves andar a ver a Paramount Pictures em demasiado. Eu passei o tempo atrás de uma bola e à procura de alguém que te substituísse, fazendo de Florentino em El amor en los tiempos del cólera sempre à espera de Fermina. E olha que para um homem sem paz de espírito, como é o caso, autoimpor-se a paciência de espera de uma vida inteira, ou é amor ou são laivos de santidade!"

Quando deixei de ver-lhe a silhueta fiquei mais triste do que quando como contrabandista principiante perdi o meu primeiro fardo. Reconheci que tinha deixado de preencher os seus requisitos, aquele estado de pretendido apetecível, que sempre tivera aos seus olhos, deixara de a satisfazer, tinha ultrapassado o prazo de validade. A nuvem aproveitou para despejar-me sobre a cabeça um verdadeiro balde de água fria. Refugiei-me num café, e não era a Alice que se olhava ao espelho nem o looking glass refletia a fantasia, mas a dura realidade que o lufa, lufa da vida, sem que eu me tivesse apercebido, nunca me dera tempo para ver. A cara devolvida ainda a medo pelo espelho tinha sido invadida pelas rugas, parte do cabelo tinha também emigrado e a barriga parecia a baleia branca que eu bem tentara escorraçar, correndo mais do que o coelho da Wonderland, A outra face da América, como diria o Diniz Borges, de uma vida desgastante, aonde o relaxar não fizera parte do vocabulário, feita de piece-works, overtimes, moonlightings. Mas...bem vistas as coisas, olhando em retrospetiva, mal posso culpar o Tio Sam que, apesar de tudo, me dera mais do que aquilo porque eu regateara. Porque essa vida agitada era o produto de alguém que quis fazer correndo o que os outros fizeram em passo normal, coisas a que nunca pude fugir, quer seja por natureza ou pelo ambiente, comportamento que aliás já se havia revelado bem cedo, de quem nasceu à pressa, sem pai desde os cinco anos, num a ver se te avias, como aprendiz de contrabandista – qual trabalho infantil – lá na longínqua Aldeia que Nunca Dorme, que essa caraterística já existia ali desde tempos imemoriais, enquanto que em Nova Iorque só se revelara com a invenção da eletricidade – start spreading the news – com o povoado inteiro de fardo às costas, sob o manto diáfano da noite, inspiração precoce para uma vida sempre a correr como se aquele fosse o último sufoco. O Guerreiro Decapitado de Leon Machado era a metáfora que me vinha mais à cabeça para explicar o sucedido, pois tinha feito tudo o que pude e mesmo assim me saíam os carabineiros.

Mas quem é afinal, o Picaroto, ou melhor o Montanheiro, o Contrabandista mal-amanhado?

Ganesha insistia em mandar-me abaixo de Braga, como o tinha feito pela vida fora. Senti-me outra vez miserável na reconhecida pele de perdedor. Precisa agora da chuva lá fora como de pão para a boca. Sentei-me no chão, tive vontade mas não chorei. Ia-o fazendo por mim a nuvem, despejando-me as últimas lágrimas da desolação e da angústia. Uma aflição instalou-se rapidamente no peito. Tive a sensação de falta de ar como se aquele fosse o último suspiro. Tomei alento, inspirei, concentrei-me na tristeza, como aconselhavam os gurus, a ver se ela perdia a força, e lá encontrei, a muito custo, uma nesga de oxigénio.

Fiz a pergunta retórica, não que servisse de alguma coisa, mas como não tinha resposta, adiava como um conto de Sherezade, a última sentença:

"Fim da linha?"

Foi então que quase por milagre trouxe do subconsciente, coisas que o vento tinha levado, recoleção súbita, daquelas lições de Transcendental Meditation, que fui aconselhado a tomar para aprender a relaxar a consciência. Puxei o filme atrás e ainda ouço o que estava escondido lá nos remotos confins da memória, o barbudo Maharishi no seu inglês peculiar, entoado com a ponta língua a bater no céu da boca, que traduzido e resumido daria mais ou menos isto:

"Há que afugentar os pensamentos sombrios: procurar o lado bom em cada nega, aprender com os ensinamentos daquilo a que chamamos erroneamente derrota. Não se deve levar a vida tão a sério porque isso impede de converter os sonhos em realidade".

Levantado do Chão

Não era a altura mais apropriada para entrar num estado de negação. A lembrança daqueles olhos, sensualmente esverdeados, daquele sorriso, não deixaram magicamente de existir só porque me rejeitavam, se é que me rejeitaram naquela misteriosa última mirada. Aquela cara pretensamente azeda, aquelas birras, eram talvez o reflexo de um matrimónio luxuoso mas sem vida. Levantei-me e comecei a recuperar o ânimo. Quem tinha vivido de falhanço em falhanço, não podia agora resumir o último sopro da vida a uma experiência amarga de alguém que acabava de divorciar-se. Quem sabe se aquela amargura toda não acabaria por ser o meu cavalo de Troia para entrar nas muralhas de uma fortaleza impregnável.

Dizem os hindus, que quem não cumpriu inteiramente a sua missão, que quem perdeu o que de mais interessante a vida tem para oferecer-lhe, terá que voltar como Proust à procura do tempo perdido.

Há ou não finais felizes como na Paramount Pictures? Tenho que reinventar-me da única maneira que sei, reviver o passado no presente, num a ver se te avias à contrabandista. Não se pode baixar os braços só porque o futuro teima em não amanhecer. Tenho que reconstruir a ponte que volte a unir os montes e o mar, à procura do tempo reencontrado. Mas terá que ser algo decisivo, arrojado, como aquele slalom à Didi, que a faça recuar no tempo das suas memórias, lhe volte a impor admiração, que lhe evapore aquela angustia, que volte a fazê-la levantar da cadeira, como quando a bola beijou as malhas do Lusitano, com o Picaroto mal-amanhado depois, nervosamente, para dissimular o ciúme, a passar o dedo a tremer pela na inscrição da Super-Taça: "VdGama: State Champions and Cup Winners" naquele preciso dia em que ela comemorava cinco anos de Rainha na Festa do Espírito Santo.

Aventureiro eu nunca foi, lá muito, mas uma vez embalado, o mais difícil será mesmo parar. Resta provar que ainda estou aí para as curvas... da Alice, num tudo ou nada, levar a coisa até ao fim, reproduzindo um momento mágico de antanho. Doar-me totalmente sem medo de me espalhar porque por espalhado já me dou, direitinho a um programa de reabilitação. Treinar como um desalmado, como se fosse a pré-época dos vinte anos, o último desafio, e regressar com mountainbike para subir o Pico, caiaque para navegar as Lagoas, prancha para cavalgar as ondas da Ribeira Grande, parapente para pairar no ar como um açor e vê-la correr em minha direção, como a terra correrá debaixo de mim, entoando lá de cima a declaração de amor de uma vida: "Aqui estou Alice, de braços abertos, voando para ti!"

O Nueiba, Julho de 2013

Voltar à página inicial de Histórias Rudimentares

Colaboradores | Coordenação | Contactos | © 1997-2015 Letras & Letras