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Nueiba: Histórias Rudimentares



O Eterno Retorno

Al cabo de tantos años como ha que duermo en el silencio del olvido salgo ahora,  con todos mis años a cuestas...

El Quijote

Não podes dizer que sois velhos amigos. Tu e a Chicago – não aquela Chicago dos malditos campos sintéticos que te deram cabo do joelho – a Bicicleta, nome nem sonoro nem significante como Bucéfalo ou Rocinante, que depois de tanto cismares como batizá-la, animá-la, dar-lhe vida, a imaginação ficou-se simplesmente pela marca, ainda mal vos conheceis.

Dizem que quem aprende nunca esquece, mas de ausência em ausência se fizeram quarenta anos, e há que reaprender a equilibrar-te, esperar pelo tempo de estrada para coordenar as velocidades e o travão: mais pesada, mais leve, trava, pedala, desengata os sapatos dos cleats do pedal – antigamente não havia destas modernices que juras terem sido inventados para apodreceres preso à bicicleta num campo santo qualquer improvisado no meio da serrania – quase nunca acertas, que este tipo de atividade não ficou devidamente gravado no teu código genético.

As saídas também não podem ficar limitadas ao desenferrujar do físico. Há caminhos a percorrer, montanhas por explorar, sentir nostálgicos aromas, conhecer novas pessoas e horizontes, que te dão a ilusão de adiares a sentença do tempo, que tudo consome, em lugares perdidos que nenhum veículo motorizado pode entrar, mesmo sem gastar combustível, poluir a atmosfera ou aquecer o meio ambiente num regresso à Natureza esquecida, que o “BiciMontanhismo Rolante” vai ganhar raízes em ti e estará aí para ficar. Para quem se gabava de não ter nada em comum com o George WB, lembro-te que este é um dos seus desportos preferidos.   

Quem diria! Quando o Zé desbloqueou a situação, abrindo-te a última janela de oportunidade – tens problemas no joelho? É o desporto ideal: pedalas com a outra perna! – de conheceres a região profunda, de aldeia em aldeia, de monte em monte, de vale em vale, com o manípulo na mão, dobrado, apoiado nas quatro, à procura do elo perdido, que questionará a própria evolução da espécie, tu que na adolescência nunca tiveste grande traquejo, não era a tua taça de chá, podes contar pelos dedos as vezes que andaste de bicicleta, medíocre histórico de um ADN adaptado, olhando agora para aquele anel montanhoso, picos nevados, que se adivinhavam para além do algodão em rama, do outro lado da bruma, parecia-te uma verdadeira loucura. 

Trazes esta geografia já desbotada na memória, tão distante que andas daqui psicologicamente, de fazer inveja à pérola literária de José Brites: amerdicanizado, e as tentações de reconstruir o que vês com recordações menos remotas, falso valor que atribuis às memórias antigas, para não te perderes monte adentro, magnificam as cordilheiras e o nevoeiro entre ti e o que fica por percorrer dá-lhe dimensões tremendistas. Assim, os picos esbranquiçados parecem-te os Glaciares Andinos, o Parque Eólico de Mairos, aquelas hastes gigantes que ajudaram a criar mitos e lendas, transportam-te para o Campo de Criptana, o Crasto (assim mesmo escrito em metátese) de Castelões, traz lembranças de Machu Picchu, onde as ovelhas fazem de lamas, o Lago de El Morico no Cambedo, o Titicaca liliputiano mais alto do concelho, o Monte de Vamba reminiscências do Grand Canyon... estando portanto lançados os dados, entre outras ilusões óticas discutíveis, sem discernires se é o chiaroscuro dos óculos que ilude as perspetivas, ou se são as tuas insuficiências físicas que aumentam as distâncias numa saudade quarentona do amarelo das mimosas, dos castanheiros, das giestas brancas, que quando reaparecerem aí pelos montes esperas que as forças já tenham diminuído as magnitudes e o realismo-romântico tenha enveredado pelo pós-moderno, aonde nenhum tamanho é excluído. Small is beautifull!

As alturas deixadas para amanhã, a ambientação vai processar-se gradualmente. Sendo assim, no início, manda a precaução que tomes uns caldos de galinha. A primeira saída, sendo a mais difícil, será uma autêntica aventura. Tens que dominar as primeiras barreiras que possas encontrar, antes de lançares-te às feras numa dessas “Ordens de BiciMontanhismo Rolante” verdadeira obsessão – numa região com montes à mão poderia até fazer parte do currículo escolar – que crescem pela cidade: Os Medievais, Os Lobos das Estepes... e a ainda não inventada “The Viagra Brigade”, fica desde já o direito de autor, para que não te sintas um corpo estranho, pesado, ao lado de gente tão seriamente preparada, que domina a máquina com a mesma elegância que um guerreiro mongol dominava o seu cavalo, arriscando a vida montanha abaixo, sem mãos, feitos voadores da carpete mágica, capazes de enfrentar os maciços mais altos do Larouco e até demandar a Fonte da Juventude, aonde todos os caminhos querem ir dar. Vai ser divertido fazer parte da magia, passares as manhãs de domingo com essa quadrilha que já faz parte da história da Keys City, vulgo Chaves, gente que te ajudará a criar um mundo novo. O espírito de grupo, as formas como se equilibram na montanha, como se transfiguram nas subidas, os saltos de fraga em fraga, a criatividade, o esplendor de paisagens idílicas, a alegria, o renovar do apetite pela vida jovem. É como na ciência oculta do S. Cipriano: encontrarás tudo o que desejas. Beleza, força, determinação, velocidade, talento, fantasia.

Como se isso não fosse suficiente, aparecem com tudo, sempre na vanguarda: global position systems, medidores de tensão, altímetros, câmaras de filmar. Aqui pedalam engenheiros, mecânicos, médicos, massagistas, enfermeiros, cozinheiros, arranjam tempo para coffee break, consomem marmelada, arma química, anabolizante não proibido, para dar pica aos índices de açúcar e alguns dos agrupamentos incluem até Guerreiras Amazonas, que sprintam subidas brutais como se estivessem abençoadas pelos espíritos da floresta, fazendo barrelas aos machos. Na procura de ti mesmo ou no desejo escondido de perder-te para sempre, haverá alguns momentos de júbilo, sentir-te-ás jovem, puro deleite, mas também momentos de desânimo, manhãs longas e feias, como um velho, batendo no fundo, rebolando pelas encostas.

Já sei. O teu instinto inicial é de desconfiares dos automobilistas locais, pela impressão que te deixam de terem sempre alguém à sua espera. É que nas rotundas, outra das coisas a que andas desabituado, os primeiros cruzamentos mais do que um coqueteio hemingwayano é uma verdadeira missão suicida. Treina a mirada, aprende a fazer os sinais com os braços, vê quem tem prioridade antes de seres abalroado e relaxa os músculos, que quando te descontraíres poderás constatar que, afinal, o mercedes-set, desta germanização galopante -jet só a 150 km – até é capaz de respeitar o bike-set.

Urge portanto sensibilizar os condutores. Decifrar as miradas curiosas que incidem nos óculos escuros, que te ocultam o cansaço, boca aberta atrás do ar, mesmo quando a chuva castiga, que os automobilistas têm dificuldade em entender a tua perspetiva, porque à velocidade em que as imagens passam por eles não deixam tempo para lhes impressionar a retina, neste paradoxo mágico em que os corpos em repouso são transformados pela rapidez em que o viajante se desloca.

Trabalho de casa feito, há cinco anos que precisavas de um desafio assim: sê “BiciMontanhista Rolante”, por um dia que seja, bonita homenagem ao teu antigo colega de escola. Vais recriar em sentido inverso, sozinho, a tua última etapa, da Aldeia que Nunca Dorme a Keys City, então com o Lelo e o saudoso Mário, que já pedala a Eterna Viagem, no dia da visita do Presidente Tomás, pouco antes de ires para a América, deixando o Américo a pregar aos peixinhos, e só agora voltas desta vez à Bicicleta Todo Terreno, de pneus gordos, que custam tanto a arrastar, ainda por cima como substituta do futebol, porque o joelho se acabou para sempre. Lembras-te? Era uma segunda-feira de manhã, disseram que depois haveria aulas, mas não houve, tinham medo que os estudantes também deixassem, nesse dia, o Américo a pregar no Tâmega. Welcome back handicapped!

Vais começar por um caminho conhecido e de boa memória. Na tua antiga escola, a Júlio Martins, vira à esquerda na Dry Hill Street, vulgo Estrada de Outeiro Seco, agora rebatizada de Avenida 5 de Outubro, ladeada de prédios, de forma quase irreconhecível. Atira a mirada para onde se erguia o Pinheiro, na margem direita do Tâmega, na mítica praia fluvial da Galinheira, aonde se espraiava o nostálgico campo da redondinha, que agora não podendo jogar, sei quanto te custa, descobrirás que a lendária árvore, que servia para localizar os namorados ainda zonzos, depois de terem jurado amor eterno, entre os salgueiros da margem direita do rio, simplesmente deixou de existir. Não resistes a tentação de ires perguntar pelo destino do desaparecido.

– Secou à meia dúzia de anos, depois de uma cheia – diz-te nostalgicamente o Tio Chico, que ainda anda por estas bandas. 

Na Little Ant’s Farm, vulgo Quinta da Formiguinha, quem a reconhece, cresceram prédios, mas nada daquela modernice estéril. Já não há as cerejeiras no Livreiros nem os diospiros na Gabriela, das diabruras de infância. O Bairro da Caixa da Providência, foi aí onde tudo acabou, ergueu-se na Lameira, o local da tua rutura – quis assim a Providência que fosses viver a vida na perspetiva de cidadão errante de um mundo nómada – que ia dar a Holly Cross, ou Santa Cruz, ocupando o espaço físico das brincadeiras da época: futebol, vólei, hóquei em campo, escaramuças entre carabineiros e contrabandistas, cowboys, tirados do Bonanza, e índios sacados do Cheyenne, lugar da construção de um barco, a cortes de machada e golpes de martelo, que flutuou até se afundar no Tâmega, feito das tábuas da antiga vedação do Campo Desportivo então a ser substituída pelo atual muro de pedra, nos tempos do Albano, Domingos, Zurria, Melo, Lisboa, Neves, Martins...dos ainda juniores mas já legendários Pavão e Rendeiro, que quiseste revisitar mais tarde num verso de Espronceda “Qué es mi barco, mi tesoro...”

O Calhambeque e o Libório conseguiram resistir ao teste do tempo. Entras numa nova loja, ali ao lado, para reabastecer, mas a Lena não deposita grande confiança no “BiciMontanhista Errante”, logo te promete um bolo-rei, visto não ser casa de presuntos, tão segura que está no lugar vassoura, em que acabarás, atrás de um monumental batalhão, na Rota do Presunto.

Num bairro designado por S. Bernardino 2 vês um ninho e duas cegonhas. Mais à frente está a White House, Casa Branca, como faz questão de assinalar o mosaico. Intrigado, aqui tudo te parece novo, indagas se o nome é uma alusão à de Washington ou à de Marrocos.

– Não, não – diz-te uma senhora sorridente – foi assim batizada pelo carteiro por causa dos números duplicados.

Em Dry Hill, num desvio à entrada da povoação, virando à direta, na Igreja Românica, no novo caminho que vai dar a Greenville, Vila Verde, cresceu um complexo industrial – materiais de construção, Stand de carros, armazéns...– Voltando à Estrada Principal, aí investiu-se na Educação, a Escola Superior da Saúde, onde os poucos jovens que ficam na área vão aprender a aumentar-nos a esperança de vida.

Mas é uma obra entre a Ladeira do Olmo e o Campo Queimado que te chama a atenção. Um projeto em construção acelerada que, segundo se diz, vai fazer os possíveis por contrariar os efeitos da interioridade. É aí que se estende, o que dizem ser o Fénix da Fronteira, o Mercado Abastecedor, a inaugurar em breve, graças à magnífica estrada, a A-24, que ligará uns territórios até agora separados do mundo pelos montes. As vias alcatroadas, as luzes do século XXI, as dimensões da obra nada liliputiana – quase mil metros de perímetro, acusa a Chicago no conta-quilómetros – mas é a escolha do local, no meio de nenhures, que mais te causa admiração por constituir um marco simbólico contra a concentração urbana.

Conta um dos técnicos que, no Verão, ficará aberto ao público um troço da estrada, desde Vila Frade até às Pedras Salgadas. Vila Pouca e Vila Real ficarão para mais tarde devido “a uma ponte ambientalista que visa não perturbar o habitat do lobo ibérico”. Para lá da Fronteira, os Nosos Irmáns ainda nem começaram.

– Aqui – diz-te ele – num sotaque afrancesado – será o ponto onde irão confluir as estradas de Portugal, da Espanha, da Europa e ... do Futuro.

Chegar à Aldeia que Nunca Dorme? Cai na real. Pois...quando os espíritos malignos consomem as poucas forças, de cinco anos sem mexer uma palha, e tu ainda jogas limpo sem o antídoto da marmelada, só mesmo um ritual xamânico, com as ramas do Murtinho, na encantada Calheia dos Namorados, ou a milagrosa Água da Facha, lá na Santa Terrinha. O pior é lá chegar! Nesta pobreza franciscana, há que arrepiar caminho sem stress, antes da subida para na bifurcação de Vila Meã. O orgasmo da vertigem que fique para outras núpcias.

Para não minar a confiança, os antigos gregos, peritos na matéria, culpavam os deuses, El Quijote o Mago Frestón, a ti resta-te insistir no vietname do joelho, já que te livraste por pouco do verdadeiro, este foi o castigo, que te obrigou a passar uma vida desportiva medíocre, que culminou com cinco etapas de anos no submundo do tédio perpétuo, na ociosidade dos prazeres, mas sem o qual não estarias hoje aqui a mortificar-te, todo partido, em cima da bicicleta.

Dizem os pensadores, patamar restrito a uma casta de sábios, que o exercício deve ser feito na cabeça – qual cabeça? No único desporto em que se utiliza a cabeça é o futebol e tu já não podes mais com desespero, amargura e lágrimas. É melhor procurarem noutro sítio. Para os sem cérebro como tu dar o corpo ao manifesto ainda é o melhor caminho, que cada um dá o que tem e a mais não é obrigado, mesmo que o Borges te diga que o desporto é uma chatice, que o Camus escolha a posição de guarda-redes para não entrar em grandes correrias e o Fuentes te mande a ti, em comissão de serviço, na segunda pessoa do singular e no imperativo, em vez de ser ele a pedalar. Queixares-te a esta altura do trajeto tampouco leva a lado nenhum. Toca a andar!

Com uma pedalada mais pachorrenta se consuma o retorno, apesar dos protestos da Chicago, com a rodagem ainda por fazer, que continua a exigir, em indignação crescente, que aciones os pedais sem preocupações pelas forças ou pressões da noite. Mas contra o vento, a subir e a descer esta montanha russa, a Bicicleta avança penosamente na nova estrada em progresso, deixa na margem direita Sanjurge e Soutelo e entra à esquerda pela barragem de Valdanta.

As dores no joelho, nos músculos, nas articulações cobrando as penúrias do trajeto, ainda buscam energias, que não hão de aparecer e as sombras avançando sobre a luz incandescente do crepúsculo, já há muito vêm alertando para o realismo sem hífen: “O retorno vai durar uma eternidade!”

Nota: A versão preliminar deste artigo já andava por aí esquecida há uns anos, só agora foi reavivada com algumas mudanças inspiradas pela Rota do Presunto.

O Nueiba, Setembro de 2013

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