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Nueiba: Histórias Rudimentares



A Legendária História de Vamba

Contava-se entre Cristão Novos, extratos em síntese de histórias sefarditas, testemunhas de um mundo cabalístico pouco conhecido entre Cristão Velhos, que por volta dos longínquos e conturbados anos de 619 da Era Cristã, três anos antes da Hégira, o início do Calendário Islâmico, o poderoso rei Visigodo, Sisebuto, tinha escorraçado os seus rivais, opositores na Questão Judaica, para as franjas da Península.

Assim era o lema dos monarcas do Regnum Gothorum: Arrancar pela Raiz a Planta Venenosa do Judaísmo.

Sisebuto delimitou o território de perseguição em 300 milhas em volta de Toledo.

Entre os que escaparam aos preconceitos de Sisebuto, encontrava-se um promissor cavaleiro, Tulga de seu nome, jovem cabecilha da revolta, que um dia viria a ser rei, filho do também futuro monarca Chintila, e de quem se dizia, à boca pequena, de mãe com sangue judaico.

Tulga veio exilar-se, disfarçado de camponês, no antigo Castrum Mons, hoje Castro de Vamba, a nascente do Cambedo, Vilarelho da Raia, Chaves, fortificação castreja das mais antigas da Península, nessa altura mostrando apenas reminiscências do esplendor em que fora construída, na Idade do Ferro.

Quando Sisebuto morreu, sucedeu-lhe no trono o seu filho Recaredo II, e a corte de Toledo suavizou momentaneamente as penas contra os Judeus, responsáveis por todos os males, reabrindo assim as portas ao exilado Tulga.

Mas a lua de mel durou pouco tempo. Uns meses depois de subir ao trono, Recaredo foi envenenado, presumivelmente por Suíntila, seu tio e sucessor, e este enquanto o diabo esfregava um olho, regressou às práticas de perseguição do senhor que servira, Sisebuto, contra o irreverente Tulga.

 Por essa altura, os conflitos e as conspirações eram o pão nosso de cada dia, o Tesouro Régio a única coisa que importava, tornando assim os reinados godos instáveis e de pouca duração. De maneira que entre o nascimento do protagonista desta história, Vamba, herdeiro de Tulga, no ano da Hégira, em 622, e a sua coroação em 672, já com a idade avançada de 50 anos, passaram pelo poder nada mais nada menos que 7 monarcas assim distribuídos por ordem cronológica: Suíntila, Iudula, Sisenando, Chintila, Tulga, Chindasvinto e Recesvinto.

 O Coração d’Ouro

 Aquando do seu exílio em Castrum Mons, Tulga, ainda muito jovem, e de relacionamento fácil com a população galaico-romana, tentou passar despercebido, adotando o estilo de vida local, numa vivência secreta.

  Ante as inúmeras perguntas com que era diariamente bombardeado, Tulga mesmo apostado em manter a privacidade, lá foi deixando escapar que tinha vindo de longe para cumprir uma promessa, peregrinando por terras mais planas onde reservou energias para encarar a vertigem das montanhas e a ferocidade das tribos que as habitavam.

No meio daqueles homens de barba desleixada e mulheres seminuas, que cobriam apenas as partes pudendas com peles de animais, foi-se ajustando às fainas agrícolas, aos jogos tradicionais, às caçadas pelas colinas e à pesca no Ribeiro que ajudavam a sustentar a população castrense, sentindo-se em cada dia que passava mais acolhido pelo Tribo, que lhe tinha dado a primazia de atear as grandes fogueiras comemorativas dos Equinócios de Verão e de Inverno.

Mas apesar de todo aquele esforço, continuava a parecer inconcebível para os castrenses que um forasteiro com estirpe de godo se dedicasse com tanto afinco a tarefas campestres vedadas à sua linhagem, empoleirado com as cabras nos penedos mais íngremes, caçando ursos, esfolando veados, não estivesse ele a esconder um mistério bem guardado. Seria o Godo um espião a soldo de um povo inimigo?

Desde os montes da atual Alvorinha, no lado oposto do Castro – não se sabe o antigo nome, para os Suevos poderia até ser Valhalla: Monte dos Deuses – que entre a explosão de vida natural albergava no seu seio uma espécie de Templo, tão bem escondido na densa floresta, que só era visível a uns passos de distância, um Triângulo Misterioso, alisado pela chuva e pelo vento, constituído num dos vértices por um abrupto Rochedo, noutro por um Castanheiro Dourado e no terceiro um Roble Celta, que lhe davam uma dimensão mítica, que o Godo jurava ser uma emanação da Unidade Trinitária. Vigilante atento a tudo que o rodeava, era aí no Templo que ele sentia a energia, meditava, rezava e suplicava à Santíssima Trindade, porque apesar de ter lutado dignamente nenhuma Vaquíria se atreveria a escalar um estrangeiro para o exército de Odin.

Do pouco que o godo deixara transparecer, foi dele que a Tribo ouvira pela primeira vez agradecer à Santíssima Trindade. Com o desenrolar do tempo, sentia-se admirado como nunca fora antes. A sua cumplicidade e generosidade valeram-lhe a alcunha de o Coração d’ Ouro, e a influência sobre a Tribo da Montanha fizeram dele o seu líder.

Também não tardou que Tulga ficasse perdidamente apaixonado, o seu primeiro amor, por uma jovem camponesa em flor, Luana – a Ana que trazia o luar no fundo dos olhos – estrela de maior brilho no zodíaco castrense. Cabelos pretos, pómulos altos, um corpo em que Coração d’Ouro jurava que os Deuses dos seus antepassados se tinham esmerado em esculpir a figura de Friga, a deusa do Sol, da Lua, da Doçura e da Fertilidade, tudo fundido numa alma sublime que a tornaria, no pouco tempo que lá esteve, na Diva dos príncipes de Toledo.

Luana tampouco perdia uma oportunidade de soltar a sua voz de cristal bem audível pelos montes, enquanto trabalhava ou pastoreava a manada alegremente porque uma vida sem uma cantiga no coração zoada nas ramas do verde pinho ou ressoada nos murmúrios do Ribeiro nem valia a pena ser vivida. Ecoava pela cordilheira o canto de amores furtivos, desafiando os trinados e os gorgolejos dos rouxinóis em busca de carícias, durante as horas mais solitárias da sesta. Um dia, enquanto se banhava no Ribeiro, como quando tinha vindo ao mundo, foi surpreendida pelo Coração d’Ouro. Estava um calor insuportável e ali aparecia ela tentadora como nunca a tinha visto, irresistível…entregou a sua flor imaculada ao desejado na doçura de um suspiro. 

Quando o Godo partiu, levou-a consigo para Toledo, na ânsia de implementar um cânone que permitisse casamentos entre godos e indígenas.

  O Homem de Ferro

Mas quando chegou, a corte de Recaredo II era já um ninho de vespas, lugar de intrigas palacianas, onde se acoitavam os fiéis do implacável Chindasvinto, detentor de um elevado cargo militar, que atravessou vários reinados, e que via agora na chegada de Tulga uma sombra, concorrente de peso, e como se isso não fosse suficiente, Luana parecia carregar fruto no seu ventre, uma extensão da maldita linhagem judaizante.

E a reação de Chindasvinto não se fez esperar, aliás o distinguido general não perdia um momento para agravar as relações já débeis entre o rei e Tulga que a estratégia do Homem de Ferro, como era conhecido, passava pelo aniquilamento do Coração d’Ouro e da sua linhagem. De forma que quando Luana começou a mostrar uma barriga mais crescida, onde o tirano tinha sempre o olhar, passou a ser o alvo principal da sua intolerância. O mantra foi repetido vezes sem conta: A Plebeia está grávida e transporta no ventre um Filho do Marrano.

Tulga, empurrado para o círculo exterior do poder, pouco podia fazer para libertar-se da teia que os oponentes lhe tinham armadilhado e quando Chindasvinto tentou violar o exuberante corpo da Plebeia, não restou ao Judaizante senão arranjar maneira de tirá-la de Toledo.

Coração d’Ouro, impotente, assistiu desesperadamente à partida de Luana, entre uma nuvem de pó, tentando conter a dor, de regresso a Castrum Mons, montada no seu alazão, em que subitamente aparecera na pele a mancha do esquecimento no coração do cavalo, contendo as lágrimas que nunca mais poderiam ser choradas.

  Ventos de mudança

Estava escrito nas estrelas que os ventos iriam trocar, tanta coisa tinha mudado em duas décadas, que a conjuntura se tornara favorável. Os tempos e as voltas que o mundo dá levaram, quase vinte anos mais tarde, o Coração d’Ouro ao trono, ironicamente, nos braços de uma nobre Rainha, que viria a dar-lhe uma filha, Ariberga, para a agulha e fuso, mas nunca um filho para brandir a espada (algumas fontes apontam Giscila como sendo também filha de Tulga, já outras não confirmam tal versão; seja como for, esse detalhe não tem relevância nesta história).

Tulga já calejado pelos fracassos, a última tentativa de trazer o herdeiro para Toledo, ainda no breve reinado de seu pai, Chintila, tinha levado o chefe da expedição à morte, o que na altura parecera um acidente, e não uma conspiração, sabia que primeiro teria que consolidar o poder para dar segurança ao filho e oferecer-lhe um cargo condigno que o levasse a abandonar a terra natal que tanto amava.

Quando preparava cuidadosamente uma nova expedição ao Castro da Montanha, os infiltrados de Chindasvinto já tinham cumprido a sua missão, que o Homem de Ferro, viria capitalizar, em 642, com quase oitenta anos, chegando ao poder fruto de uma conspiração.

Na hora da retirada, Tulga ainda voltou a atrás, mas a revolta estava consumada. O vigoroso ancião depois de uma vida de tentativas falhadas, chegava finalmente ao almejado trono, e a primeira coisa que fez foi mandar executar cerca de mil presumíveis conspiradores, desterrando outros. Chindasvinto obrigou Tulga a recolher-se num mosteiro e só abdicou do trono aos 90 anos para o seu filho Recesvinto, o que pela sua idade não deixa de ser uma façanha.

Recesvinto ficou conhecido por ilegalizar as leis alimentares judaicas do Cashrut, a Circuncisão e a celebração da Páscoa Judaica ou Passagem também conhecida por a Festa da Libertação, acabando finalmente por decretar o desterro dos Judeus. Morreu sem deixar herdeiro (algumas fontes defendem que Vamba era filho de Recesvinto, teses definitivamente abandonadas pelos genealogistas contemporâneos) para a sua famosa coroa votiva adornada com esmeraldas, numa crise de sucessão.

  Duas linhagens lutam pelo trono

É a partir destes dois monarcas que se polarizam dois clãs de sangue numa tentativa de restabelecer a monarquia hereditária absoluta, cada qual à sua maneira, com políticas antagónicas, que acabariam por provocar a invasão muçulmana.

A usurpação do poder por Chindasvinto e a crueldade demostrada na matança dos seus adversários, confiscações violentas, guerras de rapina, liberalizaram em demasiado as regras do jogo, num banditismo impune, tornando quase tudo possível no apetite voraz pelo poder, uma luta sem tréguas pela coroa.

A partir de então, teremos do lado de Tulga: o seu filhoVamba, tio de Égica, este pai de Vitiza, que por sua vez era pai de Áquila II.

Do lado do Homem de Ferro: seu filho Rescesvinto, Ervígio, filho de  uma sobrinha de Chindasvinto, casada com o greco-bizantino, Ardabastro, e Rodrigo, neto de Chindasvinto, filho de Teodofredo.

 Na peugada de Vamba, O Barriga Longa

 A morte de Recesvinto era um golpe de fortuna. A tradição goda ditava que quando tal acontecia, os conselheiros encontrassem entre a nobreza um candidato merecedor de tão alto cargo, muitas vezes por alternância da fação rival. E se havia alguém benquisto, que ressuscitasse o Trono Visigodo, teria que ser necessariamente alguém da família de Tulga, aposta alta, porque entre os Tulgas e o poder já muita água tinha passado em 30 anos debaixo do pontão do Curecho. Mas ainda assim, os fiéis partidários de Coração d’Ouro viam na morte de Recesvinto uma oportunidade única para retomar a procura do herdeiro de Tulga, numa altura em que a força bruta oprimia as mulheres. A Ariberga, irmã de Vamba, restariam as lides da casa.

O tempo era ouro, e os ideólogos seguidores de Tulga mandaram emissários ao Castro da Montanha à procura de Luana, rezando pelo caminho que o filho ainda por lá andasse e que desta vez aceitasse tão dignificante proposta. 

  Fatigando sem medo de se perder, a remontada termina no Curecho, lugar recôndito, entre o Castro e o Monte do Triângulo Misterioso. Aí, nos campos entre o sopé do Pinhal e o Ribeiro, olhando de relance, os emissários vislumbram um lavrador, que arava na margem direita, cumprindo-se a profecia dos oráculos, com um boi amarelo e outro vermelho, que o Castro edificado, altaneiro na montanha, poderia representar o poder e a força, mas era no vale de clima mais ameno que a vida germinava. Quiseram saber quem ele era e donde vinha porque de Tulga pouco tinha. Mais alto do que o pai, era conhecido por Wamba, vocábulo que significava em gótico Barriga Longa, ou mais simbolicamente, bem alimentado. Ombros largos, ossatura forte, tinha a parte direita do corpo, para onde se curvava, subtilmente mais pequena, e uma cicatriz no olho esquerdo, fruto de uma esgrima, destro com a espada com que o viria a legitimar o seu poder. Um escrutínio mais apertado – uma pequena mancha castanha por cima do olho esquerdo, como o pai – trouxe do Plebeu filho do Rei Judaizante a luz ao fundo do túnel. O anátema para uns era a dádiva de Deus para outros!

A lenda

Disseram ao lavrador que vinham buscá-lo para a nobre missão de rei dos Visigodos. Mas o humilde camponês voltou a resistir, contrapondo que por nada daquele mundo trocaria, sem querer ofender, o Reino Visigodo, pelo reino das suas terras, apesar da vida dura, férteis pela variedade de cereais, frutos e hortaliças, bem delimitados os terrenos pelas culturas de cada uma delas ante a salubridade dos céus – dando palmadinhas na barriga com orgulho e mostrando-a como exemplo – que dormia bem numa esteira de palha e que descansava ainda melhor dentro de si.

Perante a enérgica insistência dos emissários, já prostrados de joelhos implorando-lhe que aceitasse o convite, O Barriga Longa mais por compaixão e para ver-se livre dos homens que lhe inspiravam repulsa, pegou na aguilhada, recém-cortada de um olmo branco, com que dirigia os bois, espetou-a no chão e disse: serei rei quando esta vara tomar raiz.

Os astros iam conjugar-se. Olmo branco em chão húmido, nas margens do Ribeiro, e com a intervenção divina, não demora a florescer. E o lavrador face à materialização do prometido viu-se incapaz de voltar atrás com a sua palavra, aceitando o pedido mais com resignação do que entusiasmo. Como bom presságio, uma abelha voava em círculos à volta da cabeça, símbolo da coroa e amuleto da felicidade vindoura que o animou um pouco na despedida e lhe levantou o austral.

 Foi à casa rústica ligada à exploração agrária, na margem direita do pequeno pontão, na falda do Monte, e preparou a viagem para Toledo.

 Ficou para sempre conhecido este rei, gerado, nascido e criado em Castrum Mons, Vamba e o Castro viria a ser rebatizado com o seu nome.

Já em Toledo, foi ainda alcunhado de Flavius, nome de guerra, em homenagem à militância demonstrada na defesa da sua região natal, à qual viria a conceder grandes privilégios.

 Flavius no trono

Depois de um breve período de adaptação, todos andavam bem impressionados com Vamba, um rei manso, em consonância com a sua descendência humilde, tanto por parte da mãe como da parte da avó paterna, provenientes do baixo extrato social, o que significava que neste caso a nobreza não provinha do estatuto social mas do caráter psicológico da pessoa, a exemplo divino em que o Filho de um carpinteiro veio a ser o Redentor. Mas era ao mesmo tempo um homem respeitado, a sua chegada apaziguou os barões do reino que logo puseram de parte as suas discórdias.

Mesmo assim ou talvez por causa disso não faltaram aqueles que mais distantes de Toledo contestassem a sua descendência plebeia e Vamba teve que brandir outra vez a sua espada para derrotar um poderoso exército do rebelde Paulus proveniente da parte mais Oriental da Península.

Se a corte do seu progenitor Tulga, ficara conhecida como uma corte tolerante, onde conviviam diversas culturas, defensor justo da Causa Judaica, que lhe valeram o epitáfio de pio e justo, mas que os adversários logo aproveitaram para o apelidar de débil, já sobre o seu filho, Flavius, não se pode dizer bem o mesmo.

Vamba tolerou os Judeus ao princípio, deu inclusive licença de se estabelecerem nas judiarias, nos arredores dos grandes centros, desde que no Natal e na Páscoa mantivessem as casas fechadas, sem saírem delas. Mas quando a situação política conspirava contra ele, teve que acomodar-se às práticas antissemitas habituais e até sufocar uma rebelião de Judeus com o auxílio dos Mouros, posto que a Sharia defendia que os Adeptos do Livro estavam condenados a viver juntos, com os mesmos direitos à existência. Redimiu-se mais tarde perdoando aos revoltosos mediante o abandono externo das leis judaicas.

 Flavius não esquece as raízes

Flavius, monarca vigoroso e reformista, não esqueceu as suas raízes, quis fundar em Aquae Flaviae, tarefa hercúlea, uma Sé Monástica equivalente às de Dume e de Braga, que divergia da tradição religiosa ao introduzir a ética Patualista, como forma de moderar o abuso de poder dos Abades. Os mosteiros tinham um papel importante no povoamento de zonas rurais, mas alguns Abades logo se aproveitavam da credulidade, das superstições e da mentalidade mágica das populações para se tornarem nuns verdadeiros senhores feudais. As normas patualistas visavam uma melhor interação entre os mosteiros e as comunidades em que se inseriam, defendiam estruturas específicas para cada região, substituindo o poder senhorial do Abade por um pactum coletivo, uma espécie de constituição, a que todos estariam sujeitos incluindo os membros do clero. Mas a Igreja Metropolitana de Emérita Augusta, atual Mérida, com o suporte dos Bispos do Concílio XII de Toledo, em 681, com o apoio de Ervígio, portanto quando Flavius já tinha sido deposto, acabou por bloquear a sua construção. Este concílio ainda deu para o usurpador Ervígio não se coibir de voltar a vincar que as raízes da árvore venenosa do Judaísmo teriam que ser arrancadas.

Vamba decretou o serviço militar obrigatório para todos, incluindo clérigos, mobilizando-os para as batalhas num raio de 100 milhas donde exerciam a sua função, e foi acima de tudo o grande reconstrutor de Toledo. Ao fim de 8 anos de um excelente reinado, viria a ser drogado por Ervígio, sobrinho-neto de Chindasvinto, com esparteína, um eficaz narcótico, que lhe usurpou o poder, ato que acordou velhos fantasmas, reabrindo feridas antigas numa Guerra Civil anunciada, como era apanágio reincidente do Clã Chindasvinto.

 Narcotizado, convencido de que estava a morrer, tonsurado, o que o impedia de voltar a ser rei, Vamba foi finalmente enclausurando no Mosteiro de San Vicente, em Pampliega, Burgos, hoje já desaparecido, triste epílogo para aquele que foi considerado como o Último Grande Rei Visigodo. Flavius acabou, como já tinha acontecido com o seu pai Tulga, num mosteiro.

Mas os tempos e as voltas que o mundo dá irão levar Égica, sobrinho de Vamba, filho da sua irmã, Ariberga, casado com Cixilona, filha do rei usurpador, ao trono.

 Ervígio não conseguiu exterminar os Judeus como tinha jurado. A história veio a classificá-lo como o rei malvado que à beira da morte fora obrigado a conceder plenos poderes ao genro, implorando-lhe que respeitasse a sua família de sangue e política, e este com a ternura com que o pedido lhe fora feito não teve a coragem de dizer não, mas mais tarde, pensando mais a frio, não conseguiu esquecer o que ele tinha feito ao tio Flavius, acabando por vir a ser o seu vingador. 

A partir de Vamba todos os descendentes do clã foram batizados Flavius, como se fossem uma emanação do espírito do Grande Rei Visigodo, e também em homenagem à sua terra natal.

 Morte de Flavius Vitiza às mãos de Rodrigo

Flavius Égica, escorraçou e perseguiu a família política do sogro, mas nos seus exageros de vingança teria ido longe demais até no trato com os Judeus. Mais tarde, Égica terá reconhecido os seus excessos e pensou que dilatar o tempo do seu reinado seria dilatar a sua agonia, acabando por abdicar do trono para o seu filho, FlaviusVitiza, este uma verdadeira emanação do espírito do tio-avô Vamba.  

 Do pouco que se sabe sobre Flavius Vitiza provém de crónicas germânicas e britânicas que aliás o retratam como rei humilde, de bom coração, sempre disposto a ajudar os necessitados, bom governante, tão amado pelo povo como odiado pelo clero e pelos Chindavintos. Tinha governado o Reino Suevo em Tui com sucesso, enquanto o pai governava o Reino Visigodo, e trazia portanto para Toledo já uma boa experiência.

Vitiza via porém na superior educação do clero e na sua organização, comprometida com a feudalização, uma arma poderosa para colocar a mitra sobre a coroa. E como era pouco dado a esconder o que lhe ia na alma, defendia publicamente que o clero era uma classe privilegiada, com poder a mais, embrenhado nas suas próprias contradições, sempre ao lado dos mais fortes, a antítese do verdadeiro Cristianismo, uma vez que Cristo estivera eternamente ao lado dos necessitados, e que a clerezia com a sua postura de poder temporal, voltava com cada ato em busca da mais riqueza e poder a crucificar simbolicamente o Redentor.

Para Vitiza, alguns dos Concílios de Toledo não passavam de assembleias puramente políticas. No famoso XII Concílio de Toledo em que foi vetada a construção da Sé Monástica em Aquae Flaviae, a ata foi, por exemplo, assinada por 15 Paladinos contra 34 Bispos, 4 Abades e 3 representantes de Bispos, o que apesar de tudo era um grande avanço em comparação com atas de concílios anteriores. Em 589, no III Concílio, que ficou célebre pela conversão de Recaredo ao catolicismo, a desproporção de forças era de 5 Paladinos para 67 Bispos.

Vitiza não se assumia exclusivamente contra o clero político, mas também contra os privilégios da própria aristocracia. Nesta estratégia que ia muito além da subtração de privilégios às elites, lançavam-se os dados, ainda que de forma ténue, para o aparecimento de uma terceira classe anunciada, o povo, cuja consumação só viria a acontecer mais tarde com a chegada dos Mouros.

Neste extremar de posições, a fação da nobreza afetada, com Rodrigo assumindo-se à cabeça, e uma parte da clerezia política, já que o clero espiritual apostado em servir estaria do lado de Vitiza – como aliás estivera ao lado de Vamba quando os clérigos foram mobilizados para as guerras, mostrando a dignidade que o espírito de missão lhes conferia, sentindo até brio por serem iguais entre os homens já que sempre o foram ante Deus – promoveram um golpe palaciano que culminou com a morte do monarca. O pretexto avançado era não ser Vitiza um bom exemplo para o Reino por ser um sedutor destravado, professando num estilo de vida desregrado em relação aos bem materiais. A que ele teria esgrimido que quem era severo consigo mesmo mais severo seria com os outros.

Fontes da época, próximas de Vitiza, no espaço e no tempo, não confirmam contudo tais acusações, classificando-o pelo contrário de exemplar monarca. Teremos que esperar mais de cem anos até 818, para vermos pela primeira vez a sua imagem manchada e ainda assim por fontes estrangeiras, provenientes da Gália, acusações que vão paulatinamente denegrindo a sua imagem de crónica em crónica, com o passar do tempo. Aparentemente, as ideias de Vitiza consolidadas pelos Mouros tinham feito mossa nas classes privilegiadas e no clero do poder, detentores de grande parte da riqueza, não só na Ibéria mas também por arrastamento na Gália.

Vitiza acabaria morto num ataque traiçoeiro às mãos do neto de Chindasvinto, Rodrigo, situação que não era virgem, que lhe usurpou também o poder.

Após o assassinato de Vitiza, seu filho, Flavius Áquila II, tentou reaver o poder deixado vazio pela morte do pai, subiu ao trono como herdeiro legítimo, em Tui, apoiado no Norte pelos Suevos, mas a fação rival apresentou o seu novo brote, Rodrigo, em Toledo, neto do Homem de Ferro, cenas típicas que aliás se tinham repetido vezes sem conta, cujos protagonistas eram sempre os suspeitos do costume, a linhagem de Chindasvinto, acérrimos inimigos dos Vambas.

Enquanto os Chindasvintos suportavam Rodrigo na Bética, os Vambas defendiam Áquila II acantonado na Galécia. A Guerra Civil Norte-Sul estava em marcha. O reinado visigodo fragilizado e dividido entrava em declínio

  Vamba e o início da Era Islâmica

O Clã Chindasvinto não perdia uma oportunidade para diabolizar a reputação do Barriga Longa e da sua linhagem, reavivando ódios antigos. Começaram mais uma diatribe contra Vamba. Que o seu nascimento, no preciso ano que iniciava o Calendário Islâmico, marcava o começo de uma nova era, o ano da Hégira, que indiciava o fim do Cristianismo. Ademais sendo filho de uma Rameira Plebeia, era um sinal de que o Anticristo tinha chegado, acusando a sua linhagem de traidora, responsável pela entrega da Península aos Mouros.

 Este mantra repetida até à exaustão, vertida pelos Chindasvintos e pelos propagandistas do centralismo toledano, que prevalece arreigada na história, a censura era rígida, aonde quase todos foram beber, nunca posta em causa, por ter o prestígio e a magia autorizante do desfecho, ou seja, a conquista da Península por invasores muçulmanos, que ocupavam agora o lugar dos judeus no topo da pirâmide de ódios de estimação dos Chindasvintos, pode não ser assim tão linear. As oito mulas brancas de engodo, por exemplo, que atraíram Rodrigo para uma cilada em que ele desapareceu deixando apenas uma sandália dourada nas margens do Guadalete, fazem parte dessa propaganda.

Talvez a ideia de traição, como fizeram passar para a opinião pública, nem fizesse sentido neste contexto. Havia uma Guerra Civil em torno da morte de Flavius Vitiza às mãos de Rodrigo e Áquila era filho de Vitiza, que tudo fez para vingar a morte do pai. Mas mais do que uma simples instrumentalização com fins políticos do clã inimigo dos Vambas, era um prolongamento das ideias déspotas de um homem injusto e imoral. É o próprio São Eugénio que depois de ser nomeado pelo mesmo Chindasvinto, Bispo de Toledo, escreveu no seu epitáfio: impio, injusto, imoral e criminoso!

Áquila, filho de Vitiza, bisneto de Ariberga, irmã de Vamba, seguindo a tradição, e defendendo os seus direitos, com a ajuda dos Judeus, pediu auxílio aos Mouros, como outros antes tinham feito com os Bizantinos e com os Francos, sem ter a menor ideia das consequências que os ventos traziam desde o Crescente Fértil. Mais: para o Clã Vamba, que jurou lutar até à última gota de sangue, era uma questão de vida ou de morte. Mesmo assim, isto só aconteceu quando Rodrigo fez mais uma das suas, fez transbordar as águas, violando a bela Florinda, filha do Conde Julião, que tinha sido enviada para a corte de Toledo como escudo de apaziguamento entre os dois clãs rivais. 

 A invasão muçulmana

Os Mouros venceram Rodrigo, o Último Visigodo, e instalaram-se no Sul, primeiro na Bética, nos territórios deixados vazios pelo desaparecimento do neto de Chindasvinto, na Batalha de Guadalete. E não se ficaram por aí. Vendo a situação caótica em que a Península se encontrava e o direito que o amor à terra conquistada lhes concedia, sobretudo à aceitação por parte da população, que tinha começado com os Judeus, um décimo da população nessa altura, como ponta do iceberg, mas que logo se alastrou ao povo em geral, ainda inconsciente do impacto desta conquista. O povo ibero-romano nunca aceitara lá muito bem os Visigodos, a quem no início chamavam de bárbaros, uma aristocracia militar opressora, que se foi humanizando com o decorrer do tempo, com sistema de castas, que não via com bons olhos casamentos mistos, vivia dos campos por eles explorados, com um comércio pouco desenvolvido, e olhavam para o novo invasor até como um libertador. 

  O primeiro sinal de que os Mouros queriam ficar, e que ia em sentido contrário àquilo que fora estabelecido, veio do jovem soldado de tez trigueira que se apaixonou perdidamente pelo que eles consideravam exótico: as mulheres ruivas e louras ibéricas, com quem ao contrário dos godos, logo se misturou, e nunca mais as quis abandonar. Ao que parece a atração era recíproca. Há quem diga que o reconhecido bom relacionamento entre os futuros portugueses e outras etnias tenha começado aí. O soldado ibérico andava de igual modo seduzido pela decantada beleza árabe, de tez de oliva, dos chefes muçulmanos.

Vendo a situação caótica em que a Península se encontrava, empolgados pela onda da Meia-Lua que soprava da banda de lá do Estreito de Gibraltar, os Mouros alargaram a sua conquista para o Norte. Tudo isto acontecia para desespero de Áquila, que assistia horrorizado ao desenrolar dos acontecimentos, só agora tomando consciência do alcance do envolvimento mourisco na contenda, já que os seus aliados não cumpriam o que tinha sido estabelecido. Os Mouros tinham sido chamados simplesmente para colocar Áquila no poder em Toledo e regressar a Marrocos. Mas o exército muçulmano cada vez mais agradado com o que ia conquistando e não querendo entrar em conflito com o seu aliado, mandaram-no ao Califa de Damasco para que a decisão fosse tomada por ele.

Áquila enfraquecido e doente, implorou em vão a misericórdia do homem de quem dependia a sua sorte, mas o Califa olhou para ele com desdém e desgraçadamente recusou devolver-lhe o trono.

Áquila, caído em desgraça, morreu triste e abandonado, chorando com remorsos a conjuntura trágica, a entrega do pedestal a uma força estrangeira com cultura e religião tão dissimiles da sua.

Poucos dias depois, o Último Moicano dos Vambas sentiu no peito um latido pontiagudo, implorou o perdão divino e sincronizado com o Regnum Gothorum agonizante, davam em simultâneo o derradeiro suspiro. 

  A ironia do destino

A Tulga tinha-se atribuído sangue judeu por parte da mãe, nunca comprovado, por ter abraçado a Questão Judaica, ir contra os ventos da história, ter defendido o que nenhum outro godo se atrevera a defender. À exceção de Tulga e Vamba, além de Áquila, todos os que os seguiram, uns mais do que os outros, aspiraram, com especial ênfase para o Clã Chindasvinto, Arrancar pela Raiz a Planta Venenosa do Judaísmo e vão ser ironicamente os Judeus que, no seu extinto de sobrevivência, se aliam aos primos de sangue, provenientes do deserto, os Mouros, que vão acabar com o Clã do Homem de Ferro.

Uma justa causa humanitária tinha trazido Tulga a Castrum Mons. Foi durante a vivência dos Vambas que o Castro da Montanha, professando ainda os seus Deuses ancestrais e a doutrina de Arius, ouviu falar pela primeira vez da Santíssima Trindade. Foi durante a sua estadia que Tulga encontrou o amor e deixou descendência. Para que esses testemunhos não fossem esquecidos, a Tribo da Montanha quis guardá-los na memória eterna, rebatizando o Castrum Mons com nome do filho mais conhecido da terra: Vamba, o Último Grande Rei Visigodo.

E ainda hoje, quando já milhões de crepúsculos se apagaram no Castro da Montanha, tantas manhãs declinaram em tardes e estas em noites sobre o Triângulo Misterioso, mil e uma Luanas aí abandonadas contiveram lágrimas que não puderam ser choradas, e apesar do longínquo desaparecimento dos Vambas, a sua magia, as suas ambições e as suas lendas continuam bem vivas nas memórias e nas consciências dos povos nas imediações do Castro, imagens que enquanto os sonhos não se apaguem perdurarão com eles até aos fins dos tempos.

O Nueiba, novembro de 2013

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