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Nueiba: Histórias Rudimentares



Dos Castros às Aldeias de al-Ándalus الأندلس

(continuação de A Legendária História de Vamba)

Os Mouros consolidaram a conquista do al-Ándalus  – الأندلس  como era conhecida entre os árabes a Península Ibérica – em 722, uma centúria no Calendário Islâmico, um século depois do nascimento de Vamba, e dez anos mais tarde fizeram uma incursão de rompante ao coração da Gália, a Tours, cuja batalha de Poitiers pôs termo ao fulgurante expansionismo muçulmano na Europa Medieval.

Aproveitando uma religiosidade que era ao mesmo tempo espiritual e guerreira, o Islamismo atuava como um elemento agregador de uma identidade cultural e nunca antes uma civilização tinha crescido tanto em tão pouco tempo.

Na Sefarad  – ספרד em hebraico – como entre Cristão Novos a Ibéria ainda era conhecida, para além de desenvolverem a ciência, fomentaram o empreendedorismo, a agricultura, estimularam o comércio, profissão respeitável, segundo o Alcorão, sempre que os comerciantes fossem moderados e honestos, deram aos Judeus os mesmos direitos. 

Os batismos forçados foram abandonados, a circuncisão foi de novo permitida, as propriedades judias deixaram de ser confiscadas, outras facetas de vida judaica anteriormente proibidas foram promovidas. Foram ainda os Mouros que introduziram o sistema de “quinta” (jums) em que o vassalo teria que dar apenas uma quinta parte dos frutos de uma propriedade ao senhor do imóvel latifundiário, o que era um avanço significativo em relação ao sistema godo. Mas o seu maior contributo foi terem criado as condições para o aparecimento de uma terceira classe que passou a conviver com as já existentes do clero e da nobreza: o povo, síntese do ideal islâmico até 1685.

Nos seus oito séculos de presença na Península, não se pode dizer porém que a sociedade de al-Ándalus fosse uma civilização utópica nem um paraíso terrenal.

A rutura inicial, fraturante, com a população cristã, diferenças culto- religiosas, governo e sistema jurídico próprios, a animosidade entre Mouros e Cristão com os seus costumes diferentes, levou o seu tempo a desaparecer com os prejuízos inerentes. O estatuto feminino também não melhorou e em certos aspetos piorou com o advento da poligamia, a que uma parte da população aderiu, apesar das inovadoras carjas, génese das cantigas de amigo, terem dado voz lírica e até erótica a jovens apaixonadas que ousavam escrever pela primeira vez sentimentos íntimos que outras mulheres nem secretamente podiam expressar. Mas segundo os entendidos, o grande dilema da civilização islâmica estava na sua natureza estritamente religiosa que se revelou incapaz de criar formas seculares de vida comunitária que sustentassem sistemas sociais duradouros.

Estas caraterísticas menos positivas da sociedade islâmica não podem contudo apagar o essencial nem levar-nos a negar a própria história. Daqui partir-se para a tese de que foram os Mouros os culpados de estarmos hoje atrasados em relação à Europa, estará mais na génese de como se formulam ideias.

O al-Ándalus constituído por Judeus, Mouros e Cristãos convivendo fraternalmente na maioria dos tempos, que tinha levantado todo o tipo de invejas na Europa, esteve sempre na vanguarda do seu tempo e é hoje reconhecido como uma das sociedades que melhor espalhou a sabedoria, percursora do Renascimento, pelos cantos mais recônditos da Península e além-fronteiras. Desde o Trovador provençal, passando por Chaucer até Boccaccio todos estavam endividados com a literatura al-andaluza, enquanto a Escola de Tradutores de Toledo traduzia os trabalhos clássicos preservados em traduções árabes e hebraicas de Córdova.  

Nesse mundo da alta cultura, apareceram ainda pensadores como o neoplatónico Ibn Bayya que defendia que se pode chegar a Deus através da intelectualidade. Ibn Tufayl que professava que a alma podia entender o mundo físico. Ibn Hazm, filósofo e historiador das ideias, estava entre os espíritos mais lúcidos da época, o que melhor conhecia o pensamento islâmico, o judeo-cristão e o greco-romano. Al Mutamid, rei de Sevilha, nascido em Beja, foi o criador de sentidos poemas, poesia ainda hoje admirada. E o mais importante de todos Ibn Rushd, mais conhecido por Averróis, que preservando o trabalho de Aristóteles e Platão, professava a harmonia entre a ciência e a religião, posto que ambas buscavam, ainda que de maneira diferente, a verdade. Muito depois dos Islamitas terem abandonada o último bastião em Granada, o seu pensamento filosófico, científico, racionalista prevaleceu na Europa, continuando a ser estudado durante séculos nas grandes universidades.  

 Enquanto a Europa andava mergulhada pela Idade das Trevas, era no al-Ándalus aonde se difundia o conhecimento, o progresso científico, se promoviam as artes, e como Adeptos do Livro que eram, os Islamitas estimulavam os fiéis à leitura – sem eles muitos dos livros da antiguidade teriam sido perdidos – toleravam outras religiões, desenvolvendo um grau cultural sem precedentes na Península.

Apesar de isto tudo e salvo raras exceções, os grandes contributos islâmicos nunca aparecem nos compêndios escolares: a álgebra, os números, a caligrafia, o papel, a criação das universidades, a astronomia … os conhecimentos náuticos: o astrolábio, a bússola, o quadrante, que os países ibéricos tão bem aproveitaram, servem para dar uma pequena amostra desse condicionamento levado aos limites.

Infelizmente, os monarcas ibéricos e a Inquisição não tinham uma visão tão inclusivista como os Sarracenos, vocábulo que utilizavam de forma depreciativa, se bem que a origem do termo arábico antigo: sharqi, quisesse dizer o povo do sol nascente, considerando-os na sua sobranceria como uma cultura inferior, olhada com desprezo, assim como eram olhados os Judeus que desgraçadamente também expulsaram da terra que tanto amavam, donde já viviam desde a destruição do Templo, em 70 d c, gente bem preparada a todos os níveis, cedendo passo ao mais vulgar populismo, pondo fim ao espírito internacionalista da cultura ampla, para abraçar um fanatismo inquisitorial, intolerante e retrógrado que não aceitava diferenças. O terem expulsado a gente mais qualificada de Ibéria foi o produto final de um sistema fechado, um bloqueador de ideias, que implementaram, que mais parecia uma espécie de sabotagem interna, da qual ainda hoje há resquícios, e que nos trouxe onde estamos, com os mesmos resultados: os mais preparados saem para o estrangeiro.

Poderíamos mesmo dizer que os dois países ibéricos tinham chegado ao apogeu da sua história impulsionados pela vitalidade interativa das três culturas. A fraternidade, o altruísmo e a esperança cristãos, complementavam-se esplendidamente com a ciência e a energia árabes, a erudição e a economia financeira judaicas. Foi essa cooperação, a convivência, o melhor das três civilizações, que os tinha levado ao topo do Mundo. Mas depois dos Descobrimentos, mais causa e efeito do que simples coincidência, sem dois desses pilares, falhos de ideias, não conseguiram responder da mesma forma à nova realidade. A energia acumulada parecia ter sido espremida em empresas temerárias como Alcácer Quibir e a Armada Invencível, ponto de viragem, e a hegemonia perdeu-se para sempre. Nunca mais foi possível recuperar a glória perdida. E os Mouros por esse mundo fora, também não iriam ter melhor sorte.

O Fundamentalista

Em 1685, data negra no Calendário Islâmico, dá-se um acontecimento histórico, que viria a ser o início do percurso descendente de uma das civilizações mais dinâmicas daquela época, que a transformariam numa sociedade petrificada, com dificuldade de adaptação à marcha dos tempos, com os resultados que se conhecem, e que pôs outras civilizações a olhar para ela com desconfiança.

O líder do Império Mogol, Aurangzeb – filho de Shah Jahan, ou o Rei do Mundo, em farsi, este o construtor do Taj Mahal, o maior monumento dedicado ao amor de um homem por uma mulher – o oposto do pai a quem prendeu e dos irmãos, concorrentes à coroa, a quem matou, sobe ao trono através de uma onda de violência sem precedentes. Fruto da sua grande influência, tem uma projeção inimaginável noutros países islâmicos, que seguindo o seu exemplo, passam a não tolerar outros valores que não os seus. Pouco a pouco, fanáticos de toda a espécie começam a chegar ao poder e a conceituada tolerância muçulmana foi-se desmoronando como um baralho de cartas. Qualquer inovação científica passa a ser condenada, a riqueza começa a acumular-se nas mãos de uns quantos, uma boa parte da população é lançada para a miséria, agora sem alternativa senão entrar em lutas de guerrilhas fratricidas. Os países acabam por cair nas mãos dos colonizadores, a praga do analfabetismo propaga-se e o mundo islâmico foi paulatinamente ficando para trás.

 Devido ao seu grande poder – Auranzeb, imperador já nessa altura de mais de cem milhões de súbitos – as suas ideias reacionárias provocam uma autêntica revolução, servindo também para mostrar como o poder se aproveita e condiciona a própria religião, alastrando-se a uma boa parte da Índia, aonde os hindus são perseguidos, que então incluía o Paquistão e o Bangladesh, chegam ao Afeganistão, à Pérsia Safávida, e mesmo ao Imperio Otomano, dos poucos que não foi colonizado, já longe do fulgor de Solimão, imprimindo um cunho fundamentalista ao Islão que ainda hoje se faz sentir. As sociedades islamitas entram numa espiral recessiva, da qual só agora, depois da descolonização, se vão lentamente emancipando, impulsionadas por uma população jovem mais virada para o futuro do que para o dogma e alguns desses países começam a despertar de um sono longo e pesado.       

A Convivência Atual

Com tudo que acima fica exposto, o seu a seu dono, será difícil não dar aos Mouros, seja por mal querença ideológica ou ingratidão, o crédito que eles merecem, isto sem complexo algum do seu sangue se ter cruzado com o nosso. O al-Ándalus cosmopolita, moderno, também nada tem a ver ideologicamente com entidades retrógradas ou com os fanáticos das tragédias do 11 de Setembro ou do Comboio de Madrid, com agendas políticas particulares que tiranizam tudo à sua volta, fomentando o ódio entre povos e o sofrimento do bom cidadão.

Em Portugal, há atualmente cerca de 40 mil Muçulmanos, bem adaptados, vivendo de acordo com o padrão médio da sociedade e aproximadamente 500 Judeus, que vivem acima desse padrão. A sua convivência com a comunidade global, em termos comparativos, volta a ser um exemplo do melhor que se pratica por esse mundo democrático fora. Os estudos recentes sobre o tema confirmam haver uma entreajuda apreciável entre os fiéis dos três cultos, interagindo sem grandes tensões, só possível num estado que respeita as diferenças e a tolerância religiosa.

Já em relação à Comunidade Muçulmana Internacional, os sentimentos anti-Islâmicos crescem e nem sempre injustificadamente. Governos teocráticos, ditatoriais com domínio absoluto sobre o cidadão, ausência de direitos humanos, estatuto secundário para as mulheres, contribuem para que esses sentimentos não desapareçam tão cedo. Mas pouco a pouco, numa ascensão meteórica, lá se vão vislumbrando alguns progressos, como se pôde ver nos protestos anticorrupção da Primavera Árabe, na exigência de mais direitos, na luta por criação de emprego. Já há países com democracias híbridas – falta dar o último passo como o vizinho Israel – como a Turquia, o Senegal, a Malásia entre outros, onde se pressentem indícios de uma mudança que dá esperança de um mundo melhor. O índice de desenvolvimento humano também aumentou e entre os países com o melhor nível de vida estão os Emiratos Árabes, antiga colónia portuguesa, o Kuwait e Brunei com vencimentos anuais per capita superiores a 40 mil dólares.

Nesta mentalidade de “nós contra eles”, condicionados pela visão das nossas ideias, uns vêm os Islamitas contemporâneos como uma sociedade petrificada, conservadora que se atrasou em demasiado e não consegue agora apanhar máquina do tempo; outros vêm o mundo islâmico, apesar de todos os seus defeitos, como a última e única tábua de salvação daqueles que lutam para estancar a nova ordem mundial, cujo objetivo dos países ricos é saquear o pouco que ainda resta dos países subdesenvolvidos, explorando-lhes desenfreadamente os seus recursos naturais.  

Ouve dizer-se frequentemente e com algum orgulho que somos descendentes de Celtas, Romanos, Judeus, Suevos, Visigodos, nunca se diz que somos descendentes de Mouros. E eles não eram assim tão poucos como se pensa – os Visigodos por exemplo não chegaram ao quarto de milhão em toda a Sefarad – para terem chegado a Tours, já em 732, um século depois da morte de Maomé, com um exército superior a 50 mil homens.

A População Citadina Refugia-se nos Castros

Na tradição oral cristã nova, talvez fruto do seu forçado hermetismo, tinha-se criado uma ideia independente relacionado com a chegada dos Maometanos, tema controverso – e aqui começa o princípio da incerteza – por ser um caso invulgar, não veiculado pela opinião dominante, que tanto pode agitar a história, como devido à informação escassa que possuímos daquela época, pode preencher lacunas, hiatos que entreligam intervalos entre certos acontecimentos sem os quais nem especular poderíamos sobre o que pode ter acontecido.

O Ermamento provocado pela invasão causou um despovoamento massivo das cidades e vilas da Galécia, com a população urbana a fugir assustada com as guerras. Mas a tese limitativa do Despoblamiento ou a desertificação total da região parece pouco plausível e ganha cada vez mais opositores, agora recetivos à ideia de um despovoamento apenas parcial.

Alguma dessa população foragida acabaria por refugiar-se nos castros circunvizinhos e a parcela de gente que aí não coube fundou pequenos aglomerados de cabanas e casas improvisadas, génese das nossas aldeias, aliás foram os Mouros que cunharam o termo, nos sopés dos mesmos, aí viveu da exploração agrícola, do pastoreio e da caça, regressando rapidamente aos castros em caso de ataques.

O Castro de Vamba e nas suas imediações os Pardieiros, Quintela e o Vale da Ermida, estes três já desaparecidos e o Cambedo, poderão ter sido disso um exemplo. Já nas faldas do Castro do Muro teria aparecido Vilarelho.

A civilização da água, como os Mouros também eram conhecidos, acabaria por conquistar estes pré-aldeamentos entre o vale do Tâmega e o Ribeiro do Cambedo, seu afluente (entra em terras portuguesas no Cambedo, passa por Vilarelho da Raia para desaguar perpendicularmente no Tâmega, em Rabal, hoje de pequeno caudal devido à construção da Barragem do Rego do Milho) naquele tempo com uma forte torrente, com lagunas na margem esquerda, que lhe permitira servir de fronteira natural entre os países irmãos durante alguns períodos da história, e ocuparam-nos por mais de um meio século até à Reconquista.

Para além do aproveitamento hídrico e das férteis terras chãs (veiga), tinham como objetivo a extração de minerais nas Minas dos Lagares em Vila-Meã, já conhecidas pelos Romanos, onde foram encontradas moedas e barras de prata e ouro, aproveitando ainda a apelativa profecia simbólica-religiosa, de daqui ser oriundo Vamba, linhagem responsável pela sua chegada, por inspiração divina, nascido no preciso ano da Hégira.

Mas o seu verdadeiro propósito, deste assentamento mouro, sem casos similares nos arredores, nunca foi lá muito bem entendido, continuando em parte a ser um enigma.

O Nueiba, janeiro de 2014

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