Letras & Letras

Crónicas


Nueiba: Histórias Rudimentares



À Procura da Mítica Vilaiete: A Civilização Perdida

(continuação de A Legendária História de Vamba)

O mito é o nada que é tudo

F. Pessoa

Pouco ou nada se sabe sobre a história ou mito da perene Vilaiete, transmitida sigilosamente entre Cristão Novos como se dum segredo religioso se tratasse e cujo conhecimento, pensavam eles, se fosse revelado os iria delatar. Era uma estratégia de sobrevivência. Com medo das retaliações, a história era contada entre eles como se fosse uma simples lenda.

Os cronistas da corrente dominante, por seu turno, empenhados em apagar todos os resquícios a que Mouros e a Judeus dissesse respeito, então vistos como heréticos e subversivos, tudo fizeram para que nada sobrevivesse sobre o assunto, o que foi em vão, já que elementos dispersos acabariam por vir à tona.

O dogmatismo leva-nos por vezes a fechar as portas a novas ideias, a novas experiências e o que aqui se pede é um abandono das verdades absolutos, a preto e branco: “ Os Mouros só estiveram de passagem por Trás-os-Montes!”, abrindo assim as portas a novas interpretações.

Para chegarmos portanto à mítica Vilaiete, a nossa visão da história precisa de uma transformação, terá que livrar-se dessas filosofias incontestáveis, típicas das historiografias, com uma abordagem que não esteja prisioneira dos moldes convencionais porque o tema é fraturante.

Depois do controverso mistério nos ter confundido por tanto tempo, arriscamos aqui algumas conclusões, ainda em desenvolvimento – posto que ainda começamos a entendê-lo - baseadas em relatos que foram esmiuçados durante anos, em que os mais velhos iam passando o testemunho, e como se peças dum puzzle se tratasse, agora cruzados com fontes mais atualizadas. Tudo junto vêm dar alguma coerência e consistência a esta missão impossível. Por muito que se tente, os mitos especulativos tendem a não desaparecer, sempre que deles falamos estamos a dar-lhes vida, a transformá-los, a aumentá-los.

Machu Picchu, Vilcabamba, o túmulo de Tutankamon, que conhecemos, e tantos outros achados arqueológicos, que iluminaram a imaginação de uns quantos, começaram por ser tal como Vilaiete um simples mito, e os seus sítios nunca teriam sido encontrados se não fosse por personagens que puseram de parte as ideias pré-concebidas e se deixaram levar pela curiosidade que só uma procura aturada os poderia sossegar.

Aqui ficam portanto os poucos elementos de que dispomos até que outros sejam encontrados, que nos ajudem a compor o puzzle de uma forma mais consistente. É que tudo isto vem entroncar naquela velha história contada na antiguidade, referente às guerras.

Logo que a batalha terminava, o rei vencedor ordenava que o corneteiro soasse o olifante para dar início a um brutal saque que só terminaria quando o instrumento voltasse a tocar, pondo assim fim à pilhagem. Depois entrava em cena o cronista oficial para criar uma história convincente que justificasse tão sanguinária selvajaria. Os sobreviventes vencidos pouco ou nada podiam fazer. Não se queixavam, tampouco diziam que as coisas não tinham acontecido tal como estavam relatadas, não fosse o rei mandar o corneteiro dar outra cornetada no corno de marfim. Mas entre os sobreviventes vencidos, lá se ia contando sigilosamente o que realmente tinha acontecido. Quando estas histórias se escapavam para fora do grupo e eram confrontadas com a versão oficial do cronista, a soldo do rei, eles defendiam-se contrapondo, com medo de represálias, que aquilo não passava de um simples rumor ou boato sem importância alguma. Foi assim que muita da história passou à opinião pública na categoria de mitos e lendas.

Esta é a história dos sobreviventes transmitida oralmente de geração em geração que hoje emerge do silêncio.

Albarrania البرنىه o Fundador

Segundo rezava a tradição cristã nova agora reconstituída, e para que não fique para sempre esquecida, aqui resgatada para o mundo dos vivos, um alferes de Musa, de quem apenas conhecemos a alcunha, Albarrania, em árabe البرنىه , ou o que vive lá fora, encontrando-se numa expedição, teria utilizado estes castros e pré-aldeamentos como lugar de passagem e abastecimento do exército muçulmano em trânsito. Um entreposto como rota estratégica entre A Mesquita, Ourense e Aquae Flaviae, intermediários entre o mundo muçulmano, cristão e judeu. Com o passar do tempo, esta pequena comunidade viria a evoluir numa região administrativa, cujo património hídrico, atividade agrícola, e mineração justificavam uma presença mais assídua, o que a ser verdade vem baralhar tudo o que pensávamos conhecer sobre o território, se bem que a razão principal deste assentamento, a ideia que estaria por trás deste enigmático fenómeno, continue a ser elusiva e ainda envolta num mistério.

Uma comunidade dentro de uma comunidade, e dentro desta outra … era assim como funcionava, dependente de Abd al-Aziz, mas de governo autónomo, conhecida por Vilaiete, em árabe ولاية ou Vilayah ولایت , consoante o dialeto de cada tribo, escolha político-moral de Alá, como dádiva para todos os Adeptos do Livro, tolerando, fosse qual fosse a sua denominação e ninguém mais do que eles amou e desenvolveu os territórios da região.

Depois de um período de absorção, liderados pelo fundador Albarrania, os Maometanos construíram aqui uma notável e distinta civilização. Agarraram-se ao vale entre os maciços circundantes e aí, fazendo justiça ao seu nome, trabalharam como mouros. Arrancaram as vinhas, plantaram centeio, trigo, cevada, criaram hortas, pomares, regadios com ervilhas, favas, cebolas, grãos e arelhos, desenvolveram a pastorícia, a agropecuária, a tecelagem e como grandes conhecedores do aproveitamento das águas, elemento tão caro à sua existência, construíram os vários Moinhos e Lagares de Azeite (saniya) nas margens ou próximos do Ribeiro, trouxeram as noras (na’ura) e os baldões, ou cegonhas. Ficaram aqui a ser conhecidos como um povo tolerante mas duro no trabalho, capaz de suportar o calor, o frio e a fome. O lugar ficou ainda a ser conhecido pela criação de cavalos árabes, animais que traziam consigo a história dos povos que os cavalgavam. Pastavam nos prados do Curecho e em Campo Redondo e eram treinados nas estepes de Calvelos. Dizia-se que as estepes ficavam calvas com tanta correria e que é daí, do baixo latim calvelli, donde o topónimo provém, e assim a partir de então, foi com esse nome romanço, que estes campos ficaram a ser conhecidos.

Contava-se que eram cavalos, éguas e potros de estatura gigante de crinas longas que ao galopar espicaçados pelos seus ginetes faziam ondular as searas. Os animais, depois de bem treinados, saíam para serem utilizados pela cavalaria mourisca, grandes responsáveis, pela sua força e agilidade, no êxito retumbante da conquista muçulmana da Península. Para além do centeio, trigo, cevada, da horta e da tecelagem, os Mouros excelentes comerciantes como eram, tinham na venda destes cavalos a sua grande fonte de riqueza.

Estes Muçulmanos teriam aprendido a curar o porco, e em circunstâncias especiais, bebiam vinho quando lhes era oferecido em sinal de amizade pelos Cristãos – foram eles que trouxeram o alambique – que tal como os Judeus tinham liberdade de culto, com quem conviviam fraternalmente, assegurando-lhes proteção.

De acordo com esses relatos transmitidos oralmente de geração em geração entre Cristão Novos, perdidos na bruma dos tempos pela corrente dominante, para quem não tinham a mesma relevância, o Muezim, arauto encarregado de anunciar as preces, subia ao ponto mais alto do Castro do Muro, a sul de Vamba, virava-se para o Oriente para fazer o chamamento à oração de Allahu Akbar ecoar o eco do seu eco, amplificado do seu megafone de madeira e a pleno pulmão bem audível pelo anel das montanhas circundantes: desde El Morico, a noroeste, pelo arrabalde das aldeias galegas de Ar-Rabad, hoje Rabal por evolução fonética, passando por Mourazos, pela cadeia montanhosa ou Fezaz, a oriente até ao Castro da Fraga da Moura.

Atribuíam aos Berberes, que compunham as hostes mouriscas, de se terem instalado no sopé da cordilheira, arabizando o topónimo dos dois pré-aldeamentos galegos para Fezes فاس‎ (faz pouco sentido os nativos referirem-se a eles próprios como vivendo no meio do excremento), depois diferenciadas por “de Cima e de Baixo”, a partir da mesma origem: cordilheira, que tinha dado Fez, em Marrocos, enquanto Ar-Rabad aqui dava Rabal e Rabat naquele país do Magrebe.

Circulava ainda entre Cristão Novos uma ideia mais inédita que pela sua originalidade vem baralhar tudo o que pensávamos saber sobre a região: os topónimos Vilarelho (da Raia), Vilela, Vilarinho e Vila-Meã, quatro nomes com a mesma raiz num tão pequeno espaço territorial, poderiam ter por coincidência a origem etimológica na tradicional villae romano das explorações agrícolas (como acontece com outras localidades homónimas em Portugal e em Espanha) mas para que os recém-chegados sentissem uma ligação transcendental ao território, devido à realidade peculiar da sua natureza, que ia absorvendo e adaptando o que conquistava, teriam trocado as imagens de pouco significado para eles, e assim a partir do radical vila que irmana as palavras desta família, deram-lhe uma nova força, uma espécie de talismã, arabizando-o para Vilaiete, como se de almas gémeas eternamente unidas se tratasse, vocábulo que passou a designar a soma das partes, como viria a ser conhecida a comunidade mais periférica e enigmática de al-Ándalus.

Na perspetiva muçulmana, isto traria vantagens simbólicas. Em vez de se sentirem uns colonizadores, que ocupavam as terras dos habitantes nativos, sentiam-se ligados de uma forma mais profunda ao terrão, como se dos seus lares se tratasse. Segundo a forma do Islão que seguiam, seria um pecado viver em lugares que não criaram, tendo que arranjar de alguma forma uma pequena ligação que fosse ao território. Esta crença causava ação, dinâmica, vida.

Enquanto os muitos mistérios em torno da civilização perdida de Vilaiete, que podem iniciar vivos debates, estava a simbiose do vocábulo gentílico Vilarelho, que contribuiu, com uma evolução semântica, para que o Mouro sentisse uma afiliação mais profunda ao seu novo rincão. Ao contrário do que era defendido pelos Cristãos, arelho não seria para os Mouros um sufixo depreciativo, mas outro substantivo, o denominativo da aldeia – referia-se ao legume de caule branco e rama verde, parecido com alho francês, mas de cabeça grande, como uma pequena cebola, que hoje cresce no início da Primavera, entre as vinhas, muito apreciada por Mouros e Judeus – que daria significado ao nome do povoado. Uma combinação de dois substantivos: Wilayah e Arelho ou a terra dos arelhos, que então cobririam parte da paisagem das terras chãs (veiga). Para estancar o ímpeto galopante islâmico, os Cristãos teriam reagido sobrepondo simbolicamente o eterno rival, o Mata- Mouros, como concentrado anímico à nomenclatura da povoação, ou seja S. Tiago de Vilarelho. Da Raia é uma adição tardia.

Vamba e a origem do nome Cambedo

Muito se tem discutido sobre a origem do topónimo Cambedo e Cambados … consoante a fala e a ortografia das diferentes regiões. Depois de tudo que aqui se tem defendido, causa estranheza o fato deste geónimo, um nome tão sonoro e significante, não se enquadrar na simbologia da misteriosa comunidade.

O ponto nevrálgico de Vilaiete incluiria nove aldeias, quatro a partir do radical vila mais Mourazos, Rabal, Fezes (de Cima e de Baixo) e Cambedo, tendo na segunda sephira, no dizer cristão novo, Vilarello de Cota, Vila Verde e Vila Frade, até à Fraga da Moura, todas a partir igualmente desse radical vila.

Das nove aldeias centralizadas mais as três adjacentes, Cambedo é a única que não se encaixa em nenhum dos dois padrões específicos propostos, ou seja, não está associado de forma alguma a qualquer vocábulo árabe nem tem à primeira vista qualquer conexão mourisca. Não encontrando outra razão para este enigma, e a resposta curta que vamos avançar é que sendo o termo proveniente de Vamba, figura tão venerada entre os recém- chegados, eles se limitaram a preservá-lo, o que a ser verdade viria a conferir mais uma parcela verídica ao mito.

Todos parecem estar de acordo que o nome Cambedo provém de camba a que se adiciona o sufixo edo que significa conjunto ou coleção.

A controvérsia aparece com a origem da palavra camba. No que temos lido sobre o assunto, camba é uma corrupção fonética de Vamba ou Wamba como era grafado em gótico, mas uns distinguidos companheiros, bons amigos, linguistas de profissão, dizem-nos que o v nunca poderia transformar-se em c e que camba significa curvatura ou arco. E eles é que são os especialistas.

Contudo, e com o devido respeito pelas opiniões contrárias, por cima vindas de gente tão erudita, não haverá regra sem exceção. Ou não fosse a evolução feita de erros da cópia ou mutações que não seguem o padrão à risca. Intuitivamente, algo nos diz que a linguagem, como tudo no Universo, não poderá ser assim tão determinista. E somos também levados a acreditar nisto porque olhando o mundo à nossa volta não temos outra alternativa. Pelo menos em casos ínfimos que seja, o Supremo parece também aqui descansar ao sétimo dia para jogar aos dados com o Universo.

O termo finca em espanhol, por exemplo, para designar propriedade imóvel, é quinta em português, sem se saber quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha. O fonema f deu c ou vice-versa. Nas línguas germânicas, o f e o v são por vezes fonemas intercambiáveis, por serem sons parecidos. No plural de lobo em inglês, para citar apenas este exemplo de um alargado conjunto de termos, o f de wolf, resvala para v de wolves. Flavae deu Chaves como produto final do aportuguesamento moderno, sem que primeiro não tivesse escapado a uma passagem por clavis, chave em latim. Aqui o c deu f que por sua vez deu tch e finalmente ch.

Se curvatura pode assentar na configuração geográfica da aldeia do Cambedo, já não podemos dizer o mesmo em relação ao município galego de Cambados, donde se supõe que alguns dos Vambas poderiam ter sido oriundos ou pelo menos por lá teriam passado e que concederam, como é amplamente conhecido, grandes privilégios à povoação, como era aliás apanágio dos Vambas em relação às localidades donde provinham ou por onde passavam.

A outra possibilidade é cambe, que veio para o inglês do germânico e que significava pessoa que coxeia subtilmente. Há também quem defenda que cambe poderá antes ter vindo do francês jambe que significa perna. Se isto estiver correto, então o j deu c. Cambado em português significa pessoa cujas pernas o inclinam para um dos lados ou pernas tortas. Vamba tinha uma perna sensivelmente mais pequena para onde se inclinava ligeiramente. Essa inclinação é acentuada na estátua de Vamba na Plaza de Oriente em Madrid. Se curvatura se refere a esta inclinação, efigie do corpo de Vamba, então poderá ser um caso a explorar. Mas apesar destas considerações todas e sabendo-se que por onde os Vambas passavam apareciam localidades com nomes como Cambedo e Cambados regiões a que eles prestaram grandes benefícios, tudo se conjuga para que a evolução de Vamba para camba continue ainda a ser, apesar de tudo, segundo a nossa humilde opinião, a melhor das hipóteses.

A Vilaiete elusiva

O tema da perene Vilaiete, em contínuo desenvolvimento, é fraturante por haver algo de novo a revelar. Para levar a empreitada até ao fim e sem nunca perdermos o prémio de vista, o trabalho terá que continuar a ser árduo, terá que passar todos os obstáculos que possam aparecer pelo caminho. Sem ficarmos prisioneiros da história dos vencedores, escrita pelo cronista a soldo do rei, e sem medo de arriscar, é essencial que à la Colombo, procuremos outros caminhos porque quanto mais nos debruçávamos sobre esta tão enigmática Vilaiete, hieróglifo ainda por decifrar, mais fascinante o fenómeno se torna de tão vincada e duradora que a imagem se transformou. Temos esperança contudo que com o decorrer do tempo, o mistério que ainda paira sobre as nossas cabeças, esse longo caminho por palmilhar, continue a revelar-se, pouco a pouco, tal como até aqui tem vindo a suceder, que nos ajude a entendê-lo melhor, dando-nos uma visão mais clara do que realmente teria acontecido.

Estamos apenas no início, mas a profusão de topónimos, histórias, mitos e lendas, que vêm dar força ao mistério que acima fica exposto, são já suficientemente elucidativos para não deixarem ninguém indiferente, tampouco, pela sua abundância, poderão ser considerados como simples coincidências.

É que quanto mais nos embrenham neste fenómeno, mais convencidos ficamos que a sua resolução pode estar aí ao voltar da esquina, numa simples escavação arqueológica, e cujo ponto nevrálgico poderá estar enterrado debaixo dos Moinhos do Curecho ou no Castro do Muro, em cujas faldas apareceu o pré-aldeamento de Vilarelho da Raia, lugar escolhido pelo seu eco para a orações muçulmanas.

E então, sim, talvez a magnífica e desaparecida Vilaiete volte de novo, como antes tinha feito, doze séculos e meio depois, a nos maravilhar.

O Nueiba, março de 2014

Voltar à página inicial de Histórias Rudimentares

Colaboradores | Coordenação | Contactos | © 1997-2015 Letras & Letras