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Nueiba: Histórias Rudimentares



A Lenda da Facha

(continuação de A Legendária História de Vamba)

Brota esta nascente de água mineral, do fundo de uma escavação praticada em rocha de terreno vulcânico a 1,06 m abaixo da superfície do solo, onde se acha construída uma fonte, à qual concorrem muitos enfermos todos os anos (Lopes 1892).

Contava uma lenda oral quase atirada para o silêncio profundo, segundo os Cristãos uma apropriação das milenares profecias abraâmicas, para os Judeus uma adaptação especulativa das revelações mosaicas, já os Muçulmanos contrapunham que a história, embora rasgada pela imaginação dos contadores, abria novos horizontes: a harmonia na diversidade conferindo-lhe vitalidade e esperança.

Há muitas, muitas meias luas passadas, aquando da aproximação da segunda centúria da Hégira, num vale no cabo do mundo, entre dois castros circundantes, a Sul da Cruz da Portela de Vamba, a beleza da paisagem prístina, pura e harmónica, estava tão próxima do Paraíso que só faltava mesmo o espelho da Nascente de Ismael. Quem encontra-se as Águas em cuja corrente fluía a cura das doenças e a união dos povos, aí teria encontrado a origem da sua história, faria dela uma comunidade autónoma, a sua Terra Prometida.

  Sedentos, esfomeados, doentes pela ingestão de comida putrificada e água contaminada, os soldados muçulmanos mil e um perigos atravessados, vinham-se arrastando sem glória por territórios inexplorados. Alguns deles tinham perdido toda a esperança, outros já duvidavam da existência da Nascente e ainda outros contavam cada passo como se fosse o último. Tudo era desilusão, sofrimento e tristeza. Mesmo assim, o alferes de Musa, Albarrania em árabe البرنىه, ou o que vem ou vive lá fora, prosseguia nos limites, resistindo a todas as adversidades, desafiando a morte num adensar de problemas. Com a descrença instalada e com os soldados mais resistentes em vias de desertarem de um exército em risco de implosão, a missão estava mais que ameaçada, mas o Mouro recusava-se a desistir.

Quando um destino ainda mais cruel parecia pairar no horizonte e os corpos suplicavam por repouso, os Mouros baixaram dos seus elegantes cavalos e acamparam entre os Pardieiros e o sopé do Monte de Vamba. Uma noite que fosse para fazer girar pela última vez a roda da fortuna: a Nascente ou a Agonia.

Tão Próximos do Sonho

 Entre a vigila e o sonho, Albarrania teve uma visão tão intensa quão incompreensível. A Nascente da profecia estava mais próximo do que ele pensava, aguardava-os ali ao alcance de um galope. Não só curaria os seus soldados, como encontrariam o amor, engendrariam descendência que os ligaria àquela terra para sempre. Na Nascente havia Quatro Árvores alegóricas de outras tantas pérolas preciosas unidas pela corrente de Água, todas elas contribuindo, cada qual à suma maneira, para a riqueza do Colar. Enquanto se debatia como encontrá-la e interpretá-la, uma briza de vento agitou-lhe o sangue, parecendo sussurrar-lhe ao ouvido que procura-se Quatro Murtinhos, um deles tripartido, em representação da Unidade Trinitária, outro consagrado a Afrodite, o terceiro a Aserá, e o último a Anuket, Deusa da Água, da Doçura e da Fertilidade, aonde o Canto do Rouxinol anunciaria a Nascente da Harmonia.

 Mal a aurora raiou na Cordilheira de Fezaz, Albarrania de coração inquieto, pediu à Providencia que o ajudasse naquela caminhada, e pôs-se em marcha, lançando os dados da sorte entre o esplendor de diferentes tonalidades de verde: montes selvagens de odores indescritíveis, pradarias ondulantes, searas luxuriantes, seguindo para Oriente donde parecem provir todos os mistérios insondáveis da Natureza, esperando pelo Canto Glorioso que lhes indicasse os Murtinhos.

 Entusiasmado pelo renque de amieiros aonde corria um Ribeiro, o Mouro apeou-se com vontade de o beber de um só gole. Mas quando provou, a água parecia impura e ensanguentada e a pressão sobre ele aumentou. Gritou para os seus soldados: "Se ouvirdes o Canto do Rouxinol cantai alto como cantam os poetas!" Parecia estranho urgência tão grande.

  Subitamente, do centro daquelas montanhas com a brancura das giestas, o amarelo das carquejas e o roxo das urzes, que emolduravam os limites da planície, o Canto Glorioso dos augúrios divinos irrompe num ápice do silêncio. Albarrania sentiu o coração aos pulos. Ali estavam os Quatro Murtinhos e o Rouxinol, quebrando as barreiras do som, anunciava em ressonância profunda o lugar da Nascente.

 O Mouro aproveitou a revelação, levou o ouvido à terra e escutou um sussurro misterioso. Escavou com a cimitarra dourada entre os Murtinhos e os seus olhos abriram-se de súbito como se tivessem visto a luz pela primeira vez: um jacto de Água puríssima jorrou com vontade de satisfazer a sede dos soldados, prémio justo para tanta caminhada. Houve uma explosão de alegria. Num momento de comunhão, saudou a Primavera, bendisse a Nascente, por tudo o que tinham passado mereciam aquela dádiva celestial, prostrando-se no chão em agradecimento. Pelas suas gargantas secas corria agora o líquido prodigioso da natureza, com poderes medicinais que os iria curar das suas enfermidades. Ainda assim, Albarrania sentiu-se intrigado com o sabor daquela Água que todavia não estava na plenitude anunciada.

"Isto é um milagre" diz Albarrania "A representação da Nascente de Agar. Tenhamos fé que aqui tão longe daquela que salvou Ismael criou esta para salvar-nos agora a nós, que nos trará a cura, o amor e a felicidade!" Pediu comovente um ramo de cada Murtinho e colocou-os na boca da Nascente.

Saciada a sede, renovadas as forças, mas sobretudo o espírito, o Mouro, em agradecimento, ordenou a construção de uma Fonte que tomasse a forma da Caaba, representante do cubo, o mais perfeito dos sólidos, símbolo da Comunidade que aí iria ser erguida, combatendo assim o espírito divisionista do tempo, espelho de uma Nova Civilização: ou viveriam juntos Mouros, Judeus e Cristãos ou morreriam separados.

De todos os lados vieram vozes aprobatórias, mas um soldado, o braço direito de Albarrania, professado em astrologia, que na sua anterior vida nómada tinha percorrido reinos e impérios, disse fazendo de árbitro, que estavam rodeados de Fiéis da Cruz e que a Fonte teria que corresponder, homenageá-los também a eles com traços de um santuário, aonde peregrinariam, cumprindo assim a função de unir os homens e os povos como símbolo da Comunidade da Harmonia. "Que seja então uma obra que impressione pela sua beleza, mas sobretudo que represente mais uma das Pérolas do Colar" respondeu Albarrania.  

A Fusão Arquitetónica da Fonte

 Saída da virgindade silvestre, da escavação do solo, o simétrico retângulo, quase perfeito, levantou-se a obra, no centro das Quatro Árvores. A fusão arquitetónica, com um santuário campeando ao centro, deixou a Água a correr a Oriente para uma pia semioval, transbordando por um canal para uma Casa de Banhos, com a banheira virada na mesma direção, já que segundo o Profeta a fé seria metade da cura. 

Só faltava agora batizá-la porque de acordo com a profecia seria o coração em cujas águas pulsaria a Nova Comunidade: sempre que Água corresse o sangue pulsaria entre os Quatro Povos. Precisavam de um nome simbólico que representasse o Terceiro Murtinho. Como tinham chegado na Páscoa Judaica ou Pessach, a Festa da Libertação, Albarrania propôs que em homenagem ao Povo Mosaico, religião da sua mãe, a Fonte viesse a ser conhecida com esse epíteto significante: Pessach. Todos estiveram de acordo porque aquele nome representaria de forma exemplar a Terceira Pérola ainda esquecida do Colar.

Mas naquela babel de diferentes linguajares, umas tribos pronunciavam o nome Pessach, outras Pascha ou Fascha e o seu braço direito, o mais viajado de todos, disse que a Fonte lhe trazia à memória o nostálgico oásis de Fachi, no Ténéré, que um dia lhe tinha salvado a vida como esta o tinha feito agora. Entre metamorfoses, confusões, progressões e recuos dos tempos, foi Facha que acabou simbólica e eternamente por vingar.

Região dominada, desígnios cumpridos, os Mouros poderiam ter avassalado, escravizado e derretido as culturas existentes, fundindo-as numa nova identidade: uma só religião, uma só língua. Mas sendo ele um trota mundos, comunicativo com outras línguas e culturas, filho de uma Judia e estando rodeado por Cristãos que nunca conseguiriam deixar de ser quem eram para tentar ser o que não podiam nem queriam, teria que inventar uma forma de conviverem sem cortar três dos Murtinhos porque um coração lúcido era incompatível com os muros da época. Nem ele queria que Cristãos e Judeus negassem a sua identidade, perdessem o que de mais valioso tinham, tudo aquilo de que eram feitos. Tolerante e generoso, urgia antes anular aquele vazio entre as culturas numa coexistência pacífica e duradoura. Todas aquelas diferenças quando harmonizadas contribuiriam para a riqueza da Civilização unida por um ponto comum, um fio condutor, a Água. Mas como chegar a eles sem que o considerassem um inimigo?

A Guardadora do Sol

Não se vislumbrava resolução à vista. A Facha precisava de outro milagre. Revolucionando o pensamento da época, o Mouro resolveu escrever na fachada o que muitos consideraram blasfematório: " Estamos em família porque aquele que beber desta Fonte será meu irmão!" Garantiu que quem viesse de boa vontade teria os mesmos direitos e que os seus caminhos para o Céu seriam igualmente respeitadas, já que o Islamita, o Cristão e o Judeu todos se reportavam a Abraão, iguais ante os olhos de Deus.

Na idade irreverência, foi a juventude, que apareceu primeiro. Durante o crepúsculo, quando os últimos raios de sol começavam a desaparecer no horizonte, com a desculpa ir buscar água iam timidamente à Fonte ver os soldados, que não traziam mulheres e precisariam de corpos jovens que os pudessem aquecer no pico do Inverno.

Quando Albarrania olhou em volta estava o recinto cheio do mais belo que a região tinha para oferecer: formosas raparigas Cristãs e Judias, românticas, cativantes capazes de concretizar o sonho do seu sonho. Enchiam as bilhas de Água, tapavam-nas com as ramas dos Murtinhos, balançando-as depois na cabeça sem utilizar as mãos. Todas pareciam lindíssimas até que ao olhar do muro para baixo, vislumbrou ali, puro espanto, uma jovem sentada sozinha num canto. Usava as roupas simples da gente campestre, trazia os longos cabelos soltos ao vento, adornados com uma grinalda de Murtinho, como os Godos costumavam adornar as suas noivas. Aquele sorriso sublime, digno pela doçura, representava o que de mais belo alguma vez tinha visto. "Será uma aparição?" Os seus olhos verdes resplandeciam como o brilho dos raios do sol. Nenhuma outra mulher lhe tinha provocado emoções tão intensas. Seria outro sonho? Ela lançou-lhe um olhar puro e genuíno que gerou um campo magnético entre eles, acelerando-lhe a batida do coração. Parecia dizer: "Serás amado para sempre." E se fosse um anjo à sua frente? Para certificar-se que não era, perguntou-lhe o nome.

"Meu nome é Solange" ouviu de uma voz harmoniosa e angelical.

"Sim, o Anjo do Sol" retorquiu o Mouro, acrescentando:

"Esperei mil e um crepúsculos por um momento como este!"

Seguiu-se uma parca conversa, embargada pela emoção, o amor pairava no ar. Dois corações enchiam-se de ternura, pressentiam que tinham nascido como duas metades de um todo que nunca mais se poderiam separar, chegando a um estado que transcendia tudo que antes haviam vivido: duas pessoas fundidas numa só. Solange disse com mais um olhar: "Irei amar-te até ao meu último suspiro!"

Mas o pai de Solange, um homem severo, que quando zangado descia aos infernos, despertando nele aquela cólera primitiva que dorme no ser humano, mal soube do namoro na Fonte, teve uma reação furiosa, decidiu consternado que Solange não poderia ver mais o Mouro, raça infame, que odiava no mais profundo do ser, como se fossem leprosos. Seria uma blasfémia entregar a filha tão amava a um perro infiel. Era um amor impossível!

Inspiração Mágica

Abateu-se a angústia sobre os apaixonados, uma sombra cósmica pairava agora nos seus corações e a Facha que tinha sido a Fonte dos Amores passou a ser o lugar das lágrimas. 

Para compreender o mundo cristão, Albarrania tinha que conhecer os seus valores, penetrar na sua essência, perder-se entre eles, passando noite após noite compenetrado nos meandros da natureza humana. Faria tudo para não perder Solange. Tinha que amaciar o coração fanático daquele homem severo que quando zangado inspirava temor. Só um estratagema os salvaria. Tirou o turbante da cabeça, despiu o cashim, vestiu-se como os Cristãos e quando o homem viesse à Fonte aproveitaria para pedir-lhe a mão da filha, tal era o seu desespero. E ali esperou com o coração apertado.

Quando o novo crepúsculo chegou, o Cristão ficou radiante com a conversa fluida e sedutora, apesar da forma estranha de falar, do novo pretendente da filha, a quem todos reconheciam talentos. Ajoelhou-se dando graças a Deus por Solange ter esquecido o Infiel e em seu lugar ter encontrado um Cristão a quem todos auguravam um futuro bem-aventurado. Mas a alegria durou pouco tempo. O Mouro vendo a comoção do Cristão enfrentou a hora da verdade, que o amor não comporta engano, confessando quem realmente era. Impulsivo como era, o pai de Solange não resistiu à dor e num rompante abandonou a Fonte, com faíscas a saírem-lhe dos olhos, numa correria infernal em direção ao Castro do Muro. Enquanto fugia, o sol despareceu, soltando-se um vendaval que o empurrava para trás, lhe refreava os ímpetos, até que o temporal amainou e uma brisa lhe parecia zumbir ao ouvido: " Harmonia e esperança. Julga as pessoas de acordo com o conteúdo do seu caráter e não de acordo com a sua religião."

  Tentou continuar, mas o vento voltou a empurrá-lo. Algo começava a inquietá-lo. Pouco a pouco aquela cólera ciclópica ia perdendo azedume. Algo estava a acontecer no seu duro espírito. Estacou. A raiva que trazia dentro de si parecia derreter-se como os flocos de neve na serra da Farriça quando o sol começa a sobrepor-se aos frios meses de Inverno. Agora a brisa parecia que dizia mesmo: "Harmonia e esperança: como podes roubar a felicidade a uma filha tão amada?" De facto nunca tinha visto a cara de Solange tão triste que fizera desaparecer o sol dos seus olhos. Um coração empedernido começava a amaciar.

Poderia ter continuado a caminhada em direção à casa no Castro, mas o vento sussurrou-lhe por uma última vez: " Harmonia e esperança; o amor vem do Infinito." Parou e tomou a decisão mais importante da sua vida. Já preso de um horror de si mesmo, pôs de parte a violência espontânea, o orgulho e a vaidade pessoal, deu meia volta para acabar com o sacrilégio da filha, que o amor estava acima de todos os preconceitos.

De regresso à Fonte, pegou na mão de Solange e colocou-a suavemente sobre a mão de quem antes considerava repulsivo, atando-as com ramos de Murtinho para que nunca mais se pudessem separar. Solange deixou escapar o sorriso mais belo que já tinha visto. O sol nos seus olhos voltou a brilhar. De tanta ansiedade contida não conseguiu aguentar as emoções explodindo num choro de comoção e felicidade. Quando a Água se encheu de lágrimas vertidas, viu-se uma chispa, como se o líquido se tivesse acendido, começou a efervescer, tornando-se na mais enigmática das águas.

Dizem que foram estas lágrimas que deram o sabor alcalino gasoso à Água, agora na sua plenitude, e que as borbulhas provocadas pela chispa são a centelha do amor, um reflexo dos corações apaixonados.

O Grande Unificador

Em sinal de agradecimento, Judeus, Mouros e Cristãos agarraram o homem aos ombros, levantaram-no como um herói, o grande unificador. Sentiu-se livre pela primeira vez por ter vencido a besta negra do fanatismo. Dessa maneira ficava plantado o germe na Nova Comunidade, herdeira de quatro culturas, convivendo em harmonia. Albarrania, filho de uma Judia, tinha escolhido uma Cristã para esposa, recebido um sinal divino para aí fundar a sua Comunidade que viria a ser conhecida por Vilaiete. O sol resplandecia agora como nunca.

Violando as normas temporais, desde que o mundo era mundo, nunca antes quatro culturas puderam viver em paz e harmonia e a Fonte era o cordão que já tinha unido três em sua órbita, cada uma vivendo à sua maneira, porque a desunião permitia que o Demónio Iblis, governa-se.

Durante a noite, Solanje e Albarrania enternecidos dormiam entrelaçados, quando as aves se calaram, o murmúrio da Água a correr e a quietude do lugar em noite estrelada, proporcionava as delícias do Paraíso, intimados pelo desejo, entregaram-se um ao outro nos braços do amor.

Albour  البور :  O Primeiro Nascimento em Vilaiete

Nove meses mais tarde, um ano depois da chegada dos Mouros, no preciso dia da Pessach, o Rouxinol, agora transformado em Muezim da primeira madrugada, anunciou no seu canto uma nova alvorada: o primeiro nascido em Vilaiete, Albour, em árabe البور, via a luz do dia. Viria a ser mais tarde escolhido para Váli, venerado por todo um povo, mas como era feito da alma dos poetas, o Cisne Moreno, como também ficara a ser conhecido, vinha incumbido pela profecia de cantar os feitos e a efemeridade de Vilaiete, que imortalizou nos seus cantos.

Por a Nascente ter sido a resolução de um tema tão sensível, aglutinando todos em seu redor, passou a ser vista como a Fonte Sagrada, aonde todos os caminhos iam dar, transformou-se num lugar de culto, arrastando multidões para cerimónias solenes que fizeram tradição. Cada peregrinação era uma jornada de uma vida intemporal em que o espírito de união na diversidade, da solidariedade e da esperança era renovado.

Os Muçulmanos que não podiam fazer a Hajj, ou peregrinação maior, a Córdova muito menos a Meca, aí faziam a peregrinação menor ou Umrah, todos os anos. Colecionavam uma pedra por cada pré-aldeamento ou grupo de casas nos montes que constituíam Vilaiete, davam sete voltas contra relógio ao redor da Fonte e com elas apedrejarem o Iblis da desunião, para que ele não governasse.

  Para os Judeus servia para a cerimónia de Mikveh, imersão total do corpo em água como redenção dos pecados, salvando-lhes a alma da morte.

  Para os Cristãos era a Pia Batismal, aonde nasciam de novo, como primeiro portal entre o mundo físico e o espiritual.

Mas para que o exemplo frutificasse e a Facha não excluísse ninguém… faltava ainda uma última Pérola, o último Murtinho, o elemento esquecido.

 Os Céticos como S. Tomé, aqueles que têm que ver para crer, os Agnósticos - por alguma razão Deus Lhes teria posto a dúvida no coração - que até então tinham vivido clandestinos, ostracizados, mal tratados, faziam também a sua peregrinação à Fonte por motivos de saúde como prevenção das doenças. Uma brava caminhada que preservava a Fonte como ícone simbólico de uma civilização sem a qual não poderia sobreviver, introduzindo o exercício físico para rejuvenescimento do corpo. Percorriam todos os povoados de Vilaiete, buscando forças que pareciam não existir, adiando a sentença do tempo através da reabilitação atlética, cuja viagem culminava com banhos e massagens na Fonte, o Elixir da Juventude.

E todos se misturaram e conviveram sem deixar de ser quem eram, todos contribuindo cada qual com as suas virtudes para a riqueza de Vilaiete. E foi assim que o fio condutor das prodigiosas Águas da Facha fecundou os quatro Murtinhos, uniu todas as suas Pérolas, curou os necessitados, trouxe o amor, renovou a harmonia e a esperança, cumprido finalmente a sua missão.

A Fonte na Atualidade

Natureza

Carbonata sódica, carbogasosa (cit. Acciaiuoli 1952, I: 172-3) Grupo das bicarbonatadas sódicas, ricas em gás carbónico, pH ácido na nascente. Hipotermal. Alcalina sódica (Almeida e Almeida 1970).

Indicações

Dispepsias, congestões hepáticas, litíases, catarros das mucosas (Correia, 1922). Aparelho digestivo, pele e rins (Contreiras 1951).

Quinze quilómetros a Norte de Chaves, deixando para trás a aldeia de Vilarelho da Raia em direção ao último povoado da freguesia, o Cambedo – antigo povo promíscuo, terra afamada pelo legendário nascimento de Vamba e pelos Guerrilheiros de Juan – cerca de um quilómetro percorrido em estrada alcatroada, aparece uma encruzilhada e o viajante terá que deixar o asfalto que serpenteia para Poente, prosseguindo pela direita Norte numa estrada de terra batida durante mais uns duzentos metros.

Se atirar o olhar da encruzilhada, tendo como pano de fundo a fila de árvores que aconchega a vastidão, o viajante pode já avistar a Caseta branca de uma tentativa de exploração comercial. À direita vislumbra-se o telhado alaranjado da Casa de Banhos da Fonte.

 Escavada no solo a uns dois metros de profundidade e em estado puro, a beleza rústica da obra, escondida entre quatro paredes, só se revela ao visitante chegando lá bem perto. Entre a força silvestre e a tranquilidade da natureza, o ambiente oferece-lhe o mais transparente dos ares que a mítica Facha reserva para quem deseja visitá-la, tirá-la da solidão, antes de convidá-lo a descer seis degraus que o levarão à Casa de Banhos no recinto retangular da entrada, murado com granito em toda a volta.

A Fonte encontra-se a um nível sensivelmente inferior, descendo outros três degraus para um pátio quadrangular, com piso de granito. Aí o esperam bancos de pedra corridos, com costas, ao redor, destinados a quem queira beber e repousar. No epicentro encontra-se o luminoso Santuário polido pelas intempéries. Sobre a porta verde de metal pode ver-se um escudo com as armas de Portugal. A água sobe de uma ranhura na rocha correndo para fora do por um tubo metálico, caindo numa pia semioval, transbordando depois para a Casa de Banhos, que escoa por um canal nos campos a Oriente. Nesta Casa igualmente construída em granito, donde os enfermos à procura de cura se banham, encontra-se a banheira abaixo do nível do solo, também de pedra, protegida pelo referido teto, recentemente reconstruido, com telha alaranjada.

Há quatro murtinhos dentro do recinto retangular, um deles com três braços. A tradição de tapar as águas com ramos desta árvore foi mantida até há bem pouco. Mas a água perdeu alguma da sua força.

  A Norte, a uns 150 metros de distância, passando o pontão do Ribeiro, que entrecorta o renque de amieiros, havia uma outra nascente conhecida por a Fontela, hoje seca, aonde brotavam as águas de melhor qualidade.  

O Nueiba, maio de 2014

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