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Crónicas


Nueiba: Histórias Rudimentares



A Luta entre Albour البور e São Tiago

(continuação de A Legendária História de Vamba)

Votada ao esquecimento pelos cantadores da corrente dominante, que diziam que a história se tinha apoderado da realidade criando outra, poética, alheia à vida natural, ouviam-se ainda nos serões frios de Inverno ecos dessas cantigas primevas, fragmentos da tradição hermética cristã nova mantidos ante o esquecimento quase geral, depositários das memórias de um povo, reverberações da batalha do Curecho, entre Albour, em árabe البور, e São Tiago, onde o Apóstolo comandando um poderoso exército, tinha expulsado os Mouros, transformando-se no Santo Protetor destas Terras.

Os jograis encartados ter-se-iam aproveitado da cronologia para rotular a história de fantástica, posto que a batalha do Curecho aparecia situada no tempo quase 80 anos antes da de Clavijo, com a qual compartia elementos. Ademais, seria uma desonra para o Filho do Trovão, como era apelidado, o temível e omnipotente São Tiago, com todos os sítios de al-Ándalus para aparecer, ter escolhido inexplicavelmente uma comunidade tão exótica, humilde e insignificante como Vilaiete, em árabe, ولایت  ou ولاية, para fazer a sua primeira aparição, onde nem as milagrosas Águas da Facha o poderiam dignificar.

Desafiando os sábios da época, esgrimiam os trovadores da resistência itinerante, cantando a história, como se fosse digna de crédito e de fé, que nada era impossível, que o culto a São Tiago, e contradizendo também as teorias cordovesas, continha o elemento único e fundamental de surgir no preciso lugar onde a profecia se tinha incumbido de fazer nascer Vamba, linhagem responsável pela vinda dos Mouros, no ano cabalístico de uma nova era: a Hégira, 622 anos após o nascimento de Cristo.

Era uma resposta inatacável. Além disso, era neste microcosmo natural, longínquo e esquecido nos confins das Terras de Vamba, nome godo de Vilaiete, onde os Mouros tinham criado a sociedade mais pluralista e mais justa de que havia memória.

O conceito inclusivista de Vilaiete, audaz no tempo, que os Muçulmanos tão denegridos pela ignorância da sua complexa filosofia de vida plena de enigmas e paradoxos, aqui tinham construído, tinha elevado a civilização a um novo patamar. Vilaiete era um enclave, espécie de mini Taifa anunciada, um mundo à parte, com condições políticas, sociais e culturais específicas, que incluía os diferentes grupos religiosos e não religiosos, com plena liberdade de culto, ou ausência dele, num mosaico étnico coeso onde todos viviam harmoniosamente com as suas diferenças sem deixar ninguém para trás, cada um considerando-se igualmente importante para o projeto, e que pelo seu sucesso poderia vir a ser o paradigma para a moçarabização da Península, a ser combatido a todo o custo, não fosse a moda que todos temiam vingar por esse mundo cristão fora e até, quem sabe, se o modelo não pudesse vir a ser replicado em Jannah, o eterno Jardim, paraíso islamita.

Lenda ou facto real, imaginado ou verdadeiro, evidências também não havia que o Universo pendesse mais para o lado prosaico do que para o poético, a vitalidade do mito iluminava o espírito, atuava no vazio, preenchendo a necessidade catalisadora de uma cultura para a qual a prova poderia ser importante para o passado mas irrelevante para o presente, e nem a história das Terras de Vamba da qual sabemos tão pouco feita de interrupções, falhas, lacunas, mas também plena de força e magia, poderia ser reconstituída sem estas duas figuras embrionárias que se confundem: a personificação do Profeta e do Santo Templário, antes do tempo, na Guerra Santa, cada um seguindo o seu próprio caminho no encalço do Santo Graal.

Segundo a proposição cordovesa, a união dos Reinos Cristãos e a própria fundação dos estados Português e Espanhol, como os conhecemos, deve-se ao efeito muçulmano. Na sua génese estaria a reação dos fiéis da Cruz, em torno do culto de São Tiago, contra os seguidores da Meia-Lua, tendo como pano de fundo a ideia islâmica da peregrinação.

Quando Córdova foi apontada como depositária dos ossos de Maomé - os fiéis que não podiam peregrinar a Meca iam pelo menos a Córdova - os Cristãos teriam reagido com a conceção do túmulo de São Tiago em Compostela, ou a anti Córdova, a partir dos ossos de Prisciliano, corriam então os anos de 825.   

Ao contrário do que viria a acontecer em Ourique, quase quatro séculos mais tarde, onde Cristo aparecia a D. Afonso Henriques através de uma cruz que se vislumbrava entre as nuvens, na batalha do Curecho, o Filho do Trovão rompia as nuvens ao som da trombeta de um anjo e aparecia em pessoa no seu corcel branco com a sua espada de fogo. E nem mesmo o facto de São Tiago, na sua forma guerreira, se parecer mais ao Profeta e Albour, na sua forma humanista, de respeitar o próximo como a si mesmo, se assemelhar mais a Cristo, alterou em nada a perspetiva.

O que ficou para a história, a partir da poesia viva, cantada, foi que o Apóstolo aparecera com um grande exército em 25 de julho por volta dos anos 765, ou seja, 60 anos antes que a sua tumba fosse encontrada em Compostela, pousando o cavalo, no seu primeiro contacto com a terra, as patas traseiras numa fraga no Castro de Vamba, ainda hoje conhecida com o nome do Santo, para chefiar uma sublevação cristã durante a Reconquista, que vinda do Norte aproveitava as reminiscências das convulsões intestinas aquando da passagem do Califado de Damasco para o Emirado de Córdova.

A Sul, na modesta montanha no lado oposto, estaria Albour, Váli de Vilaiete, filho de Albarrania, em árabe, البرنىه, antigo alferes do exército de Musa, de mãe judaica, apaixonado por Solange, uma cristã da massa indígena, que conhecera na Fonte da Facha, fundando a civilização de Vilaiete, erguendo a sua humilde casa no sopé da exuberante floresta tão apreciada para quem vinha do arenoso deserto, aproveitando o generoso Ribeiro, o seu pequeno Guadalquibir, para levar murmúrios dos seus feitos a Oriente. O terreno era fértil para as hortas, as pradarias excelentes pastagens para os puro sangues, as árvores exóticas eram guaridas do calor que transformavam as sestas tão frescas como os crepúsculos, com Lagares de Azeite e Moinhos em volta, que ainda hoje mantêm viva a memória desses tempos, semiescondidos pelas figueiras que os encobriam de forma misteriosa como cobriram sugestivamente o corpo de Eva, dando os frutos mais doces nesta Terra Prometida.

Ali mesmo ao lado, contíguo a Poente, estavam os jardins, as árvores de fruto, da medicina e da afrodísia. As roseiras, os castanheiros, os sabugueiros em flor, a perfumada tília apenas punham a cabeça de fora entre freixos, carvalhos, sobreiros e pinhos disputando-lhe a luz do sol, enquanto as rolas gemiam, escutava com prazer o canto do rouxinol naquele paraíso terreno de Allah, que a paz Dele esteja com todos. Não haveria em todo al-Ándalus lugar tão verdejante e bonito pela sua simplicidade, seu hermetismo natural, frescura, sensualidade, deleites onde as virgens aguardavam desejosas as mil e uma noites de amor e paixão.

“Foi daqui, do encanto deste monte mágico, que me viu nascer tão pequeno como a grandeza do mundo, onde as horas mortas não doem, porque canto à vontade de alaúde em mão, as minhas cantigas inspiradas nas sombras dos meus antepassados, que visito lá no topo da montanha, perdendo-me por esses labirintos da selva sombria acima, sempre que sinto a chamada do nume, na Gruta do Triângulo, Templo multiplicador de mistérios suevos e godos, sangue que também me corre nas veias, do qual o meu pai extraiu o meu nome nos dias iniciais de Vilaiete: Albour ou o Montanhês, etimologicamente em árabe, aquele que vive no monte ou nas orlas do povoado.”

Albour, nome que os Cristãos adicionaram carinhosamente um diminutivo transformando-o em Albourinho, para agrado dos Mouros mas, como os Islamitas pouco habituados a nomes terminados em o pronunciavam-no Albourinha, para mais tarde evoluir para Alvorinha, veio legar o nome à montanha onde nasceu e viveu o Cavaleiro-poeta, com uma abordagem à vida que ninguém devia esquecer não fosse a humanidade feita para o olvido.  

Albour, Albourinho ou Alvorinha, e ainda o epíteto poético Cisne Moreno, assim conhecido por esses quatro nomes nas cantigas, era o primeiro nascido no enclave multicultural, segundo a tradição, um Váli ilustre, respeitado pelas suas qualidades. Sendo ele muçulmano filho de uma cristã, casado com outra e neto de uma judia, de quem herdara lucidez talmúdica, compreendia como ninguém a alma da comunidade que durante a sua liderança atingiu o auge. Teria incentivado a miscigenação, como seu pai Albarrania, confirmou a reconciliação dos diferentes povos, o que para a época era uma revolução de visionários, esculpindo e modelando o respeito entre as três religiões dos Adeptos do Livro, paradigma que passou a ser visto como um exemplo para as terras circunvizinhas, mas que causou, como é obvio, grandes invejas. Era o preço do sucesso.          

A Batalha do Curecho

Mal o cavalo branco pousava na Fraga tremeram as montanhas, havia colisões entre nuvens, os raios lutavam com o sol e os campos rugiam com os ventos. O Filho do Trovão, em vias de tornar-se no implacável Mata-Mouros e Vilaiete em Terras de São Tiago, vinha pelos ares para cima dos Muçulmanos sem dó, sem piedade e sem ter conhecimento do momento indefeso que minava a resistência islamita, naquele preciso momento em que o Muezim congregava os fiéis com a sua última chamada antes do fim do Ramadão, debilitados pelo jejum, a um passo do banquete esperado de Eid Al-Fitr.

A invasão aparecia, segundo os eruditos Islamitas, por engano. Desconheciam que SãoTiago, decapitado há mais de sete séculos na Cesaréia, encerrado no âmbito do Cristianismo, fosse ainda ignorante de um Calendário Lunar Islâmico que fazia coincidir o 25 de julho, o último dia terrenal do primeiro mártir da Cristandade, com o derradeiro dia do Ramadão. Os Ulemás sublimavam a questão atribuindo as culpas às nuances cristãs, extensões do pecado adâmico, acreditando que Tiago vinha induzido em erro, tentação instada por Iblis, o chefe dos Jinns, entrando em consequência nestas Terras de Vilaiete, sob a nuvem negra do pecado original.

Uma flecha inflamada incendiava as partes mais secas da floresta. Sitiados e vencidos, os Mouros abandonaram campo. A reconquista teria sido uma gesta não fosse a data escolhida. Mas os Oráculos Islâmicos nunca perdoaram a ousadia a Tiago, que matava os seus irmãos, muitos deles cristãos, enquanto rezavam, achando repugnante o branqueamento feito pelos Ulemás. Sem perderem mais tempo rogarem-lhe uma praga, nas três línguas, que perdura, como o pecado original, até aos dias de hoje ecoada profeticamente na montanha: “Um dia tornar-te-ás incómodo, esquecido e substituído pela tua própria gente!”

Ficou célebre no imaginário popular a quadra cantada de geração em geração pela corrente dominante dos povos de Vilaiete, proferida pelo Cisne Moreno, que nem o tempo conseguiu apagar. Quando abandonava a sua terra natal, que tanto amava, durante o percurso da retirada, teria virado a cabeça para ver os seus e o Castro de Vamba pela última vez, deixando escapar suspirando, olhos cobertos de lágrimas, um comovente e dolorido lamento com mil e um sentidos, que entrou no léxico da região e na imaginação da gente dos arrabaldes. A esta quadra se deve a sua imortalidade:

Vamba, revamba

Outeiro Marim

Tesouro enterrado

Que havia em mim

Albourinho não suspirava o lamento, ele e Vilaiete eram o próprio lamento.

A incerteza incumbir-se-ia de não deixar claro se o Váli-poeta, surpreendido enquanto rezava, teria morrido ou escapado com vida da encarniçada batalha. Corriam rumores que tinha sido cercado, rompendo o elo mais fraco na tentativa falhada de salvar a mulher cristã: “Se hoje for chamada por Deus, viverei para sempre no teu coração” antes de ser degolada, coincidindo com o suicídio da filha antes do ultraje de uma violação, ausências que chorou destroçado até ao fim dos seus dias. Do que não podemos duvidar é da força poética que passou a dar vida às cantigas do espírito vilaietino, às metáforas da vilaietidade, que com ele cresceram lado a lado, sustentadas pela preocupação que o Váli tinha pela vida com os outros e pelas utopias do seu povo.

Provavelmente desencadeada pelo lamento de Albour, o imaginário do povo teria posto em bocas judaicas a versão mosaica da despedida. Uma estrofe adaptada de um dos salmos mais conhecidos da Bíblia: Pelos Rios da Babilónia ou o lamento do povo judeu ao ver-se conquistado:

P’lo Ribeiro Vilaietino

Que atrás deixamos

Lamentando o destino

Ao dizer adeus...choramos

 

Com Albour fisicamente desaparecido, os dias fizeram-se anos e o Cisne Moreno passou a viver exclusivamente nestas cantigas, umas mais conhecidas que outras que continuam a inspirar-nos. A imaginação popular pôs-se no seu lugar e tributou-lhe versos, reconstruindo aquele momento comovente, expressando a dor de uma luta desigual, ao ver os deuses executar tarefas dos humanos, a exemplo da tradição greco-latina, inferindo que Alvorinha tivesse acabado unido à Divindade, ante uma força sobrenatural, como se tivesse sido alcançado pela espada flamejante, sedenta da sua ferida, não cantasse tristemente o cisne para morrer, mas que lhe dá ao mesmo tempo uma eternidade pessoal:

Calai rolas das madrugadas de verão

Rouxinol mil e uma noites d’amor e paixão

Que o Cisne Moreno não voltará a cantar...

São Tiago vem do monte irmão... Allahu Akbar...

 

Do pouco que se sabe sobre Alvorinha, para além do domínio ténue sobre a febre das mulheres, se bem que não fosse poligâmico, atiçada pela sensualidade do entorno, tudo mais nele parecia exemplar. Berço humilde, caráter nobre, alma grande, sensível, pensando nas línguas dos Mouros, dos Cristãos e dos Judeus com a mesma eloquência, fez tudo quanto ousou fazer pela terra que o viu nascer, só não pôde mais ante forças sobrenaturais, que um homem não podia lutar contra um Santo, mais tendo sido ele um dos discípulos preferidos de Cristo. 

A fazer fé nos ditos e nas cantigas populares, o tempo tinha-se incumbido de dar forma à nostalgia, deixando sinais que ele teria intenções de voltar ou pelo menos esse teria sido o desejo dos Cristãos, que ainda o procuravam, rompendo em verso montanha acima até à Gruta do Templo:

Aparece Albourinho

No teu orgulho ferido

Que fugindo deixas-te

Teu tesouro escondido

Enterrado com espigas de trigo

Adornado num perfumado lírio

Aqui tudo te quer e conhece

A quem tanto tinhas dado

Vilaiete não esquece

 

 E Tudo o Vento Levou 

Rumores também havia que Alvorinha tinha fingido escapar da batalha, um estratagema para mais tarde voltar, o certo é que era o fim de uma civilização. Vilaiete tinha-se cumprido, encerrando assim a página mais brilhante da sua história. Era o fim da Época Dourada destas terras de quem o Váli teria sido o último símbolo, territórios que foram afinal muito mais do que algum dia ousamos pensar. 

Fazia quase século e meio, que o foragido Tulga tinha chegado ao Castro Mons, depois rebatizado Castro de Vamba, em honra de seu filho aqui nascido com o mesmo nome, numa ponte pacífica entre Godos e Muçulmanos. Um século depois, as Terras de Vamba chamar-se-iam Vilaiete que em meio século - o tempo e a glória são efémeros –  atingiram o seu auge. Com o desaparecimento de Albour por volta dos anos 765, o enclave entrou em decadência para nunca mais voltar a ser o mesmo.

Deu-se então o Ermamento tardio com um despovoamento parcial, engendrando um novo cisma entre Cristãos, Mouros e Judeus, seguido pelo abandono do Castro, em que os últimos moradores passaram a viver quase exclusivamente no sopé do mesmo, nos pequenos povoados, regressando ao tipo de vida agro-pastoril e do amanho das terras, refugiando-se rapidamente nos Castros quando a necessidade das razias, incursões rápidas de saque, assim obrigavam.

  Com o andamento dos tempos, os dias do olvido foram-se esquecendo das semanas, as semanas dos meses que engendraram anos e séculos.

Passou Tulga, passou Vamba, passaram Albarrania e Albour, o que não passou foram algumas reverberações de um clamoroso silêncio desconhecido e depreciado, que quisemos revisitar sentimentalmente, como a redescoberta do olvido, o paraíso perdido recuperado nas quadras populares, sentimento que corresponde em tom elegíaco, ao que de mais sublime há na mitologia vilaietense, para que a história cantada não se apague no espírito da gente, simbolizada nesta cantiga que procura imortalizar de forma inapagável e eterna, o seu Grande Líder: 

Levanta a sonora voz a Oriente

Poeta, alma sublime, cantor fino

O amor que te une à tua gente

Não será mortal senão divino

O Nueiba, julho de 2014

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